O Vazio, o Furo e a Falta: o desejo na clínica lacaniana 1

Gostaria de iniciar meu trabalho apresentando algumas referências com as quais tento sustentar minha prática clínica. Depois de fazer isso, vou discutir o conceito de sujeito do desejo na clínica lacaniana; que é a proposta do meu trabalho cujo título denuncia. Para começar a montar o argumento do meu trabalho de hoje, farei uma retomada de alguns textos ou temas que penso que Lacan, de alguma forma, deixou indicado algumas pistas que podemos seguir no sentido que quero levar. São pistas colhidas em textos do início do ensino de Lacan, que são: “coisa freudiana ou sentido do retorno à Freud em psicanálise“; “A psicanálise e seu ensino” e “situação da psicanálise em 1956“. São textos que estou certo de que muitos daqui já leram ou ouviram falar, portanto são clássicos e que fazem parte do conjunto de textos cuja leitura é muito importante para todos aqueles que já iniciaram um percurso na psicanálise lacaniana.

Estes três textos que acabei de citar estão colocados em sequência nos Escritos. Se pensarmos que existe uma estratégia de transmissão na proposta de disposição dos textos autorizada pelo próprio Lacan, uma vez estava vivo na época de sua publicação, tentei achar uma linha guia que fizesse uma articulação central entre eles. Para mim, penso que o que está posto nesse conjunto de textos é a dura crítica que Lacan faz àqueles que ele denomina de pós-freudianos. É aí que ele então vai justificar seu famoso retorno à Freud afirmando que aconteceu um desvio de sua prática e de sua proposta – a de Freud.

Mas, afinal, o que ele critica?

Para além da proposta de cura pautada na identificação do paciente ao Eu forte do analista, acredito que ele critica uma prática da psicanálise imaginarizada. Para aqueles que não têm muita intimidade com conceitos lacanianos, esta palavra – imaginarizada – não quer dizer fantasiada ou de imaginação forte. O sentido dessa palavra é de imagem, unidade, de plenitude, concretude, coisificação.

Sabemos que nessa época Lacan dava certo privilégio e importância à ordem simbólica em detrimento do imaginário. Este, por se caracterizar pelos engodos narcísicos e pelo funcionamento egóico que eram características do que havia falado do estádio do espelho como formador do Eu, gerava engano e impossibilitava o encontro com a Verdade. O privilégio da ordem simbólica2 , por outro lado, é o que possibilita o encontro do analisante com a Verdade; isto é, com aquilo que é da ordem do mais singular, com a sua estrutura que determina o funcionamento de suas satisfações, sofrimentos, sintomas, etc.

Ao falar de estrutura, penso que tocamos na palavra-chave que Lacan está criticando na prática dos pós-freudianos e naquilo que propõe avançar em sua prática. Como tinha me referido anteriormente, penso que Lacan, nos textos que fiz referência, está criticando uma imaginarização da prática analítica; isto é, uma coisificação da análise. Vejamos o que Lacan nos diz textualmente:

“[…] a primeira resistência (a mais importante, a mais premente) com que a
análise (disse análise e não o analista, portanto pode ser tanto o paciente quanto o
analista) tem de lidar é a do próprio discurso, na medida em que antes de mais
nada ele é um discurso da opinião (da ordem do significado), e em qualquer
objetivação psicológica [desse discurso] se revelará solidária a esse discurso
(imaginarização da prática analítica)” (Escritos, p. 420).

Então a primeira resistência que a análise tem de lidar é a resistência do discurso. Esta resistência pode afetar tanto o analisante quanto o analista. O analisante tendo dificuldades em entrar na associação livre e o analista resistindo em sua escuta. Ceder a esta resistência é fazer do discurso do analisante uma objetivação psicológica; portanto psicologizar o discurso. Como se trata de uma resistência da própria análise pode afetar tanto o analisante quanto o analista.

“Somos pessoas suficientemente a par das coisas para saber que o coisismo não
cai bem; eis nossa pirueta inteiramente descoberta (o retorno à Freud que o
próprio Lacan chama de reviravolta)”(Escritos, p. 421).

Aqui Lacan deixa claro que seu retorno à Freud, que tem caráter de reviravolta, de pirueta, implica em sair desse “coisismo” a que os pós-freudianos levaram a prática da análise. 

“É de uma iniciação nos métodos do linguista, do historiador e, diria eu, do
matemático que se deve tratar agora, para que uma nova geração de clínicos e
pesquisadores resgate o sentido da experiência freudiana e seu motor.. Ela há de
encontrar meios também de se resguardar da objetivação psico-sociológica, onde
o psicanalista, em suas incertezas, vai buscar a substância daquilo que faz,
embora ela só lhe traga uma abstração inadequada em que sua prática se atola e
se desfaz” (Escritos, p. 436).

Isto é, só podemos estar de acordo com a proposta de retorno à Freud se utilizarmos psicanaliticamente tais áreas citadas: a linguística, a história e a matemática. Somente dessa maneira conseguiremos sair dessa coisificação da análise, dessa busca psico-sociológica pararesponder nossas incertezas.

Vejam a contundência de Lacan quando fala para não pensarmos a prática analítica de
forma psico-sociológica ou de forma substancial-concreta. Fazer psicanálise dessa forma é ceder
à resistência do discurso e por isso não ocupar sua função de analista. Então podemos afirmar,
junto com Lacan, que toda tentativa de pensar a estrutura do sujeito de forma psico-sociológica
vai contra a sua proposta, pois é resistencial e não pode tocar na Verdade do analisante. Proposta
que podemos perceber que nunca foi abandonada e que ganha formalização mais sólida com o
andar de seu ensino através da lógica modal de predicado, da topologia de superfícies e dos nós.

E como seria tomar de forma psico-sociológica a estrutura do sujeito e com isso ceder à resistência do discurso?

Acredito que é tomar como concreta-factual toda história que o paciente começa a contar; é fazer um julgamento moral-social dos fatos que o analisante diz; é desacreditar daquilo que o paciente diz achando que possa ser mentira dos fatos; é tomar como real, como concreta, como um jogo intersubjetivo que acontece na novela edípica; é fazer do Vél da Alienação um processo de nascimento do humano que fala; é tomar o tempo como linear, portanto com passado, presente e futuro. Eldesztein (2012) fala que fazer tudo isso é trazer a análise para a dimensão concreta da realidade; isto é, a realidade tridimensional (altura, peso, profundidade).

Confesso a vocês que já cedi muito a essa resistência do discurso. Recordo-me de um paciente adolescente vinha me falar das coisas mais extraordinárias e inacreditáveis que fazia ou que aconteciam com ele e eu ficava preso apenas aos elementos factuais chegando a pensar: será verdade tudo isso? Está ele delirando? É psicótico? Com isso eu não conseguia ler a estrutura do sujeito que se apresentava naquele discurso diacrônico.

Não digo que estas questões não sejam importantes de se fazer num tratamento, mas que não se tornem as principais, pois percebo, hoje, que pensar estritamente dessa forma é ser “solidário” e ceder a resistência do discurso, como Lacan nos disse na citação anterior, e que assim deixamos de operar com a estrutura do sujeito na dimensão analítica, que não é a tridimensional.

Pois, então, como ler e como operar com a estrutura do sujeito de forma a não ceder à resistência do discurso?

Para responder esta pergunta, poderíamos enveredar por vários caminhos e utilizarmos todos os recursos que Lacan nos oferece para fazer a clínica, tais como: as superfícies topológicas, a escrita matemática, a lógica modal de predicado, as teorias do conjunto, a topologia dos nós, dentre outros. Todos esses recursos apontam para uma dimensão que é própria da psicanálise lacaniana, que penso não ser nenhuma das dimensões que conhecemos; mas uma dimensão própria de nosso campo que conjuga a linguisteria ou alíngua com a topologia. Para que fique um pouco mais claro: os pós-freudianos utilizavam a realidade tridimensional para fazer a clínica. Já Lacan utiliza a dimensão topológica conjugada com alíngua para fazer a sua clínica. Isto ele já propõe na década de 50 e vai até o fim de seu ensino.

Feita essa introdução, agora posso apresentar o recorte que pretendo fazer, que é discutir o conceito de desejo e sujeito na clínica lacaniana articulados com os conceitos de vazio, furo e falta. Depois dessa introdução, acredito que já estamos bastante advertidos para saber que o desejo na clínica lacaniana não pode ser confundido com o desejo que é do discurso comum. Se pensarmos que o desejo visa um objeto ou tem algum sentido, penso que fazer isso é escorregar da posição de analista pois é ceder à resistência do discurso.

Por outro lado, o desejo se caracteriza por ser o resultado de uma operação, uma manobra do analista que produz uma modificação na estrutura do sujeito. Não há um objeto do desejo; há, sim, um objeto causa do desejo. Portanto, o objeto nunca está à frente do desejo; mas só pode estar em posição de causação do desejo e, por isso, vai poder se articular com a possibilidade de o analista, em sua função, jogar com a falta (-φ) e causar o desejo. Portanto, não há nenhuma possibilidade de advir um sujeito do desejo sem a presença de um analista.

O sujeito do desejo ($) não responde a uma ontologia do ser, não é substancial, não é concreto, mas é fruto de uma experiência de divisão; divisão entre Saber e Verdade. A existência do $ é efêmera, pontual, portanto. Só pode existir se tiver um analista que produz essa operação de efetuação do sujeito do desejo ($). Operação esta que se efetua quando o analista se faz presente jogando com a falta (-φ) e consegue tocar no ponto onde o Saber vacila, S(Ⱥ), num “vazio de significação”, que Clara articula com o Saber no Real, que é impossível de ser assimilado pelo simbólico Ф. Neste sentido, alguns de vocês poderiam se questionar de onde vem esse vazio que pode ser tocado pela manobra analítica.

Pois bem, Lacan já nos deixou indicado desde o começo do seu ensino que há algo que é excluído mas que é tão importante quanto aquilo que o excluiu. É o real que ex-siste a cadeia significante que determina seu funcionamento. Este funcionamento de exclusão é semelhante ao funcionamento das leis da linguagem. Por exemplo, para se escrever uma palavra ou compor uma frase é necessário que palavras ou letras sejam incluídas e outras excluídas de acordo com a regra gramatical vigente. Portanto, o que foi excluído participa da composição da frase ou da palavra que se intentou escrever. É nesse sentido que Lacan diz que as leis da linguagem nos ensina a dar importância aos elementos excluídos. Ele vai falar da carta roubada, do conto de Allan Poe, para falar que ela, enquanto ex-sistência, determinava o enredo do conto.

Fica claro, então, que há algo que não pode ser apreendido totalmente pelo simbólico. Mas ainda resta a questão de como esse real, que é impossível de ser apreendido totalmente pelo simbólico, é transmitido e participa da estrutura do sujeito.

Pois bem, esse impossível de ser apreendido pelo simbólico podemos articular com o Ф, que é o vazio constituído pelo furo da linguagem e suporte da função do significante e do campo do gozo fálico. Podemos, então, pensar que este impossível de ser apreendido é um vazio que sustenta e é sustentado por alíngua. Para tornar isso um pouco mais objetivo utilizo um exemplo: é como se pegássemos uma superfície e nela fizéssemos um buraco com uma broca. Para os efeitos de analogia, a broca causadora do furo é a linguagem e constitui o vazio lhe dando consistência. Este vazio pode ser pensado somente nesses termos: um contorno que garante a sua consistência.

Segundo Clara, os efeitos de Ф só podem ser operados na estrutura do sujeito pelo S(Ⱥ), significante da falta no Outro. Esse Ф, que Clara articula com o saber no Real, é o saber que nunca se saberá, é o real impossível, o vazio, portanto tem a ver com a morte e com o sexo3, e sua principal característica é de ser estruturante da estrutura do sujeito.

Este Ф, este vazio estrutural e estruturante, sempre convoca o sujeito a dar uma resposta quando o saber lhe vem a faltar; que é o que disse sobre o momento de aparição do sujeito, de uma divisão experimentada entre Saber e Verdade operada pela presença do analista.

No entanto não há uma única resposta que o analisante pode dar frente ao encontro com a falta (-φ). Penso que podemos esperar, pelo menos, por 3 respostas: a primeira, de ordem imaginária, é pela via da manutenção sintomática s(A). Tentativa de lidar com o vazio Ф pagando com seu sintoma. A segunda se trata de uma impossibilidade de o analisante se servir do simbólico para responder a este vazio de significação, e aí podemos esperar o pior das reações, tal como a passagem ao ato e atuações. Mas isto não vamos abordar hoje. E o terceiro modo de resposta, que é o foco deste trabalho, representado pelos efeitos do significante da falta no Outro S(Ⱥ) na estrutura, que é de ordem simbólica, e que denuncia a impossibilidade de o Outro saber tudo – a Verdade sobre a castração.

Penso que este seria o efeito, citado por Clara, operado pela substituição de Ф por S(Ⱥ), onde o analisante se depara com uma falta de saber e que a partir daí terá de se servir de uma marcapara dar novas respostas ao enigma de seu desejo. Este momento em que é produzido o encontro do analisante com este vazio de significações, que marca a incompletude de um saber todo, é que podemos articular com o advento do sujeito do desejo. É neste sentido que afirmei, anteriormente, que o desejo não tem um sentido, não tem objeto e sua característica é ser evanescente. É evanescente, pois diante desse vazio de significações novas significações, novas Verdades, novas “fixções” deverão ser construídas.

Ao reconstruir novas Verdades, o analisante pode mudar de posição frente ao real do sexo e da morte, isto é, do vazio estrutural Ф, do saber no Real, que está suportado pela alíngua. Ao poder reescrever sua estrutura, a partir de um novo posicionamento diante desse vazio, algo se modifica produzindo, talvez, uma nova organização egóica e supressão/troca sintomática. Mas vale lembrar que não é isso que rege o tratamento analítico. Este visa, por excelência, a mudança na estrutura do sujeito e para isso temos de não ceder às resistências do discurso e nem ter um furor de curar os sintomas. Tal possibilidade de reescrever a estrutura do sujeito se dá em função de incontáveis (des)encontros que são produzidos pela figura do analista ao longo de uma análise.

Autor: Edinei Hideki Suzuki

 

1Texto apresentado no Fórum da ALPL.

2Com o advento da topologia dos nós, Lacan não manteve esse privilégio do simbólico sobre o imaginário. Todos passaram a ter a mesma importância.

3Freud afirmou que não temos registro da morte e do sexo no psiquismo. Por isso que criamos os mitos.

4Sobre este tema, trabalhar com o livro de Clara Cruglak, Clínica da Identificação, que ressalta a importância da marca da incorporação da falta, representada por um traço no toro revirado, que o sujeito pode se servir ante a irrupção do Real.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CRUGLAK, C. A. Clínica da identificação. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2001.

LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. Rio de Janeiro: Zahar, 1960.

LACAN, J. A coisa freudiana e o sentido do retorno à Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1955.

LACAN, J. A psicanálise e seu ensino. Rio de Janeiro: Zahar, 1957.

LACAN, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. Rio de Janeiro: Zahar, 1956.

LACAN, J. Seminário 11. Rio de Janeiro: Zahar, 1964.

LACAN, J. Seminário 20. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

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