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A Extração de uma Ética

por Zeila Torezan

A extração de uma ética

 

Tomo como ponto de partida a observação feita por Fabiana, em nosso primeiro fórum, sobre a escolha da ética como tema para este ano: “entendo essa escolha como uma possibilidade de continuidade no que diz respeito à posição do analista.” Parto daí, pois além de concordar com ela, este tem sido um tema constante de trabalho e pesquisa para mim, nos mais diferentes tempos e espaços que venho habitando em meu percurso de produção como analista há trinta e cinco anos. A propósito, me ocupei dele no ano passado, tanto no fórum, quanto na Jornada. Parto daí, também pela crença de que este é um tema que concerne a todos nós de forma constante. Não estamos sempre buscando uma possibilidade de continuidade de nossa posição como analistas? Não é por isso que seguimos estudando, transmitindo, fazendo escola, nos interrogando com os impasses que, inexoravelmente, se apresentam em nossa prática? Por este motivo, há doze anos, convidei alguns colegas para fundarmos a ALPL e, acredito, eles aceitaram a empreitada e ainda seguimos pela mesma razão: a possibilidade da continuidade de nossa posição como analistas, pois ela nunca nos é dada como certa, verdadeira ou acabada.

Além do mais, penso a questão da ética para nosso campo como indissociável da posição ou da função analista ou, ainda, do operador que denominamos desejo do analista e, portanto, do discurso analítico que é a estrutura que sustenta a possibilidade deste operador. Este discurso, diferentemente dos outros três, não pretende amestrar (dominar, curar) o impossível em causa (a proporção sexual ou o real). Os quatro discursos têm o impossível como cerne, o impossível da realização plena da tarefa, o que se relaciona com a impotência da produção em revelar a verdade. A diferença no discurso analítico/do psicanalista é que ele parte de seu impossível como causa e não almeja driblar essa estrutura fracassada per se através de seu referente/agente. Ao contrário, toma-o como causa e visa sustentá-lo. É o que pode haver de mais subversivo em um discurso, não pretender nenhuma solução. Palavras em Estou falando com as paredes: “um saber que não pode fazer nada, o saber da impotência, é esse que o psicanalista poderia veicular” (Lacan, 2011, p.38). Não pretender nenhuma solução, não buscar a revelação de uma verdade que daria conta do impossível de curar, isso não aponta para uma ética peculiar à estrutura do discurso analítico?

A primeira vez que estudei o seminário “A Ética da psicanálise” (Lacan, 1997) foi no final dos anos 90, quando trabalhava em hospital geral e acabei transformando minhas inquietações sobre a sustentação do desejo do analista naquele contexto em pergunta para um mestrado. E a segunda volta sobre ele, lá por 2005, partiu da intriga com alguns impasses peculiares que começavam a aparecer na clínica e, portanto, traziam desafios para a função analista. Sim, pois estas questões associadas às mudanças, dificuldades e particularidades das apresentações clínicas não são novidade, como se pode pensar à primeira vista em função do aumento do volume destas situações, a psicanálise se ocupa delas há 25 ou 30 anos, o que já nos permite esboçar alguns elementos teóricos com mais segurança, embora, nunca fechando o campo de investigação.

Acrescento nesta lista que aponta para o enlace do qual parto (ética e discurso analítico), a criação do dispositivo Diálogos há cinco anos, um espaço de interlocução e investigação com analistas, em suas jovens experiências. Este dispositivo tem como pano de fundo a preocupação com os caminhos da psicanálise hoje e, portanto, as implicações para a sustentação do nosso operador fundamental (o desejo do analista) e dos três pilares inquestionáveis para se pensar a psicanálise seja lá em qual vertente ou em qual tempo for: associação livre, atenção flutuante e os conceitos fundamentais. Sublinho, em qual vertente ou em qual tempo for, pois nunca fui partidária da ideia de uma psicanálise verdadeira ou falsa e sim que existem pilares fundamentais de um campo, sem os quais não temos psicanálise. Agora, os desdobramento e diferenças que se produzem a partir daí é outra conversa, são pontos que podemos discordar, divergir e dialogar como psicanalistas com diferentes leituras, desde que os pilares fundamentais se sustem. Uma psicanálise, mas com diferentes propostas de como operar a partir destes pilares fundamentais e também com mudanças que vão sendo construídas a partir da prática, mas sempre mantendo os pilares fundamentais.

Então, será que podemos dizer que estas diferentes propostas de operar a partir de um campo, que é a psicanálise, compartilham de uma mesma ética? Parece que se nos ativermos ao enunciado do título do seminário “a ética da psicanálise”, a resposta seria afirmativa. Mas, se alcançarmos também a enunciação que foi sendo construída ao longo do ensino de Lacan, não mais.  Como já indiquei acima, pensar a psicanálise como uma prática fundada em uma estrutura de discurso (conceito específico desta leitura) implica uma particularidade que concerne a uma ética.

Com as cartas na mesa, convido-os a me acompanharem em algumas formulações de Lacan, com as quais venho me ocupando para esboçar a ideia central que começo a dividir com vocês: há uma relação direta entre o discurso analítico e a questão da ética para nós, o que implica haver também uma relação direta entre ética e a função analista em sua operatória.

Começo com a primeira aula do seminário 7 (Lacan, 1997):

 

“A questão ética, uma vez que a posição de Freud nos faz progredir neste domínio, articula-se por meio de uma orientação do referenciamento do homem em relação ao real” (p.21)

 

Achei esta afirmação de uma força, clareza e precisão admiráveis. Uma daquelas coisas simples, quase óbvias, mas de grande dimensão e que a gente leva tempo para conseguir formular de forma tão clara e pontual. Com Freud, com a invenção da psicanálise, a questão ética é deslocada, o referenciamento do homem não está mais em relação ao bem ou à razão, ainda que ele busque a felicidade, mas ao real. Uma afirmação forte, por indicar que a questão ética aponta para a insuperável condição de mal-estar da estrutura enunciada por Freud e depois lida e acrescida por Lacan como a não proporção sexual. Pensar no real como o referente para o homem nos leva de volta à particularidade do discurso analítico, que não visa suturar o impossível e, sim, reconhecê-lo para que algo possa aí se fazer.

Quinze anos depois, sem 21 (Lacan, 2016), dois trechos que me parecem um desdobramento deste fundamento de 59:

 

“O que é que Freud nos indica com o surgimento do inconsciente? É que, em qualquer ponto em que se esteja dessa pretensa viagem, a estrutura – isso é, a relação com um certo saber, a estrutura, ela não cede.” (p.24)

 

“Será que isso não estaria forjando, para nós, uma ética bem outra, uma ética que se funda sobre a recusa de ser não-tolos, sobre a maneira de ser cada vez mais fortemente tolos deste saber, deste inconsciente que, no final das contas, é nosso único lote de saber?” .... É preciso ser tolo, quer dizer, colar, colar na estrutura. “(p.26)

 

Então, com Freud temos a questão ética referenciada ao real, com a clareza de que se há algo que não cede, ao longo de toda a nossa ex-istência, se há algo da ordem de uma estrutura é o saber inconsciente. Isso nos impulsiona, nos leva a forjar (modelar) uma ética fundada na necessidade de ser tolo desta estrutura, tolo do único saber possível, crédulos deste saber como uma estrutura. A aposta no inconsciente como único lote de saber da forma mais genuína a ponto de ser ingênua, pura, é o fundamento para a produção de uma ética.

Logo no início do seminário seguinte, RSI (Lacan, 2022), a temática prossegue de forma bastante interessante, abrindo várias questões a serem seriamente trabalhadas por nós:

 

“Pode um analista – de acordo com o que acabei de aludir concernente à injúria – comportar-se como um imbecil? Como se julga o que qualifico de imbecilidade? Certamente tem um sentido, inclusive no discurso analítico.” (p.18)

 

“há sujeitos para quem a análise – digo, a experiência analítica – quando a ela se dispõem, não resolve. E enfatizo: torna-lhes imbecis.” (p.19)

 

Estes trechos fazem referência às afirmações de Lacan[1] de que se um canalha passar pela experiência analítica com uma visada didática, consegue, no máximo ficar burro, imbecil ou idiota. O imbecil ou idiota aqui é aquele incapaz de criticidade, de articulação, de produção, o fiel servidor perfeito aos canalhas.  Seja permanecendo canalha (manipulador que não reconhece o Outro e tão pouco o outro), sendo idiota ou um canalha idiotizado, o exercício da função analista fica comprometido e, mesmo, perigoso. Este ponto já deu muito pano para manga e acho que deve mesmo dar, é uma questão muito difícil e delicada da qual não podemos recuar e que concerne diretamente ao trabalho e à função de uma escola.  Por isso mesmo, abre uma nova vereda, um recorte do tema maior aqui em pauta. Até podemos conversar um pouquinho sobre ele, mas hoje me interessa focar na conclusão a que Lacan chega, expressa nas duas citações que seguem às anteriores:

 

“Isso talvez signifique que eles seriam mais úteis em outro lugar. Para outro lugar eles tem aptidões evidentes. O que nos traz à ética de cada discurso e não é por acaso que avancei o termo “Ética da psicanálise”, a ética não é a mesma, e talvez seja para aqueles cuja ética teria sido exitosa em outro lugar, que a análise fracassa.” (p.19)

 

“Partindo dessa premissa, indico que não há outa ética que aquela de jogar de acordo com a estrutura de um discurso e que reencontramos aqui meu título do ano passado: são os não-tolos, aqueles que não jogam com as regras do discurso, que estão a caminho de errar.” (p.19)

 

Não sei se concordam, mas me parecem afirmações luminosas. Está escrito com todas as letras: a ética concerne à um discurso, ou melhor, à estrutura de um discurso ou, ainda com mais precisão, ao jogo que só os tolos (não os não-tolos, nem os imbecis ou os canalhas) podem jogar a partir das regras desta estrutura de discurso. E o jogo se faz jogando com as regras do discurso analítico, sendo tolo desta estrutura que não cede até a morte (saber inconsciente). E, se “não há outra ética do que aquela de jogar de acordo com a estrutura de um discurso” somado ao fato de que não há jogo jogado, concluo que a ética está na ação de jogar, no ato de jogar como tolo desta estrutura de discurso. Caso contrário vaguearemos por aí sem rumo, sem norte, sem ética.

Neste ponto, retorno ao fórum de abertura e à observação que trouxe para o debate a partir de uma citação de Televisão (Lacan, 2003) sobre a resposta de Lacan para a pergunta kantiana “o que devo fazer?”: “É simples, é o que eu faço: extrair de minha prática a ética do Bem-dizer.”

A ação de jogar de acordo com a estrutura de um discurso permite extrair desta prática, deste jogar, uma ética denominada Bem-dizer. Da ética de jogar como tolo as regras de um discurso se extrai uma ética do Bem-dizer. Temos uma ética que concerne ao discurso analítico e implica uma operatória da função analista com a minúsculo (e, portanto, o discurso do psicanalista) e desta ética se extrai uma outra que concerne ao analisante, uma ética do Bem-dizer. Acho que a passagem de uma ética do desejo dos anos 60 para uma ética do Bem-dizer dos anos 70 está ancorada nesta especificidade de uma ética que concerne à função analista e, portanto, está diretamente ligada à estrutura de um discurso e ao jogo, a partir das regras desta estrutura, que permite extrair desta prática uma ética que possibilite uma estética.

Por isso defendi em meu texto de nossa última Jornada que o caminho para a sustentação de nossa prática é sempre devir pequeno analista ou analista com a minúsculo, a despeito de quaisquer mudanças que sejam necessárias na operatória, na visada da interpretação, na condução das entrevistas, defendo que a função analista é a mesma e deve ser elevada à sua máxima potência, à sua radicalização. Só assim podemos jogar como tolos e de acordo com as regras da estrutura para que o gozo-sentido (juis-sens), alcançado como ética do Bem-dizer, sirva de instrumento para desatar o nó de significantes em que consiste o sintoma (Lacan, 2003). Ainda em Televisão, Lacan indica que o analista nesse lugar de dejeto, de rebotalho do gozo, lugar que ali ele denomina de santo, é para ele um princípio e a saída do discurso do capitalista, em suas palavras:

 

“O lugar do psicanalista, não se pode situá-lo melhor, se não pelo que antigamente se chamava de santo. O santo não faz caridade, presta-se a bancar o dejeto: faz descaridade.... Só o santo pode ficar frio, bulhufas para ele (o gozo). O santo é o rebotalho do gozo.... Quanto mais somos santos, mais rimos, esse é o meu princípio, ou até mesmo a saída do discurso do capitalista” (p.518).

 

Plenamente de acordo.

Zeila Torezan

 

 

 

Post scriptum: pequenos acréscimos a partir do debate conduzido por Carolina Moreira

 

Agradeço à Carolina e aos participantes no evento pelos comentários e contribuições ao meu trabalho e registro aqui alguns efeitos do debate.

O primeiro ponto levantado pela leitura da debatedora foi o pedido de desenvolver um pouco mais a ideia central do texto: a relação entre discurso analítico/discurso do psicanalista (posição e função analista) e ética. Iniciei, procurando transmitir a existência desta relação em minha prática, através do relato sobre meus caminhos perseguindo a temática da sustentação da função analista (em hospital geral, na clínica com seus impasses, nos dispositivos de escola) e, portanto, do discurso analítico/do psicanalista como estrutura que permite a sustentação desta operatória do analista. Ainda indiquei que estudei o seminário sobre a ética, justamente em dois momentos que me ocupava das dificuldades de sustentar o operador desejo do analista e, consequentemente, estava em causa o discurso da psicanálise/do psicanalista. Também trouxe no texto onde estou lendo esta proposição em Lacan, através das citações de dois momentos de seu ensino. Por ora, estes são os elementos principais que sustentam minha posição e seu desdobramento: extraímos a ética de nossa prática.

O segundo ponto do debate trouxe a questão sobre a preocupação com os caminhos da psicanálise hoje e a diferenciação entre desejo do analista, posição do analista e função analista. Sobre a preocupação, repito que ela sempre existiu e deve continuar existindo, pois nos coloca a trabalho nesta “profissão impossível”. Talvez seja melhor chamar de ocupação, pois não é prévia à nada, é sempre atualizada frente aos impasses que vão surgindo. E, de forma nenhuma, é paralisadora ou motivada por um ideal de retorno à algum lugar supostamente melhor, ao contrário, é esta ocupação que nos leva adiante. Resumidamente e parafraseando Lacan, nosso grande desafio continua sendo, a despeito das particularidades de cada tempo, a saída do discurso do capitalista. É nossa grande e constante luta. Sobre as especificidades dos conceitos, resumo: o desejo do analista é o operador fundamental alcançado com o fim de análise, a partir dele será possível ocupar a posição analista (semblante de a) e, assim, exercer a função analista em sua operatória.

Em seguida, Carolina traz para discussão o seguinte trecho de meu texto: “Isso nos impulsiona, nos leva a forjar (modelar) uma ética fundada na necessidade de ser tolo desta estrutura, tolo do único saber possível, crédulos deste saber como uma estrutura. A aposta no inconsciente como único lote de saber da forma mais genuína a ponto de ser ingênua, pura, é o fundamento para a produção de uma ética.” Acho que quando falamos em ética, este é nosso pilar fundamental, o cerne de uma estrutura. A aposta no saber inconsciente como o único lote de saber, como a estrutura que não cede, é o que faz a passagem de analisante à analista e permite que o desejo do analista se desenhe como um operador através do qual uma posição e uma função podem se exercer para a extração de uma ética.

Para encerrar, registro um ponto que foi brevemente comentado a partir da interlocução com alguns dos participantes e extrapola os objetivos do texto inicial, mas muito me interessa trabalhar, o qual leio assim: quais as consequências, para o que nos concerne como uma ética, do atravessamento do mal-estar da cultura no mal-estar da estrutura e na produção de um analista? Sustentando esta e outras questões, despeço-me, reiterando meus agradecimentos aos que estiveram no evento e a você que lê este texto.

 

Zeila Torezan

 

Referências

 

Lacan, J. (1997). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lacan, J. (2016). Os não-tolos vagueiam. Salvador: Espaço Moebius.

Lacan, J. (2022). RSI. São Paulo: Escola dos fóruns do campo lacaniano.

Lacan, J. (2011). Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Saint-Anne. Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, J. ( 2003). Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar



[1] Em dois textos: Televisão e O saber do psicanalista.

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