Conteúdos

Textos do Fórum

(Psic)análise (hoje) em dia?

por Mônica Fujimura Leite

Renda-se como eu me rendi.

Mergulhe o desconhecido como eu mergulhei.

Não se preocupe em entender, viver ultrapassa todo entendimento.

(Clarice Lispector)


“Análise em dia”. É uma frase que tenho ouvido tão recorrentemente que começou a me intrigar. Ao me abrir pra ouvir o sentido dela, escutei coisas como fazer parte de um check list de uma suposta vida saudável, da garantia de uma saúde mental equilibrada, ou de boa lida com as adversidades e inesperados da vida.

Engraçado e bizarro pensar que a Psicanálise tenha entrado na lista dos objetos de desejo ofertados pelo mercado. Se antes o que predominava era um preconceito contra quem buscava uma análise (ou um psi de forma geral) – eram taxados de “loucos”, “falta de fé,” – partindo de uma lógica de segregação entre os sãos e os problemáticos, que não deram conta da vida. Na atualidade o discurso foi para o lado oposto, “todo mundo deveria fazer terapia”.

Nossa proposta de estudo no eixo este ano da ALPL é o discurso da Psicanálise hoje.

O que tenho verificado em minha clínica é que, de fato, hoje muitas pessoas buscam análise na mesma lógica dos demais objetos ofertados pelo capitalismo. Na urgência de um pedido de que lhe entreguemos um objeto que supostamente tamponaria sua falta. Bom, Lacan já dizia (no Seminário 8, da Transferência) que o analisando chega buscando algo que não encontra numa análise. E isso era causado pela resposta do analista, em sua posição de não satisfação da demanda amorosa do paciente.

Penso que a diferença para os dias atuais seja a de que muitos analisandos não chegam mais morrendo de amores por seu analista. Se o trabalho antes era o de se desvencilhar do enlaçamento afetivo de seu paciente, apontando para a motivação dele; hoje nossa dificuldade tem sido promover este lugar de suposto saber para que a transferência se instaure e o trabalho inicie.

Me lembrei de um analisante que diz que saiu da outra psicóloga porque ficou três meses e não resolveu nada, ela “só ouvia”. Ou outro que insistia para que eu completasse sua fala, à maneira que os outros “psicanalistas” haviam feito. Argumentava que não seria capaz de falar do que não sabe, e não adiantaram minhas ressalvas de que é justamente aí que o trabalho começa.

“Mergulhe no desconhecido”, o convite que fazemos a cada vez tem encontrado dificuldades em ser aceito. A pergunta que sustenta o nosso eixo deste ano parte de uma inquietação em nosso meio, onde para mim, fica a sensação de que o que vinha fazendo até então, sustentada por determinado arcabouço teórico não se sustenta mais, a coisa não gira.

Paralelo a isso, especialmente no mundo pós pandêmico, houve uma acentuação destas questões, acrescidas de formas de oferta e crescentes demandas de um novo posicionamento diante dos imperativos da tecnologia, virtualidade, que pareceram ter apagado as dimensões do tempo e espaço, nos jogando numa realidade nunca dantes sonhada. Se, à época, as discussões dos pares giravam em torno de um certo estranhamento e rechaço desta nova realidade: atendimentos online, circulação dos analistas nas redes sociais, pagamentos por pix, agendamentos por Whatzapp; hoje essa realidade já é incontestavelmente presente, há que se haver como deliberar com ela.

Tentando encontrar arcabouço, fui buscar entender do que se trata no que Lacan já antecipa em sua época (década de 70) sobre o Discurso do Capitalista. No seminário 17 ele diz que o Discurso Capitalista surge de uma copulação entre o Discurso do Mestre e o Discurso da Ciência. (LACAN,1969-70/1992, p. 126).[1]

Posteriormente, em 1972, na Conferência em Milão, intitulada “Do Discurso Psicanalítico”, ele vai falar melhor sobre o Discurso do Capitalista. Neste existe uma inversão das letras e dos vetores do lado esquerdo do matema em relação ao matema do discurso do mestre. Desta forma,

1)     O sujeito, no lugar do agente, passa a ter acesso direto à verdade ($   ?   S1). Voltando ao seminário 17, lá Lacan (1969-70/1992) diz que condição da verdade é a de nunca ser totalmente conhecida. Em todos os discursos não existe uma flecha na direção dela, mas duas barras separando a produção da verdade (//), isso demonstra a impossibilidade, presente de forma específica em cada um.[2]

2)     O sujeito perde a relação com o outro e tem relação direta com a produção, onde se localiza o objeto a. Nesse discurso o objeto a fica entre o agente ($) e o outro (S2) (S2   ?    a   ?    $).

Lembrando que os discursos são formas de laço social, formas de regulação do gozo na civilização, balizando a relação entre os seres humanos. O Discurso do Capitalista serve para explicar este modo de relação em que se instigaria a eliminação da castração, onde existe a oferta de objetos de consumo como que possibilitariam o alcance da fantasia de completude, ao preço de uma intensificação do individualismo.

Nos discursos, o objeto a designa o mais-de-gozar[3]. A rigor, no mesmo seminário, ele diz que esse é um gozo fracassado, uma vez que é impossível alcançá-lo. O objeto a opera a partir da abertura existente entre a perda de um gozo que nunca existiu e a promessa de sua recuperação (que na verdade nunca se realiza).

Os objetos de consumo representam uma possível recuperação de gozo, criando uma desejabilidade provocada por meio dos recursos propagandísticos e ideológicos, os quais homogeneizariam os supostos objetos de desejo, tornando-os análogos ao objeto a.

Neste discurso não há a barra que faria esse impedimento de acesso ao gozo através do objeto causa de desejo, o que se assemelha ao matema da fantasia: $?a.

A primeira pergunta que vem é: podemos então pensar numa desmontagem do fantasma?

Sgarioni (2013), em sua dissertação de mestrado intitulada “O Saber e o Objeto no Discurso Capitalista”, defende que sim, neste caso há a desmontagem do fantasma enquanto sustentador do desejo, e deixam de operar o desejo e o gozo fálico. Ela argumenta que no capitalismo o sujeito é incessantemente impelido a gozar pelo consumo de objetos produzidos pela cultura, que prometeriam livrar o sujeito do mal-estar inerente a sua condição humana, suturando a falta-a-ser.

Não sei se isso seria possível sustentar este argumento na prática, nem se seria em todos os casos (talvez nas situações de enlouquecimento isso seria verificável). Penso que, em termos mais gerais, a criação deste suposto objeto também é uma fantasia. O capitalismo cria a necessidade e promove o objeto que a satisfaria, ou seja, não atinge a falta fundamental, que continua sem objeto.

Assim, o objeto consumido satisfaz momentaneamente, mas logo a insatisfação se coloca novamente. O mercado, porém, oferece outras opções para substituir aquela que não foi suficiente, com uma nova tecnologia, um novo design, portador de uma nova promessa. E o ciclo segue sem fim. Tal processo, por mostrar-se falho, tende a repetir-se incessantemente.

Nas palavras de Lacan (1972): “basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome [consomme], se consome tão bem que se consuma [consume].”

Porém, o que temos visto na atualidade é que a oferta sempre reiterada de uma promessa, no lançamento contínuo de novos objetos, cada vez mais se assemelha àquilo que o sujeito almeja provoca sim efeitos importantes na subjetividade de nosso tempo. Vide as inteligências artificiais, que nos estudam e traçam nosso padrão de consumo e se aperfeiçoam em nos oferecer objetos cada vez mais assertivos, à la moda das redes sociais, cujo único objetivo é nos capturar e prender nossa atenção o máximo de tempo possível. Convido-os a assistir o documentário “O Dilema das Redes”[4] (2020).

Já é ponto cativo que os sintomas acompanham a época dos quais são fruto. Minha pergunta é: como explicar os fenômenos que encontramos hoje na clínica, para então pensar em como lidar com eles.

Me refiro a situações de apagamento subjetivo, jovens que têm acesso à “tudo” e não se implicam com nada (como a chamada geração “nem, nem”, começam uma coisa atrás da outra e não prosseguem, sem tolerância à frustração, resiliência, iludidos e raivosos de que o emprego ou o parceiro ideal não existem. Ou que querem todos os parceiros, ansiosos, deprimidos, medicalizados ou adictos. A vida sem um sentido (de propósito e direção). Outros extremamente inibidos, incapazes de uma vida produtiva, de estabelecer relacionamentos, ou raivosos, intolerantes com a realidade, que não corresponde as suas idealizações. Também com muito medo de aparecer no mundo e ter que bancar o próprio desejo. Muito fragilizados e com dificuldades de abandonar a posição queixosa de que o mundo lhes deve, e sofrem, sofrem, sem se abrir para a questão de o que têm a ver com isso.

Com o intuito de relacionar os fenômenos sintomáticos de nosso tempo com a lógica discursiva dele, recorro a Lacan que, no seminário 10, nos adverte do que acontece quando falta a falta.[5] Sgarioni (2013) traz a proliferação nos diagnósticos de ataques de pânico, depressões e ansiedades da atualidade como patologias da angústia. Ele cita Zuberman (2007) que acrescenta neste rol as anorexias, bulimias, compulsões e as toxicomanias. E conclui: são todas patologias que falam de um curto circuito do sujeito com o objeto.

Na atualidade, o gozo (no sentido de satisfação ilimitada) é um ideal a ser buscado, e todos os empecilhos a ele devem ser superados. Para Freud (1912-13/2006) as adições podem ser entendidas como uma forma de busca de satisfação no objeto fálico de forma masturbatória, ou seja, sem uma referência ao laço social. Pois a vida em civilização exige uma renúncia pulsional. Já para Lacan as adições expressam um rompimento com a ordem fálica (da linguagem), que instaura a falta no Outro, através da inscrição do Nome-do-Pai.

Na busca de um aprofundamento teórico, recorri ao livro Locura y Melancolia (2016), de Haydée Heinrich, onde ela traz casos similares, de pacientes aferrados à posição reivindicatória, exigindo compensação por sua vida de desmerecimento e desamparo (melancolia enfatuada), posição que se repete na transferência com o analista. Ou o oposto, comparecem queixosos, de que ninguém os ama, não querem mais viver desta forma, sua vida não tem sentido, nada vale a pena (melancolia humilhada).

 São casos de difícil acesso, que, nesta posição, não se engajam em um processo analítico. Ela se pauta no texto “As Exceções” de Freud (1916/2006), onde ele fala de casos em que os pacientes referem terem sofrido padecimentos injustificados durante a infância e que não aceitam se submeterem ao regime analítico. Ele diz ser uma posição narcísica, refratária à análise.

Ela trabalha estes casos a partir do conceito de melancolia, de Freud. Na melancolia, a perda do objeto provoca uma identificação a ele, e consequente amortização do eu, que comparece sob a forma de desvalia, culpa e perda da autoestima. A saída seria a virada de tais investimentos libidinais para o objeto, que propiciaria no abandono dele, pela perda de valor do mesmo. Haydee (2016) chama essa saída de paranoica.  

Mas ela vai além do conceito enquanto elaboração adoentada de uma perda amorosa.  Tais pacientes apresentam-se na vida de forma enlouquecida, com inúmeras atuações, assentadas no fantasma de abandono materno. Ela retorna ao tratamento que Lacan dá à cena da invidia de Santo Agostinho, em que uma criança vê uma outra sendo amamentada, e monta encima dela uma fantasia de completude.

Estas situações fazem contraponto ao que Lacan denomina de estádio do espelho, onde ele destaca a importância do olhar do Outro sobre o sujeito, sendo este o espelho que lhe devolve uma imagem unificada. Ou seja, lhe assegura seu valor, apesar de sua incompletude (imperfeições – desordem e fragmentação que vive no real de seu corpo). Será esta experiência que permitirá a introjeção do traço unário enquanto identificação simbólica ao Ideal do Eu.   

Haydee (2016) desdobra a cena de Santo Agostinho a uma outra situação em que a mãe tenha seu olhar desejante capturado pela fascinação da imagem dela com a criança – portanto ela própria capturada pela cena de completude – deste modo, não se desprende dela para olhar para a criança.

Ela diz que esse sujeito está fora do campo da psicose, uma vez que ele busca o olhar de aprovação do Outro, mas isso não foi suficiente para instaurar um mediador simbólico na relação dual imaginária. Se desdobrará num transtorno narcísico. Nas palavras da autora: “Sem isso, o sujeito acreditará que não é amado por causa de suas imperfeições, que não serão inscritas em uma carência estrutural, mas serão vivenciadas como seus próprios fracassos”.

Na transferência, isso comparece da mesma forma como tais sujeitos convocam seus parceiros amorosos: num pedido de paixão desmedida, intensa e ilimitada, na exigência de atendimento de suas demandas, de uma presença maciça, referendando com isso que é digno de ser amado.  A abstinência do analista, por sua vez, é vivida pelo paciente como indiferença, abandono, rechaço. São casos difíceis de manejar.

Haydée (2016) aponta que não se trata simplesmente de uma resistência amorosa, e que portanto, o manejo não é de retirar-se, ela aconselha a “inventar recursos para evitar respostas imaginárias e contornar confrontos no espelho.” Ela não desdobra muito mais do que isso, mas traz alguns exemplos que, no meu entender, referem-se a introduzir a dimensão simbólica na relação com o analista, ser firme quanto aos combinados, não relativizar valor, horário, não ceder às demandas amorosas e de pedido de exceção. Diante do pedido de reconhecimento do sofrimento, um acolhimento possível (e isso aprendi com meu supervisor) seria escutar o inconsciente, o desejo, para além da demanda amorosa.

Lembrei-me do trabalho que realizei por muito tempo em uma ONG com crianças psicóticas, em que aprendi que eu não deveria encarnar a lei, mas mostrar-me submetida a ela e desta forma frustrar o paciente. “Não o faço porque não posso, não porque não quero, estamos todos submetidos ao regime da castração”. Penso que impor a lei seria me identificar a ela, numa via imaginária (o pai terrível, o qual despertaria mais agressividade). Já aludir à dimensão simbólica pacifica, pois introduz um mediador que faz barra entre o eu e o outro.

Uma outra intervenção que ela traz faz referência ao trabalho de luto. Acompanhar um enlutado é acompanhá-lo, “con-doer-se”. Elevar à dignidade o sofrimento do paciente, que em suas atuações, está buscando ser ouvido. Ela retoma o conceito de acting out, que é uma fala sem palavras, que é direcionada, uma chamada de atenção a algo que não está sendo escutado.

Retomo novamente o meu entendimento de que acolher não é ser conivente com as extravagâncias e pedidos de exceção do paciente, mas pedir (e viabilizar) que ele ponha palavras nisso que vem fazendo. Lembrei de outra intervenção com as crianças que eu costumava fazer, que era um combinado de que ali ele poderia fazer e falar tudo, menos se machucar, me machucar e quebrar os brinquedos. Visava com isso, manter, o máximo que fosse possível, as análises nas dimensões simbólica e imaginária.

Ela diz que isso pode promover um engatamento na transferência, o paciente saber que desta vez não será abusado. 

Haydée (2016) também traz o discurso capitalista na enseada das fenomenologias clínicas. Ela diz que: “A lógica do narcisismo individualista faz da acumulação de bens o seu credo, ao mesmo tempo que mantém a harmonização psicológica com a ilusão de que a falta é suturável, a decadência dos corpos é evitável e o impossível é possível. Para isso, conta com a ciência, fiel aliada do capitalismo”.

Sgarioni (2013) diz que no Discurso do Capitalista, aquilo que não se inscreveu como um nome (significante), retorna enquanto objeto, fazendo suplência, sendo buscados objetos que contenham uma estória.

Os que trabalham com marketing dizem que para vender um produto, você agrega a ele uma história, é isso que as pessoas compram). E que a identificação do sujeito se daria com a posse destes objetos. As práticas publicitárias atuais jogam com a suposta exclusividade dos produtos, ou num extremo disso, que trazem agregados aos produtos, uma ancoragem simbólica, um lugar de pertencimento.

Penso que isso funciona com qualquer produto, seja um objeto, um nome de um diagnóstico (vide a proliferação dos diagnósticos de autismo tardios na atualidade, a agregação a um grupo social – de gênero, raça, sexualidade, ou o aumento das chamadas doenças auto imunes, ou psicossomáticas). Em todos os casos o que aparece em comum é o fato de os sujeitos se identificarem a um discurso e militarem em nome dele, formando um todo, a partir do qual se reconhecem e se explicam, mas não se implicam.

Não se armam questões, pois qualquer abertura retorna às explicações prontas nas quais o sujeito não se coloca em sua singularidade. O desafio é abrir brecha nesse discurso totalitário pra que ele se pergunte: e ele nisso?

Lembrei-me de uma paciente que eu atendia por um convênio e que não permaneceu quando saí dele. Ela dizia que eu era uma analista fantástica, acima de qualquer outra que ela já tivesse encontrado, porém me pergunto se ela entendeu de que trabalho se trata. Pois recentemente volta a me procurar pra pedir um reconhecimento de possível diagnóstico de autismo pra pleitear cota em um concurso.

Sgarioni (2013) traz em sua pesquisa que o conflito psíquico, a partir do discurso capitalista, não é da ordem de um enigma que se apresenta para o sujeito como expressão de seu desejo, mas uma insatisfação que reivindica ter acesso ao gozo que o objeto representa. Assim, o analisando não se dirigiria ao analista enquanto o detentor de um saber, mas de um objeto que o satisfaria.

Reclamam que uma psicanálise demanda muito tempo, é cara, não garante resultados, que um remédio ou outras terapias são mais rápidos e eficientes. Me lembrei de um paciente que, ao dizer o valor que poderia pagar em seu tratamento, diz dos investimentos que vem fazendo, e que com o valor X não se comprometeria. Acontece que sem comprometimento um trabalho analítico não acontece. A perda necessária, o chamado “regime da castração” que o próprio pagamento da sessão implica, parece estar sendo evitada logo de saída, inviabilizando um trabalho analítico. 

O que fazer?

Penso que se os pacientes chegam diferente, precisamos também responder diferente, pois o convencional não está mais funcionando. Sgarioni (2013)  traz uma fala de Zuberman (2007) que vai nesta direção: “Parte do trabalho do analista hoje é levar esse paciente à condição de analisante”.

E esta seria a saída possível, que encontrei por ora. Tenho experimentado algo novo, ensinar o paciente a se analisar, a se deparar c o inconsciente, no começo, trazer a fala dele, para que se surpreenda com ela. Explicar como funciona o processo, demonstrar devolvendo a própria fala, ligar pontos do discurso do paciente e devolver a ele, perguntando se faz algum sentido ou associação entre eles, enfim, conduzir um pouco mais até que ele tenha condições de caminhar por conta própria e entrar na associação livre.

Para me amparar, recorro ao Seminário 8, sobre a Transferência, de Lacan (1960-1961/1992) , onde, no capítulo 23, ele pergunta como situar o que deve ser o lugar do analista na transferência? No duplo sentido, qual seja, onde o analisando situa o analista e desde onde ele deve responder.

Quanto ao analista, ele diz que ele deve se situar, desde o início no lugar onde deverá chegar ao termo da análise. Mas, retornando ao seminário 17, Lacan (1969-70)  também diz que os discursos são formas de laço na análise, ou seja, os lugares vão mudando, com o giro dos discursos, a cada momento/tempo do trabalho.

A partir do que produzi até aqui, pensei se seria possível articular o que tenho pensado com a teoria dos discursos. Se é necessário para a entrada em análise, que o discurso seja histericizado[6], e é isso que tem sido difícil de promover, seria possível promovermos primeiramente o Discurso do Mestre[7], para então seguir girando o discurso? Não encontrei como Lacan propõe a virada do Discurso do Mestre pro do Capitalista, mas penso na possibilidade de uma reversão da troca.

Penso que promovendo a fala, a partir da recuperação do gozo fálico (uma possível regulação do gozo total proposto pelo discurso capitalista?). Além disso, re-construindo sua própria história, recolocar no lugar do agente o significante S1, em seu caráter de nome próprio, que é atribuído por um Outro e matriz para fazer seu próprio nome (herança simbólica, representa o lugar que o sujeito ocupa no desejo do Outro, sendo a base para ele se constituir enquanto sujeito de desejo).

Para exemplificar, trago aqui a obra de Tsyler, “Atualidade do Fantasma na Psicanálise” ( ano?), viabilizada gentilmente pela Mônica Silva, que trabalha a obra juntamente com o Edinei no Psicanálise na Cultura. Lá ele relata o trabalho com pessoas em condições muito precárias de ancoragem simbólica (guerra, expatriação, mortes e separações bruscas de familiares, pátria língua e cultura), em que ele promove um trabalho que chama de “narrativa imaginária”, onde se utiliza de elementos da cultura (documentos históricos, relatos de testemunhas, mitos) como arcabouço desde o qual os sujeitos podem retirar elementos para construir sua própria história.

Me lembrou muito do trabalho que realizávamos com crianças psicóticas e autistas, que ia nesta direção, da enunciação e sustentação no social de um discurso de sujeitos que ainda não podiam fazê-lo por conta própria ou o faziam de forma precária. Não entrarei em detalhes de como isso era feito, mas passava por atribuir sentido a estereotipias, atuações, gritos e falas descontextualizados, a partir de uma costura realizada, pelo clínico, de elementos que recolhia do entorno da criança (discurso dos pais, cuidadores, escola, relação transferencial e a leitura do brincar ou das produções da criança).  Do Real, para o Simbólico, se servindo do Imaginário.

Bem, na clínica, com adultos, não seria da mesma forma, mas pensando na posição transferencial, de ajudar a construir ao invés de descontruir, no que Colette Soler chamava de “Psicanálise às avessas”.

Para concluir, este é o trabalho com menor apoio teórico que eu já fiz. Me autorizei a fazê-lo por não ter encontrado na literatura algo que respondesse a isso que tenho vivido (e que os colegas têm compartilhado). Sinto que estou de fato inventando algo novo, com o que já tinha de teoria e o que tenho aprendido com as colegas no cartel.

Não tenho a segurança de comprovação no texto de Freud e Lacan, mas pincei conceitos que já trabalhei, ou que retornei de uma forma nova com a letra da Haydée e do Tsyler, e pus a trabalho no que tenho experimentado. Também resgatei outras formas de trabalhar que já fizeram parte da minha prática clínica.

 Neste momento, penso que sou eu que sustenta a teoria, não a teoria que me sustenta. Uso a teoria pra dar conta do que eu tenho experimentado fazer e pensar na clínica. Busco aqui, na troca com vocês, um retorno das coisas que tenho pensado, bem como mais referências pra me ajudar neste momento, pois como disse, estou tateando, e gostaria de avançar. Meu intuito hoje aqui é o de ouvir de vocês como têm lidado com isso e outras possíveis amarrações teóricas para que possa prosseguir.

Pra finalizar, Haydée (2016) chama para a responsabilidade do analista, de que o desfecho para o prognóstico do caso se daria na condução da análise dele, podendo viabilizar um trabalho de análise ou se instaurar uma “loucura de transferência”. Que baita responsabilidade!

Além disso, para além das análises que conduzimos, ela nos lembra que a Psicanálise: “ não é individualista e que tem suas consequências no laço social, e é por isso que a psicanálise tem a chance de continuar sendo uma praga.” Penso na responsabilidade de cada analista, em sustentar uma ética, nas análises que conduz, mas também no social. Fazer frente ao que se tem propagado como Psicanálise, usar das ferramentas que a tecnologia nos introduziu, a nosso favor, para refazer as  balizas de nossa prática.

Penso que a Psicanálise se sustenta porque o desejo não se doma, ele continua desorganizando, perturbando e insistindo. O sofrimento persiste, por mais soluções que o capitalismo proponha.

Finalizo com a citação do Martín Mezza, em seu artigo de 2017, “A psicanálise e o século: a persistência do movimento psicanalítico”: “O descobrimento freudiano alcança a verdade ali onde a razão a deprecia, a infatuação do poder a desconhece, e a evidência a aniquila. A verdade fala onde menos se pensa: no sofrimento. “Isso fala”, é o levantado pela prática analítica, o efeito de verdade sobre nossa vida, sobre nossa carne, enfim, “[...] a incidência da verdade como causa” (LACAN, [1956] 1998, p. 417).



REFERÊNCIAS



Freud, S. (1974). Totem e tabu. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol.13, pp.11-191). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1913).

LACAN, J. A coisa freudiana ou sentido do retorno a Freud em psicanálise (1956). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Preparação de texto de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 402-437. (Campo Freudiano no Brasil)

_____. (1960-1961/1992) O Seminário livro 8, A transferência Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

_____. (1962-1963/2005) O Seminário livro 10, A angústia Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

_____________.  (1992). Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar.

______.  (1972). DO DISCURSO PSICANALÍTICO (CONFERÊNCIA DE LACAN EM MILÃO EM 12 DE MAIO DE 1972) (Felgueiras, S.R. trad.). Disponível em: lacanempdf.blogspot.com/2017/07/do-discurso-psicanalitico-conferencia.html. Acesso em 2/2/2018.

Sgarioni. M. M. O Saber  e o Objeto no Discurso Capitalista. 2013. Porto Alegre. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertação.

J.J. Tsyler, “A Atualidade do O Fantasma na Psicanálise”. Tradução: Carla Novaes Letícia P. Fonsêca. Espaço Moebius Psicanálise. EPFCL.

ADENDO

E nós com isso?

Não posso deixar de pensar na nossa implicação enquanto psicanalistas, também mergulhados neste mesmo discurso da atualidade, pode estar contribuindo pra sustentação desta sintomática que encontramos em nossos pacientes.

Pois Lacan já dizia que com a oferta ele cria a demanda.

Como o caso de especialistas nessas categorias que citei acima, fazendo recortes do sujeito em termos de gênero, raça e classe social, que entram na mesma lógica mercantilista de oferecer o produto certo para a problemática do cliente,os chamados “nichos”.

Ou os que forneciam as respostas que o paciente buscava, num jogo de complete  a frase

Ou outros que trabalham com “pacotes” de descontos ou ainda que prometem eficácia e eficiência em seu tratamento.

Não é de se estranhar portanto que os pacientes cheguem perguntando o preço antes de querer saber sobre o nosso trabalho. Parecem fazer um leilão ao contrário, na lógica do quem dá menos.

Com a oferta do on line as pessoas não querem mais sair de casa p ir p suas análises, p fazer supervisão, p se encontrar nos grupos de estudos. "É td a mesma coisa, não faz diferença"



[1] Retomei a produção do cartel realizado nos anos de 2016 e 2017, com colegas da ALPL, onde trabalhamos com o Seminário 17 de Lacan, intitulado “O Avesso da Psicanálise”. O agente é o lugar do que determina a ação, e define o nome do discurso. Este aparentemente organiza o discurso. O outro é a alteridade à qual o discurso se dirige, é sobre quem incide a ação. A produção é o produto do discurso, resultado do dito do primeiro e o trabalho do segundo. A verdade é o que fundamenta o discurso, ou seja, estando localizada sob o agente, é ela quem na verdade o impulsiona.

[2] Os impossíveis freudianos de governar, educar, analisar e desejar.

 

[3]Analogia que Lacan faz à mais-valia de Marx, conceito que une a falta ao excesso. A ideia fundamental é a de que o discurso pressupõe a perda de um objeto (gozo) que deverá retornar enquanto objeto a ser recuperado: mais-de-gozar. Da mesma forma, Marx refere-se à existência deum mercado no qual o trabalho é comprado/vendido como uma mercadoria. Ao vender sua força de trabalho para o mercado, o trabalhador vende algo que será pago, mas também algo que não será. A diferença entre o valor pago pelo trabalho e o que o capitalista ganha com a produçãoresultante é o lucro, ou a mais-valia. Antes dessa lógica, o trabalhador nunca usufruiu do valor de troca de seu trabalho, mas agora que pertence ao mercado, ele não goza mais disso. A rigor, ele nunca gozou. Mas ao perdê-lo pode partir em busca da sua reconquista. Mas, diferentemente da mais-valia, o mais-de-gozar não seria um excedente a que se renunciou, porém um a mais ou a menos que nunca esteve lá (OLIVEIRA, 2008; SOUTO et al, 2014).

[4] traz o alerta de que, neste caso, o produto somos nós.

[5]Essa primeira experiência, então, marcará uma perda, um resto, que causa no sujeito a busca do reencontro, isto é, o reencontro do objeto perdido. É aí que o objeto a aparece, nomeando esta falta, no lugar de resto. Mas por quê? O objeto a vem no lugar dessa falta, pois, para o sujeito ser desejante, é preciso que o objeto causa de seu desejo lhe falte. É quando algo vem ocupar o lugar do objeto faltoso do desejo, que a angústia surge, alarmando que o lugar da falta que é estruturante pode vir a ser ocupado. A angústia vem denunciar a falta da falta, isto é, vem denunciar a completude do sujeito, não castrado

[6]Histericização do discurso (1/4 de giro, a partir do discurso do mestre), quando o analisante se coloca como barrado e se dirige ao analista com uma pergunta sobre os significantes que o marcaram. E o analista, ao se retirar desse lugar de Outro, promove mais um quarto de giro, posicionando-se enquanto a, e dirigindo-se ao analisante enquanto $, ao questionar o saber que ele produziu sobre o seu inconsciente (ou seu sintoma), possibilitando a construção de outros saberes (discurso do analista)

 

[7] O Discurso do Mestre é o discurso do inconsciente porque o S1 ocupa o lugar de agente, ordenando a cadeia significante que se dirige ao Outro (S2) Porém o S1 está reprimido desde a sua origem, assim, a bateria de significantes do Outro sofre a interferência de um significante que atua à revelia do sujeito. Na parte de baixo do matema está a fórmula do fantasma, que denota a relação que o sujeito tem com o gozo ($ <>a), inacessível para ele quando chega ao tratamento.

A parte de baixo do matema do Discurso do Mestre é a fórmula do Fantasma, presentificando a relação impossível entre sujeito e objeto.

O significante introduz um desencontro entre o sujeito e o objeto, sendo que o acesso a eles passam a ser apenas através da linguagem. Perde-se assim, a possibilidade de satisfação total/completa com o objeto.

“O gozo representado no Discurso do Mestre está referido à recuperação que a linguagem permite, e desta forma enquanto gozo fálico por estar submetido à falta que marca o acesso ao significante. Neste sentido, o saber, articulado à cadeia significante, atua enquanto meio de gozo que a estrutura discursiva permite recuperar pela fala” (dissertação) – esse é o discurso do inconsciente,o sujeito fala, produzindo um saber sobre isso que o move, a sua divisão enquanto sujeito atravessado pela linguagem. E produz o objeto a enquanto gozo fálico, limitado pela linguagem, o que foi possível recuperar de gozo (escrita minha)

 

Veja também

Textos do Fórum

Quem é o sujeito?

Mônica Maria Silva

Textos do Fórum

Ética e Estilo

Mônica Maria Silva

Textos do Fórum

A Extração de uma Ética

Zeila Torezan

Textos do Fórum

Os quatro pontos cardeais

Zeila Cristina Facci Torezan

Participe de nossos próximos eventos

Ver próximos eventos