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Quem é o sujeito?

por Mônica Maria Silva

O que me moveu na escrita deste texto foi construir uma resposta para a questão que lhe dá título. Por alguns dias, fiquei paralisada, não conseguia iniciar, e me dei conta de que estava tentando escrever a partir de uma certeza, de uma resposta conhecida de antemão — ou seja, apresentar diretamente uma resposta à questão.

Bem, a paralisia deu lugar ao movimento quando percebi que este se dá pela dúvida, e não pela certeza: trata-se de deixar-se levar pela dúvida, sem garantia de chegada.

E o que isso tem a ver com o propósito desta questão? Bem, neste ano, o tema de trabalho da ALPL é o objeto da psicanálise. Confesso que, no início, fiz certa confusão. No ano passado, estudamos sobre a angústia e, consequentemente, sobre o objeto a. A confusão se deu porque eu considerava o objeto na psicanálise, e não da psicanálise, o que muda a perspectiva para abordar questões entrecruzadas.

Por que objeto da psicanálise? O que Lacan queria ao proferir este seminário que leva este título?  Souza & Guarreschi (2018) apontam que:

O que Lacan se esforçará a partir daí até o final desse seminário será demonstrar principalmente pela topologia de superfície, os lugares do sujeito e do objeto. Nesse percurso, temos as variantes dos cortes sobre essas superfícies, que Lacan tratará como as possíveis intervenções do analista. Pela topologia de superfície e seu manejo, podemos acompanhar, a partir dos cortes, mudanças nas estruturas, e não mudanças de estruturas. Sabemos como isso é importante para tratarmos a clínica. (SOUZA & GUARRESCHI, 2018 p.139 – grifos das autoras)

Nesse seminário, Lacan trabalha intensamente com a topologia, questão iniciada no texto Ciência e Verdade, também publicado em Outros Escritos. Ao abrir o seminário com esse texto, penso que Lacan busca circunscrever de que sujeito se trata na psicanálise, pois é sobre ele que irá tratar ao longo de todo o seminário.

Voltando ao título, a resposta à questão não é simples. Trata-se de um ponto central que irá regular e tecer os elementos articulados ao tratamento, como apontado pelas autoras citadas.

Seguindo a temática do texto de abertura do seminário, destaco que a ciência moderna tem seu marco inaugural com o cogito cartesiano. Freud (1932/1996a) não ignora as questões que envolvem a relação da psicanálise com a ciência. Na conferência XXXV, das Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise, intitulada “A questão de uma Weltanschauung” — termo que pode significar “cosmovisão” ou, como o tradutor observa em nota de rodapé, “uma visão do universo” — Freud expressa sua preocupação de que a psicanálise pudesse ser considerada uma “visão do universo”, como a religião, a magia, a filosofia e, até mesmo, em alguma medida, a ciência. Ele aponta que: “A Weltanschauung da ciência supõe a uniformidade da explicação do universo; mas o faz apenas na qualidade de projeto, cuja realização é relegada ao futuro” (Freud, 1932/1996ª p.156)

Penso que a uniformidade a qual Freud se refere nesta passagem é a do pensamento clássico, que antecede a ciência moderna.

De acordo com Pereira (2003), no pensamento clássico, a uniformidade exclui a contradição. Na visão de mundo aristotélica, existe um lugar para cada coisa, e cada coisa está em seu lugar. A verdade, no pensamento clássico, está no raciocínio correto. A uniformidade, como uma moldura sem estampa, é o pensamento sem a unidade dos contrários (Pereira, 2003). É a partir da lógica dialética que os problemas formalmente contraditórios — como por exemplo a relação entre o real e o ideal, entre sujeito e objeto — podem se contrapor na dinâmica do discurso. Talvez a realização relegada ao futuro, mencionada por Freud, seja essa que fica a cargo da ciência moderna e da lógica dialética. Ainda neste texto, Freud afirma que:

(...) as exigências feitas a uma Weltanschauung somente se baseiam na emoção. A ciência apercebe-se do fato de que a mente do homem cria tais exigências e está pronta a examinar suas origens, mas não tem o mais leve motivo para considerá-las justificadas. Pelo contrário, vê isto como advertência no sentido de cuidadosamente separar do conhecimento tudo o que é ilusão e o que é resultado de exigências emocionais como estas (Freud, 1932/1996a p.156)

O esforço da ciência “é de chegar à correspondência com a realidade (...) A essa correspondência com o mundo externo real chamamos de verdade” (Freud, 1932/1996a p. 166). Freud afirma que a contribuição da psicanálise à ciência é estender sua pesquisa àquilo que a ciência deixa como resto: a área mental. Essa exigência por uma visão universal também está presente na religião e na filosofia. Freud cita o poeta Hein, que diz que o filosofo “Com seus barretes de dormir e com os trapos de seu roupão de noite ele remenda as falhas do edifício do universo” (1932/1996a p.157).

Para Lacan (1965-1966/2018) a psicanálise foi possível a partir do advento da ciência moderna. O sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência, e Lacan acrescenta: “o sujeito da psicanálise é o correlato antinômico do sujeito da ciência moderna”.  O cogito cartesiano é o marco inaugural dessa ciência. O sujeito da ciência moderna encontra sua certeza pelo procedimento da dúvida metódica. O passo ético de Descartes foi não ceder em seu desejo e arrancar da dúvida a certeza – “sou”. Eis o sujeito da ciência, que aparece para logo em seguida esvanecer, ao depositar em Deus a garantia.

Para Lacan, a ciência visa recobrir a totalidade do real, forcluindo o sujeito. Ele afirma que ela “comprova-se definida pelo esforço em suturá-lo” (Lacan 1965-1966/2018 p.17), ali onde ele, o sujeito, insiste em aparecer. Descartes faz do sujeito substância pensante e Lacan (1964) aponta que o erro de Descartes é crer que este pensamento é um saber. Vorsatz (2015) afirma que: “Descartes faz surgir o sujeito, mas não lhe dá voz – porque se ocupa em dar-lhe consistência, fundamentando-o no ser.” (p.265)

E onde está este contrário, do correlato antinômico afirmado por Lacan, já que ambos nascem da dúvida? Está na certeza. Freud avança aonde Descartes recua, e não cede em seu desejo. Aponta não para um ser garantido por Deus, e, portanto, para sempre culpado, mas sustenta o sujeito ali onde ele não é. Ele não é senhor de sua própria morada, uma vez que a verdade do pensamento inconsciente o funda. Existe um pensamento que pensa no sujeito; a verdade é causa. A insistência do aparecimento do sujeito na ciência dá conta de que não existe um saber verdadeiro — daí a razão de não ser possível dizer a verdade sobre a verdade. Sobre isso Lacan afirma:

não existe metalinguagem, afirmação feita para situar todo o lógico-positivismo, que nenhuma linguagem poderia dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, uma vez que a verdade se funda no fato de que fala e não dispões de outro meio para fazê-lo (Lacan 1965-1966/2018 p.23)

Lacan acrescenta que Freud soube deixar a verdade falar, — verdade do inconsciente. Diante da divisão entre saber e verdade, Freud (1932/1996b) convida o sujeito com o seu chamado: “Lá, onde isso estava, lá, como sujeito [je], devo advir” — como sujeito e não como homem, sujeito do inconsciente, através do discurso deixar a verdade falar.

Penso que o correlato antinômico está também em não mais conceber o homem como culpado, mas responsável, assim como afirma Lacan no texto “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” (Lacan 1965-1966/2018 p.14). O sujeito é responsável pelo inconsciente que o determina. Esse sujeito que a ciência busca forcluir, aparece nas fendas, nas falhas do discurso.  E como escutá-lo? Nos primeiros parágrafos deste texto Lacan afirma:

O psicanalista identifica esta fenda de maneira, de certa forma cotidiana (...) Mas – para que ele saiba o que ocorre com sua práxis ou simplesmente a dirija conforme o que lhe é acessível – não basta que essa divisão seja para ele um fato empírico nem tampouco que o fato empírico tenha tomado forma de paradoxo. (LACAN, 1965-1966/2018 p. 11, grifos do tradutor)

Ele deixa muito claro que não basta identificar a fenda, constatá-la na forma de um paradoxo que pode aparecer no discurso do analisando. Vorsatz (2015) lembra que “o sujeito não é ser, nem substância, nem ente” (p.265) também não é “tributário do conhecimento ou ainda da representação. Tampouco se trata do homem, caso em que seria o sujeito da antropologia, menos ainda o sujeito da sociologia” (p.253). Para que o psicanalista dirija a sua práxis, e saiba sobre ela, é preciso ir além do empirismo. É imprescindível assimilar a lógica de funcionamento do sujeito. Lacan (1965/1966, 2018) propõe que isso é possível por meio da topologia.

 É neste sentido que Souza & Guarreschi (2018) lembram que, neste seminário —mas não só nele —, a topologia formaliza a clínica. Trago aqui uma citação de um matemático feita pelas autoras: 

Topologia é o ramo da geometria que lida com as propriedades de superfícies e formas em geral, mas não engloba medidas de comprimento ou ângulos. Destacam-se as qualidades que não mudam quando formatos são transformados em outros formatos. Podemos empurrar e puxar o formato em qualquer direção e por isso a topologia é algumas vezes descrita como a ‘geometria da folha de borracha’. Topólogos são pessoas que não conseguem perceber a diferença entre uma rosca e uma xícara de café! Uma rosca é uma superfície dotada de um só buraco. Uma xícara de café é a mesma coisa, mas o buraco toma a forma de uma alça. (Crilli, 2007, p.94 in Souza &Guarreschi 2018, p.140)

Neste seminário especificamente, Lacan trabalha com várias figuras topológicas, como o toro, que permite articular a função da demanda e do desejo, e a Banda de Moebius, que ele menciona na primeira lição para tratar da divisão do sujeito como divisão entre saber e verdade. Por estas duas figuras, por exemplo, é possível abordar como, no manejo clínico, pode ocorrer uma mudança na estrutura sem que ocorra uma mudança de estrutura, quando, por exemplo a partir do toro, pelo corte, se extrai a banda de Moebius. Não pretendo discorrer sobre essas manobras — este é o trabalho para o ano —, apenas as menciono para levantar esta consideração, que, a meu ver, é imprescindível assimilar: de que sujeito se trata na psicanálise? – Para, assim, poder colher o que da topologia é possível formalizar a clínica, sem deslizar para o campo representacional.

O uso que Lacan faz da topologia é comparável com o que Freud faz da biologia. Por exemplo, como no conceito de pulsão que estaria associado a um apoio na necessidade biológica para se desviar dela. Essa referência a biologia está ao longo da obra de Freud. Mas o próprio Freud afirma que não se trata de uma localização no corpo biológico. Penso, contudo, que não se trata de desvio, uma vez que o desvio pressupõe uma possibilidade de retorno ao normal, e não há esse normal biológico ao que se pode ou deve retornar.

Lacan também se serve da topologia e da lógica matemática, por exemplo, mas também não com uma obediência rigorosa aos seus pressupostos. Mas penso, igualmente, que não se trata de um desvio como o mencionado acima.

Essa referência a biologia, pode levar a alguns mal-entendidos como por exemplo acreditar que, para ser psicanalista, seria preciso estudar medicina. Outra possibilidade é considerar a topologia como uma metáfora do sujeito.  No dicionário, metáfora é a “designação de um objeto ou qualidade mediante uma palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relação de semelhança (p.ex., ele tem uma vontade de ferro, para designar uma vontade forte, como o ferro)”. Não estou certa de que seria uma maneira melhor de se considerar o uso da topologia feito por Lacan.

Pensei que com essa ideia da topologia — e também da lógica matemática —, como metáfora do sujeito pudesse ser possível articular algo do Simbólico, do Imaginário e do Real. Me explico: Simbólico, uma vez que uma metáfora é uma figura de linguagem e, consequentemente, nos afasta de uma captura predominantemente imaginária da representação. Imaginário, pelo uso das figuras topológicas que descolam da imagem da pessoa ou do indivíduo.  Real, com a utilização das letras e também das fórmulas matemáticas.

Será que pensar a topologia como metáfora não é forçar um sentido?

Acredito que a importância de utilizar a topologia está na lógica. Como pensar, por exemplo, a participação do analista na produção do inconsciente do analisante sem o recurso à topologia? Ou cairíamos na contratransferência, em que existiriam dois sujeitos, ou então, seriam duas pessoas misturadas? Esquisito, não?  Não é disso que se trata no trabalho de análise, uma vez que não são dois sujeitos. O analista só consegue operar se, para ele, essa assimilação se deu. Ela se dá na sua experiência com a psicanálise, que engloba não só a sua práxis, mas a experiência com o seu inconsciente, e o estudo e formalização de sua clínica.

Sobre a topologia como formalização da clínica, Souza & Guarreschi (2018), fazendo referência a manobra de extrair do toro a Banda de Moebius, relacionam essa operação com o corte realizado em análise que visa separar a demanda do desejo que produz uma mudança na estrutura, mas não de estrutura:

Posta essa separação, temos o esvaziamento para que o corte opere com aquilo do sujeito que pode extrair a banda de dupla volta de sua divisão. Sou isso e Sou aquilo. Divisão que põe a funcionar o que chamamos queda do objeto. E no percurso de uma análise a possibilidade de que algo se costure e o moebiano possa aparecer como a borda única do sujeito em questão. (SOUZA & GUARRESCHI, 2018 p.142)

Caminhando para o fim da minha apresentação, volto ao início do meu texto e penso que é preciso quebrar a cabeça. Faço essa analogia com os textos de Lacan, como quando vamos montar um quebra-cabeça, e a figura que está na caixa nos orienta para saber como ele deve ser no final — mas, em Lacan, a figura só nos dá pistas. Outros que já trilharam esse caminho podem nos ajudar a encontrar as peças que vão nos cantos e formam a moldura, assim como o analista —, mas não para alcançar uma uniformidade, como uma moldura sem estampa, que é aquela do pensamento que exclui os contrários.

Outra analogia que faço é que seria como trocar o quadro da Extração da Pedra da Loucura de Bosch (1494), pelo da Verdade Saindo do Poço de Jean–Léon Gérome (1896), — uma verdade nua e viva. Não extrair a pedra da loucura, mas deixar essas coisas loucas aparecerem no discurso.

E para finalizar, cito um recorte clínico de um analisando que, depois de algumas sessões iniciais, nas quais se queixa da desorganização de sua vida, chega a seguinte dúvida: “Por que será que organizo a vida dos outros, mas não consigo organizar a minha? “  Ao lhe perguntar como isso começou, ele me diz que foi quando iniciou a sua profissão — ele é mecânico. Na sequência, situa esse começo em sua infância, quando brincava na oficina do pai, construía carrinhos com pedaços de madeira mas diz que eles não tinham rodas. O homem da ciência buscaria eliminar esse paradoxo, e pediria para contar sobre a sua vida adulta, na qual de fato teve início a sua profissão, todo o resto não interessaria pois diria respeito às suas emoções que só distorcem a verdade. Mas como dizia o poeta, restos interessam.

Ao final deste texto, não tenho todas as respostas para a questão que o introduz, pois é impossível tê-las, mas é possível propor um outro título (questão) para continuar – Que sujeito?  Sem o quem, pois não se trata da pessoa do sujeito, e sem o é, uma vez que não se trata de apreendê-lo, mas de deixar ser.

Referências:

Freud, S. (1996a). Novas Conferências Introdutórias sobre psicanálise – A questão de uma Weltanschaaung. In S. Freud [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1933 [1932])

Freud, S. (1996b). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise – A dissecção da personalidade psíquica. In S. Freud [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1933 [1932])

LACAN, Jacques (2018). O Seminário 13: o objeto da psicanálise. Edição não comercial destinada aos membros da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil. (Trabalho original publicado em 1965-1966).

SOUZA, Glaucia Nagem de; GUARRESCHI, Luciana de Freitas (2018). O Seminário livro 13: o objeto da psicanálise de Jacques Lacan. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro. N.37 p.135-145. Dezembro 2018.

VORSATZ, Ingrid (2015). O sujeito da psicanálise e o sujeito da ciência: Descartes, Freud e Lacan. Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 27, n. 2, p. 249-273.

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