O analista na estrutura

Um analista é ao menos dois.

Essa formulação de Lacan, foi a primeira frase que me ocorreu no momento inicial da tela em branco para a redação deste texto. Decidi escutá-la, ampliando um pouco o caminho antes traçado e parcialmente trabalhado, em um de nossos fóruns dedicados ao tema do objeto da psicanálise, ainda em 2021. Entendo a produção para nossa Jornada, que sempre marca o encerramento de um eixo temático, de forma similar ao trabalho de desenlace de um cartel: fruto singular dos efeitos, das ressonâncias de um tempo de trabalho na companhia dos colegas de escola. As letras que se precipitarem efetivamente como resto desse percurso, serão testemunho da legitimidade do funcionamento único e peculiar de uma escola de psicanálise, onde um a um, mas não sem outros, sustentamos nossa práxis no enlace entre intensão e extensão. Só assim, acredito, há alguma transmissão possível da psicanálise.

No marco dos 10 anos da Associação Livre – psicanálise em Londrina e na Jornada cujo tema é o objeto da psicanálise, dar ouvidos à frase que se impôs como necessária de ser escrita, estendendo os horizontes iniciais é, para mim, seguir uma ética do que faz escola. Não por acaso, sou tomada nesse momento pela necessidade de trabalhar, ainda que de forma breve e tangencial, sobre o um ao menos dois. Um analista, mas duas funções e/ou dois espaços que habita e transita de forma articulada, a saber, a intensão e a extensão. Assim, em um primeiro tempo (quando do trabalho no fórum e da escolha do título), o analista na estrutura fazia alusão à presença de um analista compondo o quadro clínico (em intensão, portanto) fazendo parte da estrutura que se arma ou se escreve em transferência, indicando que o objeto da psicanálise não é sem a presença de um analista. Agora, levando em conta o um ao menos dois, o analista na estrutura também se refere à um analista na escola (em extensão, portanto), fazendo parte, arrisco dizer, da estrutura da escola, espaço por excelência para a transmissão da psicanálise através do inexorável enlaçamento entre intensão e extensão.

Vejam, se o objeto da psicanálise é o sujeito do inconsciente e sua estrutura fantasmática e sintomática como efeito do discurso analítico, tal objeto só pode ser concebido em intensão e atrelado à função presença do analista e ao operador desejo do analista na direção da cura. Mas, se um analista é ao menos dois, a intensão não é sem a extensão e vice-versa. Portanto, o objeto da psicanálise, insisto, aquele concebido em transferência, não exclui os efeitos de trabalho de um analista em extensão, ou seja, do trabalho de transmissão da psicanálise que é o que faz escola. Assim, no texto de hoje, meu interesse é desdobrar a proposição contemplada no título (o analista na estrutura) nos campos da intensão e da extensão, acompanhando a premissa um analista é ao menos dois.

Foram as lições de maio de 66 do Objeto da Psicanálise, onde Lacan (2018) trabalha temas centrais do seminário a partir da obra As meninas, de Velasquéz, que me permitiram fazer o recorte em questão. Ali, foi possível ler que o analista participa (através da função presença) do inconsciente, do fantasma, do sintoma do analisante, ou seja, da estrutura do quadro clínico que se arma em transferência. São lições tão capturantes quanto a tela magistral e com implicações de extrema importância clínica, desde a diferença radical em nosso campo quanto à questão diagnóstica até a novidade conceitual e a singularidade do que concebemos como inconsciente, sujeito, fantasma e ato analítico. Ou seja, são os fundamentos de uma ética e de uma direção de cura que são contemplados nessas aulas.

A tela de Velasquéz convoca vários enigmas, comentados e interpretados diferentemente em várias áreas de saber. Um deles é o efeito de arrebatamento que a obra produz, dentro e fora parecem em continuidade e temos a impressão de participar do quadro. Além do tamanho da tela, colaboram para tal sensação o trabalho de perspectiva (considerado inovador), o uso muito particular de luz e sombra e o jogo de olhares. Os olhares dos personagens não se cruzam, parecem olhar alhures e, ao mesmo tempo, na direção do expectador. Olhamos e somos olhados pelo quadro. Lacan (11/5/66) observa que esses olhares aparentam focar num mesmo ponto invisível que não se sabe qual é, nem se está dentro ou fora do quadro. Ele associa o objeto a, o olhar como objeto a, a esse ponto invisível grafado pelo visível dado a ver na composição da tela.

No Seminário, também é sublinhada a relevância do quadro dentro do quadro (aquele que vemos em reverso na tela) e proposta sua função de tela, em dois sentidos. Primeiro, como suporte onde seria projetada, por um jogo de espelhos e de luz, a imagem do casal real que se encontraria em um aposento adjacente. O reflexo no espelho, atrás de Velasquéz, seria de uma imagem do casal real projetada nesse quadro que vemos o reverso, uma espécie de protótipo da televisão. Em segundo lugar, a função de tela no sentido de anteparo, daquilo que barra, faz escansão, cava um buraco, um hiato entre o olho que vê e o olhar que escapa. Mais uma vez, um visível que marca o invisível e excluído.

Outro ponto enigmático é o que Velásquez, presente no quadro, estaria pintando. Na contramão da maior parte dos comentadores da obra, Lacan não compartilha desse enigma e afirma que ele pinta a cena que vemos, mas em outra tela fora da nossa visão e escondida pelo quadro em reverso, o que justificaria o pintor estar distante deste. Observem que a presença de Velasquéz e da tela em reverso marcam a entrada no quadro do que deveria estar de fora e, portanto, invisível. Elementos que reafirmam um exterior no interior, um invisível no visível, um fora-dentro-fora em continuidade.

Ainda há destaque para o efeito de descentramento produzido na obra por duas linhas de estrutura que cortam o quadro e estabelecem dois centros. Um deslocado pelo ponto de fuga projetado na porta onde está Nieto e o segundo no espelho, onde se reflete a imagem do casal real, como centro do quadro. Por sua vez, o pintor participando da cena também tem efeito de descentramento, tanto pela introdução de um êxtimo, quanto pelo fato histórico de haver uma primeira versão do quadro em que ele não estaria ali. Originalmente, a princesinha recebia um cetro como símbolo de seu futuro reinado, por ser filha única do casal. Com o nascimento de um irmãozinho, novo herdeiro do trono, Velásquez pintou-se na tela para deslocar (descentrar) a questão original do quadro e amenizar o desencantamento da princesinha.

Além da condição de êxtimo e de descentramento, Velázquez está no quadro em uma situação de pura presença, em suspenso, en souffrance, em espera. Presença que funciona como tela em branco para projeção. Ele olha alhures, para o referido ponto invisível que não se sabe qual é, participando (a partir da condição de tela, fazendo quadro) da montagem pulsional escópica do olhar como objeto a. Pura presença, êxtimo, descentramento que produz corte, fratura. Velásquez é um elemento da estrutura do quadro, cuja presença em espera faz tela e abala as certezas, o centro, corta e inova. E não é essa a posição, o lugar do analista na direção da cura: fazendo tela, abalando as certezas, o centro, cortando e inovando?

O trabalho de Velásquez na construção da estrutura do quadro é apoiado em leis da geometria projetiva que permitem questionar o campo da representação. Assim também é o nosso trabalho, apoiado em certas “leis”, no sentido de operadores que legalizam e orientam nossa práxis. É o desejo do analista que opera, sustentado pela presença do analista, e põe em marcha nosso campo, sempre subversivo de uma realidade representacional. Lacan ainda indica que, para além da representação de uma realidade, são os representantes da representação que temos no quando de Velasquéz. E é o conceito freudiano de representante da representação que permite à Lacan subverter a fonte linguística com a sua proposição de significante com função de operador estrutural do vazio como causa, fundamento da noção de sujeito e do inconsciente estruturado como uma linguagem. Assim, fazendo tela que opera como representante de uma representação e suporte de a compomos o quadro clínico na escrita do fantasma, do sujeito do inconsciente e do sintoma na transferência. Portanto, não é possível ser analista de uma posição exterior, interrogatória como faz um psiquiatra ou um psicólogo. Para que um analista advenha, é necessário fazer parte da experiência, parte do quadro clínico.

Até aqui, o analista na estrutura no que tange à clínica propriamente dita, à intensão. E o que dizer do analista na estrutura da escola, em extensão, seguindo a pista do um analista é ao menos dois? Minha proposta é verificar se podemos pensar alguns desses pontos trabalhados por Lacan, a partir da obra de Velasquéz, como indicadores para escriturar nossa práxis em intensão, como passíveis de desdobramentos para a escritura do campo da extensão. Convido-os a me acompanharem nessa segunda volta do texto.

Logo no início da fala de hoje, relembrei que uma escola de psicanálise não se configura como um agrupamento de analistas. Os analistas de uma escola são contados um a um, não são elementos a serem somados na composição de um todo, de um conjunto. Sustentam uma ética comum, se orientam pelos princípios que regulam o campo psicanalítico e sua escola, mas a práxis é única. Ressalto que não se trata da singularidade ou individualidade dos membros. O um diz respeito à práxis analítica que é inventada por cada um, ainda que rigorosamente fundamentada nos parâmetros de uma ética e de uma lógica da qual os colegas de escola compartilham. Essa premissa, já é por si produtora de descentramento, de abalo, de inovação, de corte no que faz lei para os grupos em geral e também para outras propostas de instituições psicanalíticas. Tal qual a presença de Velasquéz no quadro como alusão à presença do analista na direção da cura: descentramento, fratura, corte, inovação. Aqui temos um primeiro desdobramento para o campo da extensão de um dos pontos trabalhados a respeito da intensão.

Uma escola opera através de dispositivos que colocam em prática o princípio de não agrupamento: cartéis, reuniões clínicas, rede clínica, redes de estudo e transmissão, o passe, jornadas de escola… São espaços destinados à convocação do trabalho de passar em ato a experiência clínica de cada um, teorizando, escriturando uma prática, enlaçando intensão e extensão. Contamo-nos um a um através do suporte desses dispositivos que põem em marcha a estrutura de funcionamento da escola, a qual não é sem o analista. Assim como na clínica, não é possível ocupar uma posição exterior à escola, meramente interrogativa, explanativa ou passiva. Como um e entre outros, participamos da estrutura da escola e fazemos ao menos dois do um. Assim, intensão e extensão se colocam em continuidade e com caráter de êxtimo, tal qual os elementos comentados na obra de Velasquéz como referência para pensarmos o analista como compondo o quadro clínico na direção da cura.

Tomo agora o quadro em reverso na obra em questão e sua dupla função de tela, como lugar para projeção e como anteparo que barra e faz cisão entre o visível e o invisível com efeito de descentramento. Como vimos, o pintor retratado no quadro, em posição de espera, também possui essas duas funções de tela, numa alusão à presença do analista: tela para projeção, suporte do objeto a no fantasma e tela que cinde e produz descentramento, abalo, corte e inovação. A escola, por sua vez, não comportaria também essa dupla função de tela? Já observei que o princípio de funcionamento de uma escola é por si inovador e produtor de um corte com aquilo que faz grupo. Além disso, entendo que para haver efeito de transmissão, algo novo deve se produzir e não há novo sem abalo nas certezas, sem rachadura, sem corte com o já sabido ou já dado. Um a um, com o trabalho de transmissão produzimos corte, fratura e abalo na tendência ao agrupamento e na tentação das certezas e suas falsas garantias. E, um a um entre outros, em posição de espera, en souffrance, cumprimos função de tela como suporte para as conjecturas, as dúvidas, as construções, as desconstruções, os erros, as angústias… Enfim, suporte para o processo sempre árduo e prazeroso que caracteriza o trabalho com psicanálise, seja na experiência do inconsciente ou na experiência de transmissão. Acredito que a escola também cumpra função de tela como suporte no sentido de sustentar uma ética através dos dispositivos que legalizam sua posição, dando consistência ao lugar, ao espaço da transmissão.

Nessa direção, lembro a relação entre o trabalho de construção da estrutura do quadro, através das leis da geometria projetiva que permitem questionar o campo da representação, e o trabalho do analista, apoiado em certas “leis”, em operadores que legalizam e orientam a direção da cura, sempre subvertendo o campo representacional. Como já observei, os dispositivos de funcionamento de uma escola são operadores que legalizam sua prática de transmissão e também subvertem as representações e o imaginário de um conjunto fechado e protetor, de dogmas a serem seguidos, de um conhecimento acabado e de um status quo a serem alcançados e/ou recebidos de um amo.

Para finalizar, sem nunca terminar, uma pequena e fundamental observação sobre o termo estrutura, com o qual tomo alguma liberdade quando falo de estrutura da escola. Clara Cruglak (2021), a partir da resenha de um colóquio coordenado por Roger Bastide[1] e intitulado “Sentidos e usos do termo estrutura”, indica que o termo vem das artes, em especial da arquitetura e que a palavra deriva de struere: construir. A autora sublinha a origem da palavra à um verbo, o que indica uma ação e não um estado e segue com a seguinte citação do matemático Guilbaud, também presente no referido colóquio:

Em matemática, a palavra estrutura não é o contrário de algo, é um andaime, sempre algo oculto, interno, uma gênisis, um princípio, um esquema, um padrão, pois a melhor maneira de compreender uma construção é fazê-la (frente a objetos matemáticos, para compreendê-los, temos que construí-los). (Bastide apud Cruglak, 2021, p.29, livre tradução)

A melhor maneira de compreender uma construção é fazê-la, diz o matemático. A obra de Velasquéz é comentada por Lacan (2018) em seu processo de construção através da geometria projetiva, mostrando que a melhor maneira de compreender o conceito de estrutura em psicanálise é não o substantivar (através dos diagnósticos, por exemplo) e sim lê-lo como efeito da ação de construir em transferência, da qual o analista participa. Acrescento, com os desdobramentos propostos para o campo da extensão, que não apenas a melhor, mas a única maneira de conceber uma escola de psicanálise é fazê-la. Struere, construir uma escola, não há outra forma e não há como um analista não participar desta ação quando, a partir de sua experiência com o inconsciente, leva a sério e às últimas consequências, a proposição de que um analista é ao menos dois.

IX Jornada da ALPL – O objeto da psicanálise

Referências

1.Cruglak, Clara (2021). Lo Real a la Huella: em la experiencia psicoanalitica. Ciudade Autonoma de Buenos Aires: Escuela Freudiana de Buenos Aires.

 

2.Lacan, Jacques (2018). O objeto da psicanálise. Seminário, livro 13 (1965-66). Texto original disponível em staferla.free.fr; tradução: Luc Matheron; revisão técnica: Glaucia Nagem e Luciana Guarreschi. São Paulo: Fórum do Campo Lacaniano.

 

[1] AAVV; Roger Bastide: Sentidos y usos del término estrutura em las ciências del hombre. Buenos Aires: Paidós, 1978