Um Ato Analítico, Um Analista

De início, sobre o título deste trabalho, alguém poderia indagar: você não se equivocou na ordem das coisas? Não seria o inverso, um analista, um ato analítico? Afinal, não é necessário haver analista para que o ato se produza?

E na sequência, ainda sobre o título, nova objeção poderia ser feita ao artigo um utilizado, artigo este que, embora se classifique como indefinido, pode comportar paradoxalmente duas idéias distintas. Uma delas aponta para certa singularidade ou particularidade do ato e do analista, um e não qualquer outro, um e não todos, não uma categoria. A outra, ao contrário, pode sugerir para ambos os termos implicados a possibilidade de integridade, existência ontológica, concretude, totalidade ou universalização: um todo.

Respondo aos meus interlocutores imaginários que graças à inevitável equivocidade da linguagem realmente todas estas observações ou objeções procedem, mas apesar de terem lá a sua verdade não tornam inoperante meu tema e, portante, não invalidam outras possíveis articulações que procuro traçar neste texto.

No que concerne ao analista já sabemos não se tratar de uma profissão, ocupação, condição ou dom. Então, como pergunta Lacan no Seminário “O ato analítico”, logo no início da lição de 13 de março de 68: o que é ser psicanalista?

Algumas respostas possíveis: ser analista é, com sua presença, suportar fazer semblante do objeto que convém a cada analisante até o momento final de cair desta posição a fazer o luto desta perda. É reconhecer que a análise é apenas um dispositivo temporário, uma pretensa situação, e que o que se passa ali, incluindo o analista, é fruto do mesmo. Ou ainda: ser analista é trabalhar na direção de não sê-lo, é sustentar um lugar na transferência para sair dele. É saber que não se é analista (e aí a condição ontológica é negada), se está analista, faz-se analista na e pela transferência.

Diz-se também que o psicanalista se define como uma função matemática, ou seja, pela existência de uma relação entre duas grandezas ou entre duas variáveis. Numa função matemática, a mudança na variável independente x, deve produzir alteração também constante a despeito da variação de x, não há função.

Desta forma, se definimos o analista como uma função matemática, ele não é per se, ele está, ele se faz na dependência da existência de relação entre duas variáveis, a saber, o desejo do analista e a demanda de análise, ou seja, mais uma vez, na dependência da transferência.

Concluiu-se que o analista não participa de uma categoria ou classe, a profissão analista, e também não existe como entidade ou identidade acabada, não é um ser singular. Entretanto, penso que a função analista e efetiva, e, assim, se particulariza, a cada vez, a cada ato analítico.

Desta maneira, retornando ao artigo do título, o analista como função é sempre um, no sentido único, com cada um de seus analisantes ou, ainda, um a cada uma das sessões com cada um dos seus analisantes ou mais, um a cada um de seus atos em cada uma das sessões com cada um de seus analisantes. Neste ponto proponho uma leitura deste um em referência à forma como Lacan trabalha o traço unário no seminário IX, A Identificação.

O traço unário surge do apagamento do objeto, marcando a divisão do sujeito pela linguagem, o distanciamento do objeto e a pura diferença. O traço é significante de uma ausência que se presentifica a cada volta da repetição, onde Lacan localiza a origem do inconsciente e do desejo. Trata-se da marca primeira de surgimento do sujeito a partir do significante, todo significante tem o traço como suporte. Assim, o Um, do traço unário, é fundamento da diferença e não da unificação imaginária. Um como diferença, como ausência e como surgimento do significante. Assim também, um ato analítico, um analista, ambos como diferença e não unificação ou totalidade; como ausência, evanescentes e não ontológicos e, também, como produtos e produtores de significantes.

Com Lacan, nos desdobramentos de sua afirmação de que o ato é do analista e a tarefa é do analisante, encontramos as idéias de que o ato analítico instrumenta a tarefa ou habilita a marcha do analisante; que o ato só se confirma como tal a posteriori e que há ato analítico quando algo de novo pode começar. Assim, a intervenção do analista só será sancionada como ato se for eficaz em habilitar a tarefa do analisante e se, com ela, algo de novo puder começar.

Entendo que nesta articulação entre ato e tarefa, algo novo começa dos dois lados.

Do lado do analisante, trata-se da possibilidade de ler e de reescrever algum ponto de sua história de maneira alternativa às versões anteriores para poder fazer com os velhos traços o começo de um novo desenho, com os velhos movimentos, novos passos para uma nova coreografia. Passagem do eu não penso da alienação para o eu não sou, não sou o objeto que sustenta, faz suporte para o gozo do Outro.

Do lado do analista, a abertura ao novo deve ser condição de cada encontro, pois ele nada sabe antecipadamente sobre seu analisante, nem sobre o que será o percurso daquela análise e, tão pouco, qual será o seu fim. Assim, se há analista há sempre um novo começando a cada analisante, a cada sessão, a cada ato.

Mais uma vez retorno ao título do trabalho e agora peço que considerem o artigo um como indicador da abertura de uma série comportando ato e analista, um como o primeiro de outros que se seguem. Assim, poderíamos escrever: um ato analítico, um analista, um ato analítico, um analista… A partir desta série, um analista seguiu a um ato e precedeu a outro ou um analista esteve entre dois atos. Assim como o efeito de sujeito pode se produzir entre dois significantes, a função analista pode operar entre dois atos. Assim como o efeito de sujeito pode se produzir entre dois significantes, a função analista pode operar entre dois atos.

É verdade, se há analista pode haver ato, mas só com a confirmação do ato na tarefa do analisante é que se afirma ter havido analista. Por efeito de retroação, sabe-se ter havido, ou não, ato analítico e analista.

A produção de um analista é mesmo tarefa impossível, impossível de ser finalizada por completo e também por isso Lacan afirma que começamos a ser psicanalistas no final de uma análise. Mais uma vez, há ato (agora, final, do final de uma análise) onde algo novo começa (um analista).

Observem: o final de uma análise é só o começo. Certamente a nossa análise (ou análises) é condição fundamental para a passagem a analista, para a sustentação desta função. mas é só o começo e um começo muito particular, pois não pressupõe um fim. Para nós analistas, o ditado perde seu valor: nem tudo que começa, termina, ao menos não definitivamente.

Esta condição costuma provocar angústia, em especial aos habituados ao âmbito universitário e que inicia, um percurso com a psicanálise. Afinal, a vida escolar tem começo, meio e fim e com ele adquirimos títulos, diplomas, garantias. Já um analista que acompanha Lacan sabe que só os tolos esperam garantias. Mas este mesmo analista também sabe que o desconforto da ausência de garantias torna-se suportável através de uma análise que possa produzir a derrocada do Outro, libertando-o dos efeitos inibitórios destas ilusórias garantias e habilitando-o a fazer ali com.

Com isto não digo que a função analista se dê confortavelmente, sem dificuldades ou impasses. Muito pelo contrário, sustentar este lugar tem um custo pessoal significativo: pagamos com nosso ser, dele devemos abdicar, é o primeiro luto que o analista deve fazer para sustentar sua função através do desejo do analista. E depois, ao final de cada percurso analítico, novo luto do analista, agora da própria função, da pretensa situação instalada pela transferência, do lugar de semblante de causa de desejo sustentado.

Frente a estas e muitas outras dificuldades que a prática me apresenta, relembro e me amparo em algumas palavras de Lacan no seminário sobre a transferência: “Não sejamos demasiados otimistas, nem demasiados orgulhosos de nós mesmos, mas digamos ainda assim que vocês tiveram, todos quantos são, uma pequena preocupação quanto ao limite do deserto… Trata-se daquilo que está no coração da resposta que o analista deve dar para dar conta do poder da transferência. Essa posição, eu a distingo dizendo que no próprio lugar que é o seu, o analista deve se ausentar de todo ideal de analista” (p. 469).

Sem certezas e garantias, reconhecendo os limites e distante de um ideal, mas com o desejo de produzir algumas respostas, não todas e nem definitivas, dedico este texto à memória de uma ex-analisante cuja transferência foi suspensa, mas, infelizmente, não pode ser terminada. Restou para mim o trabalho de luto da função analista de uma forma mais difícil e dolorosa do que de costume e, também por isso, sigo trabalhando, compartilhando com vocês minhas letras e buscando abrir a cada momento em minha clínica, novas séries: um ato analítico, um analista, um ato analítico, um analista…

Autora: Zeila Cristina Facci Torezan
Membro da ALPL
zeilatorezan@associacaolivrepsanalise.com.br

 

Referência Bibliográfica

Lacan, J. O ato psicanalítico. Porto Alegre: Escola de Estudos Freudianos, 2010.

Lacanm J. O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Lacan, J. O seminário, livro 9: a identificação. Recife: CEF, 2003,