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A Felicidade e a Boa Sorte do Sujeito

As pessoas procuram um psicanalista, um psicólogo ou um psiquiatra porque sofrem, das mais diversas maneiras. Como analista, recebo aqueles que trazem questões e sintomas bem delimitados e específicos, os quais atrapalham um viver mais alegre. Outros, ao contrário, falam de uma vida amplamente desafortunada e queixam de mal estar, apatia, tristeza e/ou de fracassos de forma generalizada. Há, ainda, a somatória das duas queixas: na falta de sorte generalizada algum sintoma se particulariza. Por sua vez, não são raros os que sentem-se acometidos pelo referido mal-estar e tristeza generalizados, a despeito de se considerarem pessoas de sorte: têm sucesso profissional, família, dinheiro, amor, mas, ainda assim, não são felizes.

Também observo ser frequente, nas diferentes apresentações no início de uma análise, a pergunta sobre o porquê da insistência dos sintomas, sentimentos e acontecimentos dos quais se queixam e para os quais buscam uma solução. Soma-se à tal questão a estranheza frente ao que parece se reapresentar de forma misteriosa, ou, como dizia Freud, demoníaca: a má sorte, o fracasso, o abandono, a tristeza.

Freud se interessou por e teorizou sobre essas diferentes formas de apresentar e vivenciar o sofrimento, marcando uma distinção entre neurose de transferência e neurose de caráter (1912 com um texto sobre a neurose obsessiva, 1916 – texto sobre alguns tipos de caráter e um capítulo de Além do princípio do prazer). Nas neuroses de transferência, um sintoma se apresenta muito claramente e o sujeito pede, em sua demanda de análise, para se livrar disso que não anda bem e insiste, pede para se livrar do sintoma que, muitas vezes, considera repetir-se em sua vida. Por outro lado, no que Freud denomina de caráter, temos sujeitos que apresentam um mal-estar e fracassos generalizados, sem uma formação sintomática muito bem estabelecida. Freud se intriga muito com esse segundo tipo, propõe que esses sujeitos possuem alguns traços de caráter que os levam a repetir tais fracassos, mas de forma que eles se apresentam como uma força demoníaca, como se o sujeito os sofresse passivamente, como se fossem uma armadilha do destino.

Então, quando realço as diferenças na maneira como aqueles que chegam para uma análise são afetados por e falam de seu sofrimento, me refiro não apenas à óbvia singularidade do discurso e do sofrimento de cada um, mas, em especial à diferença apontada por Freud entre a repetição que ele considera atrelada a uma formação sintomática e aquela que ele associa aos fracassos mais generalizados e como que pertencentes ao acaso. O redimensionamento, através do trabalho de Lacan, da concepçãode sintoma aí em voga, não exclui, em meu entendimento, o valor da formulação freudiana, a qual nos indica a necessidade de precisarmos o conceito de repetição e já reconhece no mesmo mais de uma dimensão e a transcendência da mera reprodução.

Vejamos como podemos encontrar esses elementos na prática. Quando alguém chega dizendo que a bebida ou as drogas se tornaram um tormento, um sofrimento do qual quer se livrar, é possível dizer que apresenta sua questão de trabalho como um sintoma (pois reconhece algo que não vai bem, do qual quer tratar e no qual se vê implicado) e se pergunta porque repete: “Por que não paro de beber ou me drogar? Porque continuo fazendo isso se sei que não me faz bem?” Ou ainda, quando alguém se queixa de impotência e se pergunta: “Porque brocho cada vez que me interesso por uma mulher?” Insisto, nessas situações, a pergunta sobre a repetição está colocada de maneira direta – a insistência de algo atrelado ao sofrimento, atrelado ao sintoma, lhe intriga – e o sujeito se diz aí implicado.

Entretanto, a pergunta sobre a repetição também está presente quando, de forma aparentemente passiva, o sujeito se encontra sempre no mesmo lugar e isso lhe provoca angústia ou mal-estar generalizados. Sujeitos que parecem “destinados” à ingratidão, ao abandono, à solidão, ao fracasso, pois em várias esferas de suas vidas isso se repete. Homens ou mulheres cuja vida amorosa é sentida como um fracasso eterno, com relacionamentos que contemplam fases e finais semelhantes ou mesmo idênticos. Pessoas que profissionalmente não crescem e são vítimas dos mais variados acontecimentos: roubo de sócio, demissão em massa, depressão econômica que leva à perda do emprego, falência. Nesses casos, a pergunta sobre a repetição é feita colocando em questão o acaso, o destino, o azar ou má sorte. Foi por este tipo de repetição que Freud mais se interessou, talvez porque ela coloca em cena o além do princípio do prazer, evidenciando a contravenção da natureza no humano que Freud associou ao conceito de determinismo psíquico. Mas hoje, acredito que ambos os aspectos da repetição devem nos interessar, pois compõem com importância a clínica.

Como analistas, em nossa clínica, devemos sempre nos interessar e acompanhar as questões no que elas apresentam de singular a cada vez que são formuladas. Também como analistas, no trabalho de transmissão, como é o de hoje, devemos procurar construir, a partir do que é singular, elementos que possam nos ajudar a nortear a clínica. Nesse sentido, o meu interesse é produzir uma leitura, sempre a partir daquilo que a clínica me convoca, sobre a articulação, feita por Lacan, entre a repetição e a felicidade e/ou boa sorte (feliz acaso ou boa fortuna), em francês: bonheur e bon heur. Para tanto, a partir dos comentários que tracei inicialmente, chamo a atenção de vocês para alguns elementos que fundamentarão este meu recorte do tema da repetição.

O primeiro ponto, que peço que considerem com cuidado, é que na busca de um tratamento que possa eliminar ou diminuir o sofrimento está sempre implicada uma demanda de encontrar alguma felicidade ou, por vezes, muita ou toda felicidade. É o que os analisantes nos dizem, eles querem ser felizes e se intrigam por não serem: “tenho tudo para ser feliz e não sou; quero apenas ser feliz; porque eu nunca me sinto feliz?; não sei o que é felicidade…” Foi também o que Freud (1930/1996) observou em Mal-estar na civilização: “O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta não pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer.” E, por sua vez, Lacan (1959-60/1997): “O que nos demandam, é preciso chamá-la por uma palavra simples, é a felicidade.” (p.350). Nessa direção, uma questão importante sobre a qual pretendo trabalhar hoje: o que é felicidade para a psicanálise e qual é a felicidade que os analisantes nos demandam, já adiantando haver uma diferença entre ambas.

Em segundo lugar, chamo a atenção de vocês para a relação, estabelecida nas queixas, entre a infelicidade e o que se repete. Tanto a insistência de sintomas, quanto o estranho acaso de acontecimentos e sentimentos são identificados como obstáculos à felicidade. Atrelada à tal constatação, observo que o incômodo, a intriga e a estranheza provocados pela repetição, favorecem uma demanda de análise, na qual se busca, entre outras coisas, a tal felicidade.

Na sequência, percebam que boa sorte, sucesso e felicidade não andam necessariamente juntos, como, a princípio, se poderia pensar. Nem sempre a aparente boa sorte ou sucesso são vivenciados de forma feliz e, nem sempre, aquilo que olhares externos veem como fracasso ou como má sorte faz a infelicidade do sujeito. Muito bem, mas então, o que é e onde está a felicidade? E ainda, o que pode ser a boa sorte para o sujeito do qual a psicanálise se ocupa?

Em Televisão – texto publicado a partir de uma entrevista dada por Lacan (2003) em 1973 – no momento em que está respondendo a uma questão sobre o suposto descaso com os afetos em seu trabalho, Lacan contra-argumenta, falando da importância que deu à angústia, à qual dedicou um de seus seminários e sobre a qual produziu uma leitura que não mais nos permite desconsiderá-la na clínica. A partir desta referência à sua particular tomada e posicionamento sobre o afeto, Lacan passa a discorrer sobre a tristeza, o gay sçavoir e a felicidade. Situando a tristeza e o gay sçavoir – saber alegre que podemos alcançar em uma análise – em polos opostos, indica que a ética da psicanálise é a do bemdizer e que só há saber, gay sçavoir, no não sentido. Entre um polo e o outro, entre a tristeza e o gay sçavoir, Lacan pergunta onde estaria a felicidade:

“Nisso tudo, onde está o que traz felicidade, feliz acaso? Exatamente em toda
parte. O sujeito é feliz. Esta é a sua definição, já que ele só pode dever tudo ao
acaso, à fortuna, em outras palavras, e que todo acaso lhe é bom para aquilo que
o sustenta, ou seja, para que ele se repita. O espantoso não é que ele seja feliz sem
desconfiar do que o reduziu a isso – sua dependência da estrutura – mas que
adquira a idéia de beatitude, uma idéia que vai tão longe que o sujeito sente-se
exilado nela.” (p.525)

Vejam só, diferentemente de Freud, que considerou a felicidade impossível e relacionou a repetição a essa impossibilidade e, também, contrariamente ao que ouvimos de nossos analisantes, Lacan diz que a felicidade já está com o sujeito e está atrelada, exatamente, à repetição. O que isso quer dizer? Antes de esboçar uma leitura a esse respeito, acrescento mais uma citação de dois anos mais tarde, em uma conferência pronunciada em 1975 nos Estados Unidos, na Universidade de Yale, Lacan toca novamente na felicidade, atrelando-a ao final de análise:

“Me desculpem se o que eu digo parece – o que não é – audaz. Somente posso dar
testemunho do que minha prática me provê. Uma análise não deve ser levada
muito longe. Quando o analisante pensa que é feliz por viver, é suficiente.”

Me soam mesmo muito intrigantes essas formulações de Lacan e espero que vocês me acompanhem no interesse pelas mesmas e no trabalho de desdobrá-las. Primeiro, o sujeito é feliz por definição, mas não sabe muito bem disso, e tal condição se articula à repetição como lei constituinte do sujeito, está atrelada à boa sorte ou feliz acaso como fato de estrutura. Pouco depois, o final de análise é associado à possibilidade de se “pensar feliz por viver”. Arrisco uma hipótese: será que “pensar ser feliz por viver” significa poder saber, saber alegremente, sobre a primeira afirmação, ou seja, sobre o fato de que “o sujeito é feliz” nisso que atualiza o encontro faltoso com o Real?

Me parece uma leitura possível, principalmente quando retorno à clínica. Exemplifico com um final de trabalho de uma analisante que foi para mim muito marcante e com o qual pude apreender um pouco mais as referidas construções de Lacan. Após alguns anos de trabalho sobre a impossibilidade de sentir-se bem em sua vida de forma geral, fato bem representado pelos repetitivos fracassos em exames para uma almejada ascensão profissional, ela conclui que seus fracassos eram para ela, até então, um feliz acaso e não uma má sorte. Feliz acaso que ela produzia, pois fracassar nas provas permitia que se descolasse de um ideal de perfeição, de filha perfeita, que a aterrorizava. Então, a repetição se emparalha com o sintoma, delimitado por seu fantasma, protegendo-a de uma suposta posição à mercê do Outro. Finaliza aí sua análise, pouco antes de obter o resultado do último exame que havia feito (pois o resultado já não mais importava, não era mais nele que estava sua felicidade) e no qual, vim a saber depois, obteve sucesso. Na saída da última sessão, me abraçou, agradeceu pelos anos de trabalho e disse, com ternura, que um dia voltaria, mas que naquele momento pensava que era feliz. Tantas vezes enlouquecemos para tentar compreender a teoria, quando, na verdade, se acompanharmos com atenção o que nos dizem os analisantes, conseguiremos construir a teoria com a leitura do discurso aí produzido.

Como todo analisante, essa jovem chegou demandando, através de sua queixa, felicidade e acreditava que era com a aprovação em um exame que a alcançaria. Posição absolutamente exemplar da idéia de felicidade que temos na cultura, ainda por influência de Kant: a felicidade é um bem a ser alcançado por merecimento e é associado à boa adaptação. Pesa sobre essa formulação um valor moral, muito explorado pelo utilitarismo e pelo capitalismo. Entendo que é essa felicidade que, não apenas essa moça, mas todos os analisantes chegam demandando. De uma forma ou de outra, apostam que com a análise serão pessoas melhores, bem adaptadas e, então, merecerão ou alcançarão a felicidade. Certamente, não é isso que uma análise pode oferecer, mas tudo bem, porque trabalhando, essa jovem – e quem mais apostar em uma análise – percebe que boa sorte e sucesso nem sempre andam juntos e que o encontro faltoso da repetição é necessário e traz boa sorte. A partir daí, o sintoma perde sua função e se torna prescindível, assim, a aprovação deixou de ser temerosa e a idéia de felicidade adquiriu uma outra dimensão: ela pode pensar ser feliz ao invés de se escravizar sendo a boa menina para merecer a felicidade.

Agamben (2007), em um pequeno e denso texto denominado Magia e Felicidade, apresenta essa noção de felicidade, que se contrapõe à moral kantiana, da qual trata Lacan e que pode ser reconhecida por essa jovem. Amparado pelas idéias de Walter Benjamin, Giorgio Agamben diz: 

“Benjamim disse, certa vez, que a primeira experiência que a criança tem do
mundo não é a de que ‘os adultos são mais fortes, mas sua incapacidade de
magia’. A afirmação, proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de
mescalina, não é, por isso, menos exata. É provável, aliás, que a invencível
tristeza que às vezes toma conta das crianças nasça precisamente dessa
consciência de não serem capazes de magia. O que podemos alcançar por nossos
méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo.
Isso não passou despercebido ao gênio infantil de Mozart, que, em carta a
Bullinger, vislumbrou com precisão a secreta solidariedade entre magia e
felicidade: ‘Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes, e a segunda, sem
alguma magia, certamente não me tocará. Para isso deveria acontecer algo
verdadeiramente fora do natural’. ” (p.23)

Não há nada mais fora do natural do que o sujeito do qual a psicanálise se ocupa, a linguagem produz uma desorientação pela perda do instinto e o inevitável desencontro entre as palavras e as coisas. Não há nada mais fora do natural e, aparentemente, mágico (demoníaco, diria Freud; necessário, diria Lacan) do que a repetição, associada por Lacan à estrutura do sujeito. Portanto, em sua desnaturação e magia, o sujeito é feliz; o sujeito é feliz na repetição que o sustenta na sempre diferença entre o esperado e o encontrado, no encontro sempre falho e não-todo.

Retomo o texto de Agamben:

“Na antiga máxima segundo a qual quem se dá conta de ser feliz já deixou de sê-
lo, mostra-se que o estreitamento do vínculo entre magia e felicidade não é
simplesmente imoral, e que ele pode até ser sinal de uma ética superior. A
felicidade tem, pois, com seu sujeito uma relação paradoxal. Quem é feliz, não
pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de
uma consciência, mesmo que fosse a melhor. Nesse caso a magia faz valer sua
exceção, a única que permite a um homem dizer-se ou considerar-se feliz.” (p. 24)

Sim, como Lacan, Agamben trabalha a felicidade sobre uma outra ótica que não a kantiana e, dessa felicidade não natural, não moral e mágica que está com o sujeito por sua estrutura, não se trata de sabê-la conscientemente. Mas é possível se produzir um outro tipo de saber sobre ela, um saber alegre que nos permita pensar que somos felizes quando o necessário do encontro faltoso da repetição deixa de ser sentido como má sorte. Dito de outra forma, pensamos ou sabemos ser felizes quando estamos de bem com o inconsciente que nos determina e, portanto, com algum inevitável mal-estar a partir do efeito de não proporção, de desencontro e de não-todo provocado pela linguagem. É isso…. ou pior.

Autora: Zeila Cristina Facci Torezan

 

Referência Bibliográfica

Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: J. Strachey, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Lacan, Jacques. O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

Lacan, Jacques. O Seminário, livro 7. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

Lacan, Jacques. Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

Lacan, Jacques. Conferência na Universidade de Yale. Disponível em: www.elpsicoanalistalector.blogspot.com.br.

Saber e Repetição

O estudo sobre a temática da repetição esse ano provocou em mim algumas inquietações e questionamentos que me proponho a compartilhar com vocês.

Estudar um conceito em psicanálise é um trabalho que vai para além dos livros e dos textos, convoca a uma experiência que inclui também a clínica. Para mim, ao menos, é um vai e vem entre textos e reflexões sobre uma prática.

E assim também me propus a escrever este texto que agora apresento a vocês.

Quando pensei no tema a trabalhar aqui, confesso que não foi fácil, pois todo ano é assim, temos que em um determinado momento fazer essa escolha para que a organização dessa Jornada possa caminhar, distribuição das mesas, confecção dos materiais, e tudo mais. Então o que precipitou naquele momento de escolha foi o saber e a repetição. Poderia ter sido tantas outras coisas, mas foi essa.

Pensando na clínica, como o saber se relaciona com a repetição? Bom um paciente pode procurar por uma análise porque acredita, ou se incomoda com algumas repetições em sua vida. E quer saber porque isso acontece com ele. Mas outras vezes um paciente pode também chegar na análise querendo saber como resolver alguma questão em sua vida, alguma situação nova que tem que enfrentar, por exemplo. Nessas duas situações que acabo de descrever existe a referência a um saber, e a uma situação que faz com que as coisas não andem bem.

Mas que coisas são essas? Seguindo Lacan ao escutar este sujeito estamos advertidos de que ele ao dizer sobre o que lhe incomoda, não sabe o que diz. É um sujeito dividido entre o que diz e o que sabe (dividido entre saber e verdade). Chega nos dizendo que a maneira como ele ajeitou as coisas na sua vida até aqui não está funcionando, chegou em um ponto em que algo está tão incomodo que ele resolveu buscar uma ajuda.

Não é só um trabalho de análise que se pode procurar em situações assim. Alguns recorrem por exemplo aos textos, a livros, a um saber também. Existem livros que estampam esta promessa em suas capas, e em títulos chamativos. O que o sujeito busca? Uma referência, busca em algum lugar uma espécie de saber que possa ensinar como ele pode continuar caminhando pela vida de preferência sem sofrer. Procura por uma saída, uma mudança.

É interessante que uma categoria de livros assim receba o nome de autoajuda. Pensando em autoajuda como uma ajuda que o sujeito consegue por ele mesmo. Ele mesmo consegue se autoajudar. O que parece é existir um engodo, porque se assim fosse ele não precisaria do livro. Penso que aí também existe uma tentativa de encobrir a impossibilidade de existir um saber que de conta da verdade. Ou seja, um saber que possa dizer tudo.

Essa não possibilidade de existência de um saber que de conta da verdade está articulada com a própria constituição do sujeito. Ao sermos seres falantes somos afetados pela linguagem, com a linguagem já não fazemos relação direta com as coisas, não existe encaixe perfeito. Sempre irá existir uma falta que nunca poderá ser completada. Contudo a experiência de satisfação inscreve no psiquismo a existência de uma completude possível, miticamente experimentada, porém nunca mais encontrada.

Ao ser falado o sujeito, para existir, se aliena a essa fala respondendo com o seu ser (com sua própria falta) a uma falta que localiza no Outro. O bebê chora e a mãe diz tem fome, o bebê responde a essa demanda do Outro e se aliena a um significante vindo dele. Para existir como sujeito será necessária uma outra operação, a de separação, o sujeito se separando da alienação significante e nesta operação destacando um significante que o represente, se separando do Outro, se dividindo, marcando uma falta em ser um significante que completa o Outro.

A partir de Freud entendemos que a falta é estrutural, não temos como nos livrarmos dela. Esta impossibilidade de completude como um vício estrutural (a falta no Outro e no sujeito) é o que põe o desejo em movimento. No primeiro encontro com o desejo este se inscreve para o sujeito como desejo do desejo do Outro.

Porém existe aí também a tentativa de recuperação de um gozo, pois temos duas condições do objeto de causa do desejo, a partir da ausência, e de objeto de gozo, a partir da presença. O desejo inscrito para o sujeito como desejo do desejo do Outro, na operação de alienação, comporta um efeito de gozo, por uma suposição de assim completar a falta no Outro.

Na operação de separação o desejo estaria relacionado à tentativa de reencontrar um objeto suposto de satisfação plena, um objeto ausente que causa o desejo.

O sujeito chega a análise adoecido por um gozo que o retem, em uma condição de existência como desejo do desejo do Outro.

Qual o trabalho a ser feito? O que uma análise pode produzir e como isto tem relação com a repetição?

Será que o sujeito chega repetindo um sofrimento? A partir da leitura que Lacan faz dessa temática em Freud e principalmente pelas modificações que este introduz no texto Mais além do princípio do prazer, onde Freud vai vincular a repetição à pulsão de morte, ou seja, a um desligamento em oposição a ligação promovida pela pulsão de vida. Temos a repetição atrelada a inscrição da diferença, pois para haver diferença um desligamento, um efeito de rompimento se produz. E a partir daí uma possibilidade de mudança. De uma mudança de posicionamento em relação a falta.

A partir do que Freud vai desenvolvendo neste texto temos a repetição atrelada a um fato de estrutura, ou seja, não é algo que deve ser superado, faz parte da estrutura, acontece uma única vez e a partir de então se torna necessária.

Necessária para que? Para marcar uma diferença, para que uma mudança possa se produzir. A partir destas reflexões, e ao escrever este texto pensei se a repetição como fato de estrutura não estaria relacionada com a operação de separação. Penso que não é a toa que os nomes são diferentes, se a operação de separação e a repetição fossem a mesma coisa não teriam nomes diferentes. Então uma não se subsumi na outra. Porém o que me fez pensar nesta aproximação foi que tanto em uma como em outra temos como produto um significante que representa o sujeito.

O sujeito chega na análise dizendo sobre isto que se reproduz em sua vida, se não da mesma forma com os mesmos efeitos para ele. Repete/reproduz como tentativa de sair da mão do Outro, da prisão em um gozo que o adoece.

Na análise o trabalho é de suspender aquilo que se acredita saber. Penso em uma dupla suspensão de saber, do analista pela via do operador desejo do analista e do analisando pela via da quebra de sentido. Interrogando-se sobre o que mais pode ter aí? Vetorizando sua dúvida não por aquilo que ele chega afirmando que carece de sentido, mas para o que está construído para ele como uma verdade inquestionável. Uma abertura para que até mesmo tempo e espaço possam perder uma certa estabilidade que monta a consistência histórica desse sujeito.

Pela via da transferência, em um trabalho de análise, é possível alcançar a repetição, como uma operação produtora de diferença / corte por onde um novo significante pode ser produzido pelo sujeito. Um significante que o represente para outro significante. Então como se pode alcançar a repetição pela transferência? Desconstruindo, descristalizando sentidos, escavando, fazendo buraco para que algum encontro com o sem sentido possa tocar um pedaço do real. É pela via da busca de saber em um sujeito suposto a possui-lo que o analisando pode chegar mais próximo da verdade de seu desejo do saber inconsciente que o determina. Para ter desejo temos que marcar uma falha, uma abertura para desejar.

Podemos pensar que ele encontra o que ele não procurou. Procurou por um saber, mas algo retorna para ele, do que ele mesmo traz e que causa surpresa, que abala o sentido que até então ele tinha encontrado. Neste trabalho de escavar os sentidos é que o analista, sustentando a sua função, pode acessar a repetição, pela via da transferência.

Porque eu coloquei sustentando a sua função? Porque pode ser que em algum momento ele não sustente. E por mais que o paciente retorne, repita um caminho, volte a cada seção, se ele não encontra o analista, não há transferência que possa levar a repetição no sentido de acessa-la. O “tratamento” pode continuar, e um pode fingir que não morreu e o outro que vai vivendo, em um trabalho que embora possa parecer que produza algo diferente resulta na continuidade de uma modalidade de gozo.

De que mudança estamos falando? Na análise de uma mudança de posicionamento. Isso não quer dizer que grandes mudanças na realidade desse sujeito aconteçam que possam servir como atestado de que houve repetição. Essa mudança de posicionamento talvez possa enganar quem está de fora e  busca pistas de se houve ou não houve repetição. Será que mudou? Percebesse que a pessoa está diferente, mas não se sabe muito bem localizar em que.

Mas para o sujeito isso não engana. Embora também não consiga precisar quando ou o que necessariamente mudou, sabe, porque sente de maneira diferente, as coisas da realidade que passam a afeta-lo de outra forma. Não porque elas mudaram, mas por uma modificação em sua estrutura, por um efeito de sentido.

Eu gosto de pensar em formas de ilustrar as formulações que vou fazendo, isso me ajuda a dar mais concretude as coisas que me parecem tão abstratas. Em textos anteriores usei para isso contos que retirei da literatura. Esse ano não me surgiu nenhum o que me possibilitou fazer diferente inventar um, bem simples, não é um conto, mas uma estorinha bem simples que não deixa de ter referência as estórias que escutamos em nossas clinicas.

É como se o paciente que chegasse para a análise se encontrasse em um barco no meio do oceano. Para ele, até então, tudo estava bem em viver assim, mas algo pode estar se passando que faz com que essa tranquilidade fique ameaçada. Ele chega querendo saber como continuar tranquilo ali. No decorrer do trabalho, a partir do seu dizer, outros elementos podem ser incluídos nesta cena, elementos que se precipitam e são assinalados pelo analista. Existe um céu, sol, estrelas, elementos que vão propiciando uma modificação na posição do sujeito em relação a essa cena que ele constrói. Tem um trapiche, pode sair do barco, caminhar, dirigir um carro, voar de avião. Penso que não é o fato de que novos significantes possam ser incluídos na cena que produz uma diferença, mas o posicionamento do sujeito em relação a eles. Reposicionar o movimento como causa de seu desejo e partir desse ponto poder decidir até mesmo ficar parado apreciando a paisagem com maior tranquilidade, ou voltar para o barco, aquele em que ele chegou em sua análise.

O atravessamento da linguagem faz buraco e o fantasma é uma construção que o sujeito faz para dar conta dos efeitos que isso tem para ele. Essa construção fantasmática comporta para o sujeito uma impotência imaginária, na maneira como ela dá sustentação a existência desse sujeito, como aquele que deve garantir a falta no Outro.

Na estrutura isso que é da ordem do que não pode ser recoberto pelo imaginário ou significado pelo simbólico diz respeito ao Real [ao que não cessa de não se inscrever]. Lembrando que todos os três registros têm igual importância, tanto o Real, quanto o simbólico, quanto o imaginário, fazem parte da estrutura. A forma como estão acomodados é que pode ter uma relação com este efeito de sofrimento para o sujeito.

A análise permite transformar essa impotência imaginária em encontro possível com o Real. Com a impossibilidade de garantir a falta no Outro, e poder continuar existindo como causa de desejo. E como se faz isso? É dizendo para o sujeito que as coisas são assim? Talvez para alguns de nós isso, essa busca por um saber referencial na psicanálise faça parte da contingência que monta essa relação do saber com a falta.

E quando vamos buscar explicação nos textos de Lacan o que ele nos convoca? A um trabalho, a muito trabalho. A um trabalho que produz logo de cara um abalo os sentidos cristalizados, na lógica que estamos acostumados em um pensamento de causa e efeito.

Precisamos dar muitas voltas no texto, repetidas voltas, para poder ir escrevendo com mais tranquilidade um texto que seja próprio. Enquanto ainda não podemos, nos servimos das letras daqueles que nos antecederam nesse trabalho de ir além.

Autora: 

Texto apresentado na IV Jornada da Associação Livre Psicanálise em Londrina – Novembro/2016.

Repetição: A falta de encontro ou o encontro da falta?

Pretendo, a partir da questão proposta no título, trabalhar a definição que Lacan formula no seminário 11 da repetição. Ele nos apresenta a função da tiquê, situada como a dimensão real da repetição, como essencialmente encontro faltoso, encontro enquanto podendo faltar.

Há diversas maneiras de ler a questão proposta. O que Lacan está chamando de encontro faltoso? Entendo que a primeira parte da questão que propõe uma falta de encontro pode nos direcionar em um caminho equivocado, já que Lacan define a repetição como um encontro, mas ao mesmo tempo diz sobre um encontro enquanto podendo faltar. De que se trata este encontro? É um encontro que não acontece, um desencontro ou se encontra algo na repetição? E o que seria a repetição como encontro da falta?

Lacan nos diz que este encontro faltoso é apresentado na psicanálise a partir do traumatismo. É justamente isto que vemos em Freud em Mais Além do Princípio do Prazer quando evoca os sonhos traumáticos e a experiência da separação no fort-da. Nota no trauma a presença do real, este se apresentando como irredutível, não passível de ser reduzido à palavra ou imagem. O princípio da realidade ao balizar o automaton, face simbólica da repetição que caracteriza o automatismo da repetição significante, insiste em deixar fora o real e a tiquê tem que se repetir.

Lacan nos fornece um exemplo de encontro faltoso a partir de um sonho presente na Interpretação dos Sonhos. Trata-se de um pai no velório do filho que solicita a um senhor que cuide do corpo de seu filho morto enquanto ele dorme na peça ao lado. Ele sonha com o filho lhe dizendo: Pai, não vês que estou queimando?, e coincidentemente, como por acaso, o caixão do filho começa a pegar fogo a partir de uma vela tombada e do adormecer daquele que deveria estar cuidando. Lacan questionará o que é que desperta? Pergunta-nos se não há uma outra realidade e afirma que o pai não desperta pela realidade da fumaça ou do barulho do quarto ao lado. Esta outra realidade aponta para a fantasia, pois Lacan articula que o real vai do trauma a fantasia, esta funcionando como uma tela que dissimula algo de determinante na repetição. ¨…pois o que nos desperta é a outra realidade escondida por trás da falta do que tem lugar na representação – é o Trieb nos diz Freud (Lacan, 1964, p. 61).

O real não é aquilo que retorna, o que retorna são os signos, mas aquilo que se repete como falta. Também não se pode confundi-lo com a realidade, mas ele confere realidade ao mundo. É este real que se repete que irá caracterizar a pulsão. Para Garcia-Roza(1999) ¨a repetição é o ato pelo qual a pulsão é presentificada, mas, ao mesmo tempo, o ato pela qual ela permanece oculta¨( p.52).

Lacan, ainda no seminário 11, nos traz a pulsão como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, assim como a repetição. Examinando os textos freudianos marcará a força constante da pulsão, sem assimilá-la a nenhum conceito biológico. Mostra que a satisfação da pulsão não é atingir o alvo, pois a sublimação, apontada por Freud como um dos destinos da pulsão, atinge sua satisfação, mesmo inibida quanto ao alvo. Diz que os pacientes não estão logicamente satisfeitos com o que são, mas, apesar disso, isto o que eles são, seus sintomas, dependem da satisfação; ¨…eles dão satisfação a alguma coisa…eles não se contentam com seu estado, mas, estando nesse estado tão pouco contentador, se contentam assim mesmo¨(Lacan, 1964, 158).

Mas esta satisfação é paradoxal, pois há algo da ordem do impossível, do real como impossível e como obstáculo ao princípio do prazer. A satisfação da pulsão não está em sua apreensão do objeto, pois, como Freud já havia demarcado, os objetos são indiferentes para a pulsão, pois não há nenhum objeto que satisfaça a pulsão, sua satisfação encontra-se no trajeto, no contorno do objeto, no retorno em circuito. O alvo da pulsão, exemplifica Lacan, não é a ave abatida, mas ter acertado o tiro.

Isto que é contornável pela pulsão é um furo, um vazio, no qual se aloja o objeto pequeno a, é o contorno ao objeto eternamente faltante. No lugar deste objeto que falta, fica algo em seu lugar, o objeto a, contudo este não é um objeto específico, mas antes um furo em torno do qual gravitam os significantes.

Rabinovich conta sobre Nicolau de Cusa e o considera um predecessor de Lacan, pela ideia de que entre um saber já constituído e sua aplicação na realidade, sempre sobra um resto, algo inassimilável. Três instrumentos do saber humano sobre a natureza – contar, medir e pesar – mostram a insuficiência dos nossos parâmetros, assim a aritmética e a geometria deixam sempre um resto não realizado em toda a aplicação a objetos reais. A este resto pode-se entender como objeto a. Este resto, por mais que tenha sido produzido pelo saber, o move. Na metáfora lacaniana sobre a caça, esclarece Rabinovich (2000): ¨o objeto a, objeto eterno e inalcançável da caça, é um objeto que, como resto da divisão subjetiva, está atrás causando a busca, mas não é sua meta¨ (p. 42).

Laureano (2015) salienta que após os anos 60, Lacan qualifica o real como ¨o resto não morto encarnado no objeto pequeno a, o resto de gozo para além da mortificação que a ordem simbólica introduz no sujeito¨(p. 78). Diz que a primeira leitura de Lacan sobre o real transmitia a ideia de que seria perigoso se aproximar desta dimensão da pulsão além do princípio do prazer. Em uma segunda leitura o real é imanente ao simbólico, tornando-se causa da repetição simbólica. 

O vaivém da pulsão é o que caracteriza sua força constante e é este retorno em circuito que se pode caracterizar como repetição. Garcia-Roza diz: ¨A repetição é a característica própria da pulsão¨ (p. 25). Lacan falará, quanto às pulsões, de um estado de deriva. ¨Estar a deriva é estar remetido ao acaso dos encontros, encontro sempre faltoso, que vai ser subjugado ou ordenado pelo mundo dos signos¨ (Garcia-Roza, p. 70). Estar à deriva significa que não há ordem pulsional, esta ordem é dada pela estrutura de significantes, a possibilidade de satisfação é mediada pela representação. A pulsão ocupa um mais além da ordem e da lei, fora da cadeia significante e não é regulada pelo princípio do prazer e da realidade. É o lugar do acaso. O objeto da pulsão é o objeto da fantasia, o que demostra sua submissão à articulação significante e a caracterização do sexual, já que ¨a sexualidade constitui-se a partir da captura das pulsões pela rede significante¨ (Garcia-Roza, 1990, p. 144).

Este encontro faltoso para Lacan é o encontro com o real. A face real da pulsão é a pulsão de morte. Esta é entendida por Lacan como uma vontade de destruição, não no sentido da agressividade ou de vontade de se auto destruir, como muitos fazem esta leitura: ¨Ah, ele é obeso, come demais, então tem muita pulsão de morte¨. Esta vontade de destruição diz respeito a uma propriedade disjuntiva, que visa romper os laços entre o representante do objeto e o representante da pulsão, recusa a permanência, possibilitando a criação, o novo. Freud aponta a pulsão de morte como silenciosa e invisível, definição análoga que tem a tiquê em Lacan.

A pulsão de vida é aquela que objetiva a união permanente dos laços, é aquela que diz : ¨é isso¨. Diferentemente, a pulsão de morte é a recusa da repetição do mesmo, automaton, e nesse sentido, como salienta Garcia – Roza, é mantenedora do desejo, se este é entendido como a pura diferença. Diz este autor: ¨Se pulsão é
repetição, ela é uma repetição diferencial¨(p. 137).

Trago um exemplo clínico para tentar analisar a relação da articulação da pulsão com a estrutura do significante. Um homem adulto vem me procurar por conta das dificuldades que tem em um relacionamento. Brigam muito, separam-se várias vezes, ela o agride e ele sempre foge ou recua. Quando estão juntos não suporta as brigas recorrentes e desconfia que ela não o ama suficientemente. Quando está separado tem sintomas físicos e não consegue realizar suas atividades diárias no trabalho, pois só pensa nela. Tem dificuldades de assumir este relacionamento para a família já que esta considera a moça como barraqueira. Em uma sessão especifica quando me dizia que tinha vontade de largar tudo, diz:¨Vo toca gado no Mato Grosso¨(sic). Eu só conseguia escutar: Estou cagado no Mato Grosso. Minha primeira reação foi de surpresa por não ter entendido a primeira significação, que ele conscientemente usou. Perguntei a ele se era uma expressão. Ele teve aquele ar de estranheza quando o sentido aparente é desvelado e começou a rir. Perguntou-me: Você entendeu estou cagado? Ele também escutou.

Fazendo este trabalho este exemplo me torturou por algum tempo sempre que eu pensava na repetição. Parecia que tinha relação com ela, apesar de não ter nenhuma característica de um automaton, ou seja, de uma repetição do mesmo, uma reprodução do idêntico, mas me parecia que tinha relações, mas não sabia ainda quais. Bem, analiso primeiramente que parece não se tratar de um ato falho, no sentido de uma palavra que sai sem querer dizê-la, ou que é trocada por outra. O analisante quis formular a frase de forma consciente, mas o sentido que se depreendeu dela era outro. Como chamar isso? Entendo que o significante produz como efeito seu próprio sentido, sem haver uma fixidez em algum significado prévio. Lacan diz que o significante atua para constituir o sujeito, faz ato por ser um representante da pulsão. O ato é essencialmente humano por ser ele atravessado pela linguagem.

Segundo Brousse a pulsão é o resultado do funcionamento do significante, da demanda do Outro. O significante barra a necessidade e cria a pulsão, pois a pulsão oral não é satisfeita pelo leite, deixando um resto que é o desejo. Assim pode-se entender a pulsão como uma consequência da articulação na linguagem da demandado Outro não barrado.

A função do analista, para Lacan, é de presentificar da realidade do inconsciente, a pulsão. A atividade da pulsão está em um ¨se fazer¨, o que denota que algo nos é feito pelo outro. Penso que no exemplo citado acima, havia um ¨se fazer cagar¨, pois revelava de alguma maneira a posição do sujeito diante da demanda do Outro. O que quero sublinhar aqui é que me parece, que ali, na transferência, surge um significante passível de ser o representante da pulsão, pois dela nada conhecemos, apenas seus representantes. Representante da pulsão que nos diz da demanda do Outro e do modo como o analisante se satisfazia a partir do uso que fazia dela.

Se faire – se fazer – é a própria montagem da pulsão, montagem, pois se refere a uma ordem única e própria, montagem entre a própria satisfação sexual como demanda do Outro e de introduzir a própria satisfação sexual furtivamente no campo do Outro afim de completá-lo.

Não posso afirmar que se trata de uma repetição diferencial, tiquê, pois só poderia dizê-la conhecendo seus efeitos posteriores. Isto não se deu, pois logo depois ele abandona a análise. Questionei-me inicialmente se não se tratava de um tempo da análise que ele ainda não pudesse ser atravessado pelo sentido da frase, mas tenho a impressão que se trata de algo diferente. Já chegamos lá.

Se como vimos a tiquê é este encontro faltoso com o real, este encontro que provoca um desencontro, a intervenção do analista deve apontar para este gozo ao qual o sujeito está retido, escolha de gozo parcial, porque a outra parte é decidida pelo Outro, por isso sofre. Vegh afirma que isto seria interpretar a castração do Outro.

Significa construir um buraco no sentido existente, sustentar como presença o objeto a, para depois subtraí-lo, deixar cair. O encontro faltoso como encontro da falta no Outro, reconhecer a inexistência do Outro, para que o sujeito possa ler de outro modo, autremente, o Outro mente.

Quando fui tomada de susto por isso que se revelou, decidi fazer o corte da sessão. Acredito que foi uma má escolha, pois percebo, hoje, que não pude sustentar, com minha presença, algum gozo que se manifestava ali retido. Ao me assustar, tenho a impressão que não me deixei levar a esta teia de aranha, metáfora usada por Vegh, tecida pelos fios do Outro. Ao encerrar a sessão não dei espaço para que ele falasse sobre isso e depois nas outras poucas sessões que se sucederam isto não mais apareceu.

É a demanda do Outro que determina qual será o objeto pulsional. O neurótico tende a confundir a falta do Outro com a demanda do Outro, assim a demanda assume papel na fantasia, esta ficando reduzida a pulsão. Dessa forma quanto mais se trabalha a fantasia, mais há possibilidade de se desconectar com a demanda do Outro, fazendo surgir o objeto sem o véu da demanda. Brousse (1997) indica que assim o real pode ser reintroduzido na construção da fantasia, operando como puro furo, objeto a.

Acredito que a repetição diferencial tem como objetivo a possibilidade de reconectar o objeto a à fantasia, pois se a pulsão está por trás de todo encontro faltoso, é através de sua interpretação que, penso, pode ocorrer a reinstalação do a como causa de desejo, dando lugar ao real e a uma nova forma de gozar e se posicionar subjetivamente.

Para Fink (1998) um caminho para o final de análise é atravessar a fantasia fundamental ¨ através do qual o sujeito dividido assume o lugar de causa, em outras palavras, torna subjetiva a causa traumática de seu próprio advento como sujeito, vindo a ser nesse lugar onde o desejo do Outro – um desejo estrangeiro e estranho – havia estado¨(p.85).

Autora: Marina P. de Paula

 

Referência Bibliográfica

FELDESTEIN, R; FINK, B. JAANUS, M. Para ler o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

FREUD, S. Além do Princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GARCIA-ROZA, A. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

GARCIA-ROZA, A. O mal radical em Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

LACAN, J. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LAUREANO, P. S. A razão vence a seriedade da morte? Trauma e Pulsão em Lacan. In: https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/viewFile/…/44091.

RABINOVICH, D. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em
Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

Repetição e Criação

À guisa de introdução, gostaria de agradecer aos colegas que apresentaram ontem seus trabalhos, pois a partir deles pude me dizer/escrever, com mais clareza, as razões que me levaram a escrever este texto da forma como o fiz. Percebi que este trabalho é um esforço, de mim para comigo mesmo, para conseguir pensar a Tychê articulada ao meu fazer clínico; não mais apenas pela pura intuição, mas agora a partir de uma lógica. Vivi este ano me perguntando: como pensar a Repetição (Tychê) na clínica do cotidiano? Como operá-la? Em qual momento? Como ela ocorre? O que produz?

Ao escrever este trabalho, penso que, mesmo que não tenha me dado conta, inicialmente, essas questões estavam latentes e acho que este trabalho serviu para que eu pudesse minimamente respondê-las. Acho que por isso que resolvi escrever da forma mais simples possível; pois assim eu pude me ouvir, desenvolver e avançar um pouco mais a lógica do fazer analítico. Ao terminar o texto percebi que o trabalho está simples, sem muitos termos teóricos. Por outro lado, me vi tentando presentar e desenvolver uma lógica do fazer analítico que possa produzir a Repetição. Para escrever este trabalho, duas sugestões foram muito importantes para mim. Uma que li de Isidoro Vegh que diz que quando servimos de boa lógica, podemos ser mais livres em nossa prática. Livre no sentido de poder criar o seu próprio estilo e não se apegar num modelo ideal de analista. Outra sugestão que me inspirou foi de Zeila (acho que ela nem se lembra disso de tanto tempo que faz). Não contarei os anos, mas apenas digo que isso foi quando eu ainda era bem mais jovem do que sou hoje. Nesta época, tinha começado a ler psicanálise e estava maravilhado com o lacanês. Queria falar esse “idioma” também! Mas Zeila, ao ler um texto meu, me sugere que eu seja simples e que me imagine dentro de um taxi e tenha que falar da psicanálise ao taxista da forma mais simples e clara possível e que ainda me faça entender. Penso que essa sugestão me marcou de tal maneira que ainda hoje sofro seus efeitos. Vejam, passado tanto tempo, pude lembrar-me dela…

Portanto, hoje vou me arriscar em ser um pouco mais livre e com isso desenvolver a lógica de como articular o conceito de Repetição (Tychê) em minha prática. Vocês poderão identificar que utilizo referências de autores que estudamos e que escutamos, mas perceberão também que às vezes direi coisas que não estão nessas referências, mas que, de alguma forma, pude vivenciar em minha experiência. Feita a introdução, inicio meu trabalho comentando o meu título com a seguinte questão:

Só podemos pensar a Criação a partir da Repetição1?

Começo o trabalho com esta pergunta, pois da forma como propus o título, pelo menos para mim, deu a impressão de que coloco uma relação direta entre Criação e Repetição. No entanto, gostaria de relativizar essa ideia, pois alguns eventos que acontecem na clínica me fizeram pensar sobre as diferentes Criações que vão acontecendo ao longo de um tratamento e que talvez sejam importantes para produzir a Repetição Tychê.

Penso que uma primeira Criação que propiciamos aos nossos pacientes é a de sua neurose de transferência ou, melhor dizendo, do próprio sintoma psicanalítico. Isto é, fazer com que o paciente possa transformar um sintoma médico, social ou biológico em algo que possa ser tratável pela psicanálise. A primeira Criação consiste em se Criar uma dúvida, uma divisão entre aquilo que o paciente vem Sabendo e uma suposta Verdade oculta que o analista guarda para si. Neste momento, notamos que existe um saber que tenta dar conta disso que o paciente sofre mas que não é suficiente, pois continua a sofrer.

A partir dessa primeira Criação, onde a dúvida se faz presente, podemos ajudar nossos pacientes a fazerem sua segunda Criação. Nesta segunda Criação, o paciente começa a criar um novo Saber sobre seu sofrimento ou sintoma. Mas esta criação de Saber está direcionada para a figura do analista, como se o analista fosse fazer algo com o Saber produzido pelo paciente. Então o paciente, aceitando o convite para que fale e associe livremente, cria uma hystória para seu sofrimento; fala de seus pais, os culpa pelo o que são ou o que não são hoje, contam seus traumas, constroem sua neurose infantil, etc. Faz tudo isso na esperança de que o analista, como num passe de mágica, tivesse uma palavra mágica que apagasse memórias desagradáveis, tirasse a culpa de algo que fez, tirasse o peso desse Saber que foi Criado pelo paciente. Neste momento podemos dizer que o paciente Cria seu inconsciente. E com isso, o ser do paciente começa a ficar implicado naquilo que o faz sofrer para além das determinações externas (médicas, sociais, biológicas).

O que podemos notar nesses dois processos de Criação (criação do sintoma psicanalítico e criação do inconsciente) é que estes movimentos vão em direção a criar algo para preencher um vazio.

  1. Vazio de saber que pode ser representado pela dúvida desse primeiro momento do tratamento onde se funda o sintoma analítico e depois
  2. Pela falta de saber sobre este sintoma analítico que o faz produzir seu Saber Inconsciente e dirigir ao seu analista.

Até aqui, poderíamos pensar que os efeitos produzidos não difiram muito de outras formas de psicoterapias, sobretudo aquelas intituladas “psicoterapias com inspiração psicanalítica”. Nesta, a interpretação visa à produção de saber por meio do sentido dado aos sintomas, atos falhos, etc. Lembro-me de um paciente que recebi que mancava muito e andava torto, mas sem ter nenhum motivo orgânico para isto. Ele tinha passado por uma psicoterapia com inspiração psicanalítica e disse numa das sessões que a psicoterapeuta interpretou seu sintoma afirmando que aquilo se tratava de uma inibição que tinha a função de evitar que mantivesse sua vida sexual ativa, uma vez que sua família era religiosa. O fato de mancar e andar torto o deixava envergonhado e por isso não ia mais para as baladas. E obviamente que essa interpretação não produziu nenhum efeito, mas só aumentou o Saber cuja função foi preencher o vazio e manter o paciente nesse mesmo lugar.

Acredito que a produção de Saber, seja ela por parte do paciente (que é a forma como conduzimos o tratamento) ou pelo psicoterapeuta (que é ilustrado pelo exemplo que dei agora), tem o efeito de dar consistência ao Outro, dar um sentido totalizante para esse Outro e negar sua castração, sua falta, sua inconsistência.

Contudo, noto na clínica que essa produção de saber marcha até certo limite. E é justamente nesse limite que percebo o surgimento de uma resistência muito forte no tratamento. Notei, também, que este é um momento em que o paciente parece se desapontar com esse limite do Saber, pois depois de ter falado sobre suas hystórias, seus traumas, seu Édipo, etc. percebe que, de alguma forma, seu sofrimento e seu sintoma ainda estão presentes. Isidoro Vegh tem uma expressão interessante para esse momento: chama de “fracasso do Saber”. Se lembrarmos de Freud, podemos ver que ele descreve algo parecido de sua clínica, pois nota que em determinados momentos do tratamento o paciente começa a resistir de forma mais intensa2. Freud afirma que isto acontece quando o tratamento começa se aproximar daquilo que chamou de núcleo patógeno. Quanto mais se avança em direção a ele, mais as resistências aumentam suas forças contra o próprio tratamento.

Não que anteriormente a resistência estivera ausente, mas neste momento a resistência aparece de uma forma diferente. Se nos momentos anteriores a resistência era a produzir um Saber, agora o paciente passa a resistir por meio da transferência. Cobra o analista, por meio de atuações, por meio da própria dinâmica da transferência, que ele participe da manutenção de seu gozo, do seu sintoma. Começa a tentar encaixar a figura do analista na própria estrutura de seu sintoma, solicitando que faça a função de um grande Outro que goza. Solicita a presença do analista enquanto um objeto recuperador de gozo.

Penso num pequeno recorte em que uma mulher que me pedia com veemência, em transferência, que a xingasse, que desse broncas por causa dos seus comportamentos, que falasse verdades que precisava ouvir para mudar seu comportamento e amenizar sua angústia. Mas a paciente não se dava conta de que este lugar que pedia para que eu a colocasse era o mesmo lugar que ocupava para seu marido e outras pessoas. E é justamente nesse lugar de total submissão e infantilismo que fala acerca de seu intenso sofrimento. Podemos ver que esse lugar lhe causava sofrimento, mas que, paradoxalmente, tinha dificuldades em abrir mão, pois lhe satisfazia.

Vejam que até aqui estive falando de algo que repete, ou melhor, que insiste, que é a satisfação com o sintoma ou sofrimento. Esta insistência não produz uma diferença, uma perda de satisfação; mas insiste em uma mesmice que visa manter um sofrimento que é também uma satisfação adoecida. Percebam que até aqui falei de duas Criações de Saberes (Criação do sintoma psicanalítico e do inconsciente) que alcançam um limite e que não o ultrapassaram. Podemos até traçar um paralelo com o achado freudiano do rochedo da castração. Freud chega até esse limite e pensa ser impossível ultrapassá-lo, mas vem Lacan e nos diz que é nesse além do rochedo da castração que algo diferente pode ser Criado. É aqui que penso que podemos começar a articular a Repetição com a Criação.

A pergunta que surge neste momento do trabalho é:

Como podemos transpor esse limite do Saber e com isso mudar a relação do paciente com o sintoma? O que isso tem a ver com a Repetição Tychê?

Para começar a responder essa questão, acredito que é nesse momento de falha no Saber, no limite do Saber, onde pode ser possível produzir a Repetição (Tychê). Já que o Saber encontra um limite, não seria possível pensar em ultrapassar esse limite com mais Saber. Ademais, penso que produzir mais Saber só iria colaborar para que o paciente evitasse ainda mais de se deparar com a inconsistência do Outro, com o real da castração do Outro.

Para que se lembrem, eu disse alguns minutos atrás que o paciente coloca a figura do analista na estrutura do seu sintoma por meio da transferência (Dei o exemplo por meio do recorte). No entanto, é importante que o analista consiga ler isso que se apresenta em transferência e localize o “ponto” onde há essa fixação de excesso de gozo onde o paciente tenta negar, anular, a castração do Outro por meio, por exemplo, de um sintoma. Penso que essa dinâmica se mostra em transferência nesse momento, pois a figura do analista é convocada a encarnar o ‘a’ postiço do paciente que serviria de tampão para esse buraco (castração) no Outro.

Se o analista conseguir ler isso que se apresenta na cena da transferência, ele pode lançar mão de uma manobra que possibilite cair desse lugar que o paciente o colocou e com isso atualizar esse des-encontro, que existe na estrutura do sujeito, entre sua satisfação esperada e a satisfação encontrada.

Trago um exemplo famoso para tentar ilustrar essa manobra.

O exemplo se trata do documentário intitulado “Encontro com Lacan”. Nele há o relato de uma mulher que fez análise com Lacan e que teve uma sofrida experiência com a II Guerra. Dizia que lembranças dessa época atormentavam sua existência de forma insistente. Essa paciente dá o testemunho de uma intervenção de Lacan que podemos articular com o desencontro da Tychê.

Em uma sessão, a mulher relata um pesadelo que tinha como enredo a II Guerra; precisamente que a Gestapo (polícia secreta de Hitler) entrava, às 5 horas da manhã, nas casas procurando judeus. Conta que quando Lacan ouviu a palavra Gestapo, se levantou de sua poltrona e, como uma flecha, andou em sua direção, e fez um “gesto carinhoso na pele” (geste à peau). Notem que Lacan não interviu pela via do Saber, pois não sublinha repetindo a expressão dita pela paciente; não pede para associar; não dá sentido; etc. Parece-me que ali, com sua intervenção, se escancara, se mostra, em ato, esse limite do Saber colocando a paciente num estado vacilante, desconcertante, de extrema estranheza.

Considerando este exemplo, penso que são nesses momentos que, de forma pontual e puntiforme, o paciente é colocado frente a frente com o limite de seu campo representacional (Saber) e com isso é convidado a dar um passo além desse limite (do Saber). Pois nesse mais além do Saber pode encontrar um vazio; com possibilidade de Criação.

Antes de avançar, acho importante precisar um pouco essa ideia de vazio.

Esse vazio se relaciona diretamente com o real da castração do Outro que é, na neurose, algo a ser evitado por meio do fantasma, do Saber, do sintoma, etc. Esse vazio existe porque a linguagem existe, portanto é estrutural. A partir do momento em que o sujeito é lançado na estrutura da linguagem, ele perde toda e qualquer referência à sua inteligência instintual. Nesse sentido, nunca haverá um objeto que possa se encaixar perfeitamente às necessidades do humano. Como o objeto está sempre mal encaixado, ele pode se soltar e cair desse lugar para ser substituído.

Como não há encaixe perfeito, existe, então, a possibilidade de que esse vazio possa surgir sempre que o objeto postiço se desprenda desse lugar. Podemos pensar que a função do sintoma é sustentar esse objeto postiço para cobrir esse vazio. Como falei anteriormente, o analista, em transferência, num dado momento do tratamento, também é colocado pelo paciente como objeto postiço para tampar esse vazio; sobretudo quando convoca o analista a participar da estrutura do seu sintoma. Acredito que o analista deve se servir disso (ser colocado como tampão para o vazio) para então poder cair desse lugar e fazer com que o vazio seja  atualizado. Assim, a “castração do Outro pode ser interpretada”, nos diz Isidoro Vegh. De objeto mais-de-gozar (tampão do vazio) faz a passagem para objeto causa do desejo (abertura do vazio) no momento da queda. É nesse sentido que o analista é peça fundamental para ocorrência do des-encontro da Tychê, que nada mais é do que essa atualização do vazio, atualização do real da castração do Outro.

Acredito que é a partir desse vazio que se pode fazer uma Criação diferente das que disse anteriormente (Criação do sintoma analítico e Criação do inconsciente). Se antes o paciente Criou para poder tampar um vazio, nesses momentos em que o vazio é atualizado há aí um convite feito do analista ao paciente para que se possa Criar de outra forma, não mais tentando tampar um vazio, mas à maneira do artesão oleiro (aquele que faz vasos). Assim, de tantos desencontros promovidos pela figura do analista, talvez o paciente possa, em algum momento, Criar sua arte sustentando e delimitando um buraco, um vazio, e não mais tentando suprimi-lo.

Para finalizar, gostaria de trazer outro exemplo para ilustrar essa Criação à maneira do oleiro, que, na realidade, é um artesão de buracos, de vazios. Roberto Harari, num dos seminários sobre Joyce, afirma que o autor tem um estilo que não possibilita ao leitor se identificar com a obra. Não há sentidos claros e nem fechamento de sentidos. Ao contrário disso, em algumas de suas obras há muitos enigmas e falta de sentidos; portanto, segundo Harari, há nesse estilo a preservação do vazio. A obra de Joyce nos permite, então, pensar que Criar a partir do vazio é reconhecer sua existência e não tentar suprimi-lo totalmente, mas de poder conviver o menos dolorosamente possível ao lado desse vazio, dos enigmas e dos acasos que a vida nos impõe. Poder se posicionar de forma diferente ao vazio, ser um artesão oleiro de sua vida e hystória.

Penso que a Tychê é o meio pelo qual se permite, de des-encontro a des-encontro, alcançar a tal Criação que veicule e sustente o vazio. Ao contrário daquelas Criações, que citei inicialmente, que tentem tampá-lo. É por meio da Tychê que o analista, ao fazer semblante desse objeto ‘a’, em sua queda calculada do vazio, pode ajudar o paciente a transpor o limite do Saber e, assim, possibilitar ao paciente fazer uma Criação que o desprenda, minimamente, do Saber que o adoecia para que assim possa seguir sua vida… criando, tecendo e transmitindo vazios… Obrigado…

 

Autor: Edinei Hideki Suzuk

 

1Sempre que falar Repetição estarei falando da Tychê, do encontro faltoso e não do automaton. Neste trabalho, em vez de falar de automaton, preferi utilizar a palavra insistência, que penso ter mais a ver com a insistência da satisfação de gozo/sofrimento que um sintoma traz para o sujeito. 

2 Metáfora da cebola. A cada camada retirada em direção ao núcleo da cebola a resistência se intensifica.