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É Possível Responder?

De início, reproduzo para vocês um e pequeno e curioso diálogo entre dois adolescentes:

“- Se eu não souber responder, vou chutar em c de Cristo ou d de Deus.”
“- E se você estiver em dúvida entre, exatamente, essas duas alternativas?”
“- Bom, aí eu vou em c de Cristo, porque d também pode ser de Diabo.”
“- Mas, veja bem, c também pode ser de Capeta!”
“- Ah… Então eu ponho a, de Amor!”

Nesta cena conversavam um rapaz e uma garota, ambos de quatorze anos a respeito de um simulado que estava prestes a ocorrer, Ainda que em tom de comicidade e de forma sutil, este diálogo pode remeter a aspectos cruciais e, muitas vezes, trágicos da adolescência hoje. Ao longo dos tempos, o caráter de crise marcou a época adolescente em nossas vidas. Crise ou, como diz Rassial (2000), estado-limite provisório na estrutura que deveria encerrar-se com o fim da adolescência, mas que pode também se encaminhar para o trágico. E sabemos ser este um desfecho hoje não raro – pela presença de graves acting outs ou de efetivas passagens ao ato – assim como por uma espécie de descaracterização da adolescência, pois ela tem sido recoberta pelo prolongamento da infância ou da latência, o que não nos distancia do trágico ainda que em outra vertente. É o que lemos em Lebrun (2010) a respeito da dificuldade de crescer e dos traços do adolescente hoje: “não mais um período de iniciação ou de provação, mas aquele de uma longa preservação do confronto com a realidade e com suas consequências, a manutenção precisamente na infância.” (p. 91).

Desta complexa trama que constitui a adolescência e dos vários fios através dos quais podemos tecer leituras e considerações sobre a mesma, proponho alguns comentários sobre a vertente por mim escutada a partir do recorte acima apresentado: a relação com o saber – no mais amplo sentido e em seus desdobramentos quanto às capacidades critica, reflexiva e criativa – e sua interface com a sexualidade. Assim, interrogo se é possível ao nosso adolescente responder, se ele pode autorizar-se a produzir respostas frente aos enigmas que devem estar se apresentando a ele (será que estão?).

Avalio o diálogo reproduzido como uma alusão ou mesmo um exemplo deste estado de impossibilidade ou de dificuldade de responder e também como característico de uma posição de distanciamento, de exterioridade, de passividade ou de alienação e, às vezes, de repulsa de nossos jovenzinhos frente ao saber. Penso que eles falam, nesta conversa, da ilusória e preguiçosa garantia de um “saber” alheio a si mesmo, alienado em uma suposta instância terceira, antes transcendente, hoje duvidosa: as letras minúsculas transitam errantemente entre Cristo e capeta, Deus e diabo. Longe de um ancoramento simbólico em seu necessário enodamento borromeano, tal posicionamento parece indicar um sujeito navegando ao léu, sem bússola e incapaz de traçar, de punho próprio, sua rota através das estrelas. Fiquei também sabendo que os elementos deste diálogo já constituem no meio onde ele foi produzido, uma espécie de gíria, pois quando alguém é interpelado sobre qual foi sua resposta para tal questão é habitual responder: “Ah, eu fui no c de Cristo!”, o que significa que não tinha a menor ideia do que se tratava na questão e assinalou uma das alternativas, mas não qualquer uma e, sim, aquela que Cristo lhe indicou: Cristo, protetoramente, respondeu por ele.

Para a palavra responder encontramos no dicionario (Ferreira, 2004) as seguintes definições: dar uma resposta ao que é dito, escrito ou perguntado; questionar ou apresentar razões contra (retrucar, responder a uma objeção); retribuir (responder a uma gentileza); repetir o som (o eco responde); fazer-se sentir por repercussão (a dor do braço me responde na cabeça); responsabilizar-se (ele responde pelo irmão, eu respondo por meus atos). Destaco este último significado, responder é responsabilizar-se, articulando-o aos dois primeiros: sou responsável por minhas respostas sejam elas questionadoras ou não. Ainda, recorrendo à etimologia da palavra responsabilidade, temos: vem do Latim responsus, particípio passado de respondere (responder, prometer em troca) a partir do prefixo re (de volta, para trás) mais spondere (garantir, prometer). Assim, responsabilidade se origina de responder que, por sua vez, comporta promessas e garantias.

Sustento uma posição frente ao outro quando respondo. Sustento na resposta uma posição de sujeito ao assumir a autoria de tais respostas, responsabilizando-me por elas. Afina, como á nos disse Lacan (1988) em 1965, por nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis. Entretanto, se outro responde por mim, me eximo da responsabilidade, da autoria e das conseqüências deste ato. Dufour (2005) avalia que vivenciamos um declínio tanto do sujeito neurótico freudiano, quanto do sujeito crítico kantiano: ausência de responsabilização numa era de cabeças reduzidas. As cabeças se reduzem talvez numa razão inversamente proporcional ao aumento da massa muscular, dos corpos esculpidos pela malhação, pelos anabolizantes e pelas próteses de silicone. Assim, na impossibilidade de saber, chuto, e, muitas vezes, com violência. Déficit de atenção e dificuldades de aprendizagem, em especial da leitura e da escrita, inibições do pensar e da capacidade de criar, de inventar e reinventar o seu ser na conjunção de saber e fazer, dificuldades acompanhadas dos já comentados acting outs variados, da agitação motora, das transgressões de ordem social e sexual.

E neste difícil contexto de se fazer ser, a que amor se refere nosso jovem rapaz? Tempos atrás poderíamos escutar aí um enlace com a sexualidade, um arremesso do campo amoroso ao sexual. Seria, então, uma boa paquera, talvez o que chamamos (ou, melhor, chamávamos) de cantada, mas, pelo contexto de sua fala e pelos referenciais atuais, parece tratar-se de uma mor distante do humano e das possibilidades de ser no encontro com o outro sexo, amor por excelência, amor narcísico e totalizante. Um amor divino e etéreo que se basta pelo enunciado e produz falsas e malevolentes garantias de viver sem muitos esforços. E não é disso que se trata também na cotidiana “preferência” por uma existência fake, repleta de pretensos relacionamentos virtuais?

Silvia Amigo (2007) nos indica, de forma clara e consistente, a importância fundamental da criança vivenciar a alternância entre ser gozada e significada falicamente pelo Outro. Sabemos que a significação fálica não advirá se, num primeiro momento a criança não for tomada ilusoriamente como objeto de gozo, no entanto, é necessário que tal ilusão se dissipe e no distanciamento da obturação da falta, a criança evoque para o Outro a sua própria incompletude. Esta é a condição de base para que a falta em cada um dos registros possa se inscrever neste sujeito em constituição, condição para que a criança não seja toda capturada na imagem especular e que algo dela escape como apreendido pelo gozo do Outro, condição para que a criança adentre o campo da sexualidade.

Assim, quando chegada a adolescência, segundo despertar sexual como denomina Amigo (2007), segunda virada edípica, tempo de reescrita da falta em suas três instâncias,o sujeito deverá dispor das cartas necessárias para participar do jogo com boas chances de sair-se bem ainda que através da derrota em algumas partidas. Pois bem, se as bases da entrada na sexualidade foram estabelecidas, em face ao novo empuxo do real sexual que a adolescência produz o sujeito deverá encontrar, entre as cartas que porta e também no assentimento no Outro, o aval simbólico e a cobertura imaginária que permitam com que ele responda desde um lugar outro que não de bebezucho da mamãe ou de anjinho assexuado. Caso contrário, se frente a este empuxo do real o canal de união com a sexualidade se fecha, pode-se abrir o caminho para a morte.

Estamos de volta na possibilidade de responder, e agora explicito, responder ao empuxo do real sexual, construindo um saber que se conjugue com o fazer em vertentes de fazer com e de se fazer ser, num ato de autoria e de responsabilização. De posse desta possibilidade de percorrer os caminhos para a investigação da sexualidade, para o saber sobre o sexual, o estudo, a busca pelo conhecimento, as capacidades criativa, reflexiva e crítica podem aí se articular e, mais, tornarem-se, fonte de paixão e prazer. Para ser vivido de forma apaixonante, o estudo deve fazer corpo com a investigação sexual, se não, torna-se mera obrigação ou obediência (Amigo, 2007) ou, ainda, algo indiferente, inatingível e/ou repulsivo.

Uma mocinha muito simpática, de olhar vívido e curioso em época de vestibular veio falar comigo porque chorava a todo momento, dizia-se angustiada, temerosa e irritada, não conseguia dormir e estudar. Também não fazia amigos, todos ao redor eram concorrentes e só falavam de futilidades, não havia conversas inteligentes, não se indentificava com seus pares. Sua primeira frase foi ago como: “sempre fui boa aluna…  e agora… isso não é suficiente…”. Embora sua intenção fosse indicar que para entrar na faculdade não bastava ser boa, deveria ser a melhor, não é difícil escutar, para além deste enunciado, a insuficiência neste momento de sua vida da posição, da imagem de boa aluna ( e completo, de boa filha) para que ela pudesse responder, não apenas às questões dos vestibulares, mas às novas provas do real sexual e do encontro com o outro. Um sonho que disse ser “muito louco”: ela tinha um buraco na barriga que aumentava muito e como não encontrou quem a levasse ao hospital ela mesma resolveu suturá-lo e fazia isso com muita naturalidade, interesse e satisfação. Dizia-se muito curiosa e fascinada pelo funcionamento do corpo; o cérebro, os genes, os hormônios… E seu corpo respondia ao interesse: cólicas menstruais excessivas, dores de estômago, insônia, alergias, manchas na pele. Assim, num dado momento indagou: “você que é psicanalista, me diga, a sexualidade é assim tão importante nas nossas vidas?” Na verdade ela não demonstrava dúvidas quanto a isso e o difícil estavam em como responder à sexualidade em sua importância.

Melman (2009) propões que a crise atual da adolescência está atrelada ao fato de nós adultos não sabermos mais o que lhes dizer, pois os princípios e valores que orientaram as gerações anteriores parecem não ser mais de serventia para os jovens se posicionarem e serem reconhecidos. Hoje, avalia o autor, o reconhecimento social passa pela participação de uma cultura hedonista, na qual o consumo e a ostentação têm lugar de destaque. Acrescenta o fato inusitado de o assentimento para a sexualidade e o reconhecimento da identidade sexual subjulgarem-se à independência financeira. Além da necessária estranheza frente a esta situação – pois o que passa a validar a identidade de homem ou mulher é ser economicamente ativo, o que equivale a dizer que sou mulher ou homem através ou a partir do dinheiro – Melman também alerta para a indiferenciação aí presente, para o unissex, para uma identidade monossexuada, pois tal critério de reconhecimento se aplica igualmente a homens e mulheres. Mais uma vez, os jovens não estão aptos a responder à sexualidade e nós adultos estamos implicados nesta dificuldade através da incapacidade de transmitir-lhes elementos que possam ajudá-los na construção de suas respostas e na preparação para suas vidas, os habilitando para o crescimento.

Retomo o diálogo citado no inicio e complemento a cena com a presença de uma terceira personagem, outra mocinha da mesma idade dos dois primeiros, que acompanhava atenta e silenciosamente a conversa. Na verdade foi ela quem me narrou os fatos (e assim, em parte, inspirou o tema do trabalho) e ao final me disse, já nada silenciosamente, que o a de Amor, aquele Amor divino referido pelo rapaz, também poderia ser de ateu. Assim, faz referência não à Deus ou ao Diabo, não à Cristo ou ao Capeta, não ao Bem ou ao Mal, mas ao sujeito, ao humano. Sua observação é seguida da seguinte análise: muitos colegas rezam e não estudam, vão aos templos religiosos e não respeitam as regras e as pessoas na escola. Por fim, ela conclui dizendo: “… é claro que esse negócio não funciona!”.

É verdade, as cosas não tem mesmo funcionado muito bem hoje em dia no que tange à presença do sujeito e também a sua relação com o saber, pois para responder (e ser responsável) é preciso separar-se do Outro, é preciso sair da alienação e da cristalização, é preciso escrever e reescrever a falta e assim se fazer ser. Mas não esqueçamos que o a, referido pelos personagens seja ao Amor ou ao ateísmo, é para nós uma letrinha fundamental – aquela que representa o estatuto do objeto como faltante, da ordem da causa do desejo e que caracteriza a posição por excelência do analista – e, mais com ela também podemos escrever abertura. Sendo assim, mais do que nunca, vou de a.

Autora: Zeila Cristina Facci Torezan 

 

Referência Bibliográfica

AMIGO, Silvia. A clínica dos fracassos da fantasia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007.

DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir as cabeças. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2004.

HARARI, Roberto. Como se chama James Joyce? Salvador: Agalma; Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.

LACAN, Jacques. A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LEBRUN, Jean Pierre. O mal-estar na subjetivação. Porto Alegre, CMC, 2009,

MELMAN, Charles. O que espera o adolescente da sexualidade e da morte. In: FLEIG, Conceição (org). Adolescente, sexo e morte. Porto Alegre, CMC, 2009.

RASSIAL. Jean Jacques. O sujeito em estado-limite. Rio de Janeiro. Companhia de Freud, 2000.