Repetição: A falta de encontro ou o encontro da falta?

Pretendo, a partir da questão proposta no título, trabalhar a definição que Lacan formula no seminário 11 da repetição. Ele nos apresenta a função da tiquê, situada como a dimensão real da repetição, como essencialmente encontro faltoso, encontro enquanto podendo faltar.

Há diversas maneiras de ler a questão proposta. O que Lacan está chamando de encontro faltoso? Entendo que a primeira parte da questão que propõe uma falta de encontro pode nos direcionar em um caminho equivocado, já que Lacan define a repetição como um encontro, mas ao mesmo tempo diz sobre um encontro enquanto podendo faltar. De que se trata este encontro? É um encontro que não acontece, um desencontro ou se encontra algo na repetição? E o que seria a repetição como encontro da falta?

Lacan nos diz que este encontro faltoso é apresentado na psicanálise a partir do traumatismo. É justamente isto que vemos em Freud em Mais Além do Princípio do Prazer quando evoca os sonhos traumáticos e a experiência da separação no fort-da. Nota no trauma a presença do real, este se apresentando como irredutível, não passível de ser reduzido à palavra ou imagem. O princípio da realidade ao balizar o automaton, face simbólica da repetição que caracteriza o automatismo da repetição significante, insiste em deixar fora o real e a tiquê tem que se repetir.

Lacan nos fornece um exemplo de encontro faltoso a partir de um sonho presente na Interpretação dos Sonhos. Trata-se de um pai no velório do filho que solicita a um senhor que cuide do corpo de seu filho morto enquanto ele dorme na peça ao lado. Ele sonha com o filho lhe dizendo: Pai, não vês que estou queimando?, e coincidentemente, como por acaso, o caixão do filho começa a pegar fogo a partir de uma vela tombada e do adormecer daquele que deveria estar cuidando. Lacan questionará o que é que desperta? Pergunta-nos se não há uma outra realidade e afirma que o pai não desperta pela realidade da fumaça ou do barulho do quarto ao lado. Esta outra realidade aponta para a fantasia, pois Lacan articula que o real vai do trauma a fantasia, esta funcionando como uma tela que dissimula algo de determinante na repetição. ¨…pois o que nos desperta é a outra realidade escondida por trás da falta do que tem lugar na representação – é o Trieb nos diz Freud (Lacan, 1964, p. 61).

O real não é aquilo que retorna, o que retorna são os signos, mas aquilo que se repete como falta. Também não se pode confundi-lo com a realidade, mas ele confere realidade ao mundo. É este real que se repete que irá caracterizar a pulsão. Para Garcia-Roza(1999) ¨a repetição é o ato pelo qual a pulsão é presentificada, mas, ao mesmo tempo, o ato pela qual ela permanece oculta¨( p.52).

Lacan, ainda no seminário 11, nos traz a pulsão como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, assim como a repetição. Examinando os textos freudianos marcará a força constante da pulsão, sem assimilá-la a nenhum conceito biológico. Mostra que a satisfação da pulsão não é atingir o alvo, pois a sublimação, apontada por Freud como um dos destinos da pulsão, atinge sua satisfação, mesmo inibida quanto ao alvo. Diz que os pacientes não estão logicamente satisfeitos com o que são, mas, apesar disso, isto o que eles são, seus sintomas, dependem da satisfação; ¨…eles dão satisfação a alguma coisa…eles não se contentam com seu estado, mas, estando nesse estado tão pouco contentador, se contentam assim mesmo¨(Lacan, 1964, 158).

Mas esta satisfação é paradoxal, pois há algo da ordem do impossível, do real como impossível e como obstáculo ao princípio do prazer. A satisfação da pulsão não está em sua apreensão do objeto, pois, como Freud já havia demarcado, os objetos são indiferentes para a pulsão, pois não há nenhum objeto que satisfaça a pulsão, sua satisfação encontra-se no trajeto, no contorno do objeto, no retorno em circuito. O alvo da pulsão, exemplifica Lacan, não é a ave abatida, mas ter acertado o tiro.

Isto que é contornável pela pulsão é um furo, um vazio, no qual se aloja o objeto pequeno a, é o contorno ao objeto eternamente faltante. No lugar deste objeto que falta, fica algo em seu lugar, o objeto a, contudo este não é um objeto específico, mas antes um furo em torno do qual gravitam os significantes.

Rabinovich conta sobre Nicolau de Cusa e o considera um predecessor de Lacan, pela ideia de que entre um saber já constituído e sua aplicação na realidade, sempre sobra um resto, algo inassimilável. Três instrumentos do saber humano sobre a natureza – contar, medir e pesar – mostram a insuficiência dos nossos parâmetros, assim a aritmética e a geometria deixam sempre um resto não realizado em toda a aplicação a objetos reais. A este resto pode-se entender como objeto a. Este resto, por mais que tenha sido produzido pelo saber, o move. Na metáfora lacaniana sobre a caça, esclarece Rabinovich (2000): ¨o objeto a, objeto eterno e inalcançável da caça, é um objeto que, como resto da divisão subjetiva, está atrás causando a busca, mas não é sua meta¨ (p. 42).

Laureano (2015) salienta que após os anos 60, Lacan qualifica o real como ¨o resto não morto encarnado no objeto pequeno a, o resto de gozo para além da mortificação que a ordem simbólica introduz no sujeito¨(p. 78). Diz que a primeira leitura de Lacan sobre o real transmitia a ideia de que seria perigoso se aproximar desta dimensão da pulsão além do princípio do prazer. Em uma segunda leitura o real é imanente ao simbólico, tornando-se causa da repetição simbólica. 

O vaivém da pulsão é o que caracteriza sua força constante e é este retorno em circuito que se pode caracterizar como repetição. Garcia-Roza diz: ¨A repetição é a característica própria da pulsão¨ (p. 25). Lacan falará, quanto às pulsões, de um estado de deriva. ¨Estar a deriva é estar remetido ao acaso dos encontros, encontro sempre faltoso, que vai ser subjugado ou ordenado pelo mundo dos signos¨ (Garcia-Roza, p. 70). Estar à deriva significa que não há ordem pulsional, esta ordem é dada pela estrutura de significantes, a possibilidade de satisfação é mediada pela representação. A pulsão ocupa um mais além da ordem e da lei, fora da cadeia significante e não é regulada pelo princípio do prazer e da realidade. É o lugar do acaso. O objeto da pulsão é o objeto da fantasia, o que demostra sua submissão à articulação significante e a caracterização do sexual, já que ¨a sexualidade constitui-se a partir da captura das pulsões pela rede significante¨ (Garcia-Roza, 1990, p. 144).

Este encontro faltoso para Lacan é o encontro com o real. A face real da pulsão é a pulsão de morte. Esta é entendida por Lacan como uma vontade de destruição, não no sentido da agressividade ou de vontade de se auto destruir, como muitos fazem esta leitura: ¨Ah, ele é obeso, come demais, então tem muita pulsão de morte¨. Esta vontade de destruição diz respeito a uma propriedade disjuntiva, que visa romper os laços entre o representante do objeto e o representante da pulsão, recusa a permanência, possibilitando a criação, o novo. Freud aponta a pulsão de morte como silenciosa e invisível, definição análoga que tem a tiquê em Lacan.

A pulsão de vida é aquela que objetiva a união permanente dos laços, é aquela que diz : ¨é isso¨. Diferentemente, a pulsão de morte é a recusa da repetição do mesmo, automaton, e nesse sentido, como salienta Garcia – Roza, é mantenedora do desejo, se este é entendido como a pura diferença. Diz este autor: ¨Se pulsão é
repetição, ela é uma repetição diferencial¨(p. 137).

Trago um exemplo clínico para tentar analisar a relação da articulação da pulsão com a estrutura do significante. Um homem adulto vem me procurar por conta das dificuldades que tem em um relacionamento. Brigam muito, separam-se várias vezes, ela o agride e ele sempre foge ou recua. Quando estão juntos não suporta as brigas recorrentes e desconfia que ela não o ama suficientemente. Quando está separado tem sintomas físicos e não consegue realizar suas atividades diárias no trabalho, pois só pensa nela. Tem dificuldades de assumir este relacionamento para a família já que esta considera a moça como barraqueira. Em uma sessão especifica quando me dizia que tinha vontade de largar tudo, diz:¨Vo toca gado no Mato Grosso¨(sic). Eu só conseguia escutar: Estou cagado no Mato Grosso. Minha primeira reação foi de surpresa por não ter entendido a primeira significação, que ele conscientemente usou. Perguntei a ele se era uma expressão. Ele teve aquele ar de estranheza quando o sentido aparente é desvelado e começou a rir. Perguntou-me: Você entendeu estou cagado? Ele também escutou.

Fazendo este trabalho este exemplo me torturou por algum tempo sempre que eu pensava na repetição. Parecia que tinha relação com ela, apesar de não ter nenhuma característica de um automaton, ou seja, de uma repetição do mesmo, uma reprodução do idêntico, mas me parecia que tinha relações, mas não sabia ainda quais. Bem, analiso primeiramente que parece não se tratar de um ato falho, no sentido de uma palavra que sai sem querer dizê-la, ou que é trocada por outra. O analisante quis formular a frase de forma consciente, mas o sentido que se depreendeu dela era outro. Como chamar isso? Entendo que o significante produz como efeito seu próprio sentido, sem haver uma fixidez em algum significado prévio. Lacan diz que o significante atua para constituir o sujeito, faz ato por ser um representante da pulsão. O ato é essencialmente humano por ser ele atravessado pela linguagem.

Segundo Brousse a pulsão é o resultado do funcionamento do significante, da demanda do Outro. O significante barra a necessidade e cria a pulsão, pois a pulsão oral não é satisfeita pelo leite, deixando um resto que é o desejo. Assim pode-se entender a pulsão como uma consequência da articulação na linguagem da demandado Outro não barrado.

A função do analista, para Lacan, é de presentificar da realidade do inconsciente, a pulsão. A atividade da pulsão está em um ¨se fazer¨, o que denota que algo nos é feito pelo outro. Penso que no exemplo citado acima, havia um ¨se fazer cagar¨, pois revelava de alguma maneira a posição do sujeito diante da demanda do Outro. O que quero sublinhar aqui é que me parece, que ali, na transferência, surge um significante passível de ser o representante da pulsão, pois dela nada conhecemos, apenas seus representantes. Representante da pulsão que nos diz da demanda do Outro e do modo como o analisante se satisfazia a partir do uso que fazia dela.

Se faire – se fazer – é a própria montagem da pulsão, montagem, pois se refere a uma ordem única e própria, montagem entre a própria satisfação sexual como demanda do Outro e de introduzir a própria satisfação sexual furtivamente no campo do Outro afim de completá-lo.

Não posso afirmar que se trata de uma repetição diferencial, tiquê, pois só poderia dizê-la conhecendo seus efeitos posteriores. Isto não se deu, pois logo depois ele abandona a análise. Questionei-me inicialmente se não se tratava de um tempo da análise que ele ainda não pudesse ser atravessado pelo sentido da frase, mas tenho a impressão que se trata de algo diferente. Já chegamos lá.

Se como vimos a tiquê é este encontro faltoso com o real, este encontro que provoca um desencontro, a intervenção do analista deve apontar para este gozo ao qual o sujeito está retido, escolha de gozo parcial, porque a outra parte é decidida pelo Outro, por isso sofre. Vegh afirma que isto seria interpretar a castração do Outro.

Significa construir um buraco no sentido existente, sustentar como presença o objeto a, para depois subtraí-lo, deixar cair. O encontro faltoso como encontro da falta no Outro, reconhecer a inexistência do Outro, para que o sujeito possa ler de outro modo, autremente, o Outro mente.

Quando fui tomada de susto por isso que se revelou, decidi fazer o corte da sessão. Acredito que foi uma má escolha, pois percebo, hoje, que não pude sustentar, com minha presença, algum gozo que se manifestava ali retido. Ao me assustar, tenho a impressão que não me deixei levar a esta teia de aranha, metáfora usada por Vegh, tecida pelos fios do Outro. Ao encerrar a sessão não dei espaço para que ele falasse sobre isso e depois nas outras poucas sessões que se sucederam isto não mais apareceu.

É a demanda do Outro que determina qual será o objeto pulsional. O neurótico tende a confundir a falta do Outro com a demanda do Outro, assim a demanda assume papel na fantasia, esta ficando reduzida a pulsão. Dessa forma quanto mais se trabalha a fantasia, mais há possibilidade de se desconectar com a demanda do Outro, fazendo surgir o objeto sem o véu da demanda. Brousse (1997) indica que assim o real pode ser reintroduzido na construção da fantasia, operando como puro furo, objeto a.

Acredito que a repetição diferencial tem como objetivo a possibilidade de reconectar o objeto a à fantasia, pois se a pulsão está por trás de todo encontro faltoso, é através de sua interpretação que, penso, pode ocorrer a reinstalação do a como causa de desejo, dando lugar ao real e a uma nova forma de gozar e se posicionar subjetivamente.

Para Fink (1998) um caminho para o final de análise é atravessar a fantasia fundamental ¨ através do qual o sujeito dividido assume o lugar de causa, em outras palavras, torna subjetiva a causa traumática de seu próprio advento como sujeito, vindo a ser nesse lugar onde o desejo do Outro – um desejo estrangeiro e estranho – havia estado¨(p.85).

Autora: Marina P. de Paula

 

Referência Bibliográfica

FELDESTEIN, R; FINK, B. JAANUS, M. Para ler o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

FREUD, S. Além do Princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GARCIA-ROZA, A. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

GARCIA-ROZA, A. O mal radical em Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

LACAN, J. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LAUREANO, P. S. A razão vence a seriedade da morte? Trauma e Pulsão em Lacan. In: https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/viewFile/…/44091.

RABINOVICH, D. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em
Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

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