Historiando Vidas ou a Constituição do Sujeito em Tempos de Violência

Um psicanalista, diante de uma criança pode posicionar-se de diferentes formas. Mas se um psicanalista, assim como eu, comungar das ideias de Alba Flesler quando afirma que o psicanalista atende a criança, mas aponta para o sujeito e pondera que este sujeito, mais que idade tem tempos, então este analista encontrará o que há de específico no ato analítico.

            A ideia inicial deste trabalho era refletir sobre as vicissitudes de um sujeito em constituição quando o Outro se apresenta a este pequeno sujeito com muita agressão.

            Lembro-me, ainda com espanto, de uma mãe que me procurou devido às sucessivas agressões que o pai havia cometido contra o filho do casal desde tenra idade. Naquele momento o filho, já adolescente, encontrava-se em uma outra (e quem sabe a mesma) situação de violência: trabalhava para o tráfico de drogas. Dizia-me a mãe: “Um dia quando Zezinho tinha por volta de três anos, o pai chegou em casa sob efeito de álcool e drogas. Zezinho estava adormecendo no sofá e o pai jogou-o longe, como se ele fosse uma almofada.”

            Penso ainda hoje o que é para um sujeito ocupar no mundo este lugar de almofada do pai, de objeto para o gozo do Outro. Quais as possibilidades de o sujeito advir? Não por acaso, Zezinho contou-me nas poucas ocasiões que tive de ouvi-lo sobre a crueldade e rigor de seu “patrão”, expressão que ele se utilizava para referir-se ao traficante, chefe da “boca” em que trabalhava.

            Tal reflexão – as vicissitudes da constituição do sujeito diante da agressão do Outro – torna-se um grande complicador, já que o sujeito responde ao chamado do Outro de maneira muito singular e tais respostas se relacionam com os tempos do sujeito.

            Os tempos a que me refiro situam-se entre a proposição do Outro e a resposta do sujeito a essa proposição.

            Recorro novamente a Flesler, que articulando os tempos que Lacan conceitualizou com os três registros do sujeito da estrutura, Real, Simbólico e Imaginário, situa-os da seguinte forma:

1 – Num primeiro momento, o Outro propõe e o sujeito responde que sim, se alienando da proposta. Trata-se de ser ou não o falo, um tempo onde predomina o registro Imaginário, com escassos recursos simbólicos para enlaçar Real e Imaginário.

2 – A autora traça um segundo tempo, tempo de despertar, de deixar descoberto aquilo que se encobria; onde o que a criança vê é a castração do Outro primordial, tempo do primeiro despertar sexual, que no conceito lacaniano localiza-se o instante de ver, cujo predomínio é do registro  Real.

3- O tempo anterior abre possibilidades ao sujeito, ainda que desperte grande angústia. Surge, nesse momento o conflito de ser ou ter o falo, tempo que abre possibilidades para que a separação do Outro se efetue. Nesse tempo é de suma importância que se faça operar o “desejo dos pais”, operação de antecipação e nominação do sujeito, que aponta para o sujeito um lugar de não mais ser o falo, mas que permite ao sujeito ter falo. Tempo de predomínio do registro Imaginário. Esse lugar de ter falo só se faz possível se o Outro suporta a separação e a distribuição de gozo exigida por esse novo tempo.

4 – Caso o Outro suporte, segue-se um tempo, um tempo de sexualidade pulsante onde as crianças questionam normas e leis. Quando chancelada à busca pelo saber, a criança aprende a ler e escrever. Este tempo, tempo de compreender será de predomínio simbólico.

5 – Ao desdobramento desse tempo de compreender segue o segundo despertar sexual, ou como Flesler o coloca, o drama puberal ou adolescência, tempo de questionamentos sobre o sexo e a autoridade e, novamente, de predomínio do registro Real.

6 – Em um momento de concluir, de conclusão da infância, a operação desejo dos pais se faz novamente necessária, antecipando e nomeando novamente o sujeito, permitindo a ele um gozo para além do grupo familiar. Tempo de enlaçamento Real, Simbólico e Imaginário.

             A questão do tempo se faz necessária para essa reflexão sobre a constituição do sujeito e violência. Isso porque delimitar tais tempos, que não são cronológicos, mas lógicos e, logo, não seguem uma sequência natural, já que por ser um ser de linguagem o humano rompe com a natureza, toca em uma questão importante para nós hoje. Essa questão diz respeito à linha mestra deste ano em nossa associação, que é pensar sobre psicopatologia: sujeito e estrutura.

            As questões não nos tomam de assalto sem uma intencionalidade. Tal anseio pela reflexão proposta advém de um trabalho não analítico, em uma instituição pública voltada para crianças e adolescentes em situação de violência. O dia-a-dia com estes sujeitos em diferentes tempos de constituição me colocam muitos interrogantes. Ainda que o Estado demande que seus “técnicos” “livrem” as crianças encaminhadas para tal instituição de um suposto sofrimento que elas tenham vivido em razão da violência sofrida, o que ouço desses pequenos sujeitos é uma outra coisa. Ou dizendo de outra forma, ouço uma porção de coisas, que não necessariamente o que é ser vítima ou  ainda, o que é ser vítima de violência.

            Essa experiência institucional, de um trabalho não analítico, sustentado pelo desejo do analista (não me aprofundarei nessa questão), juntamente com os trabalhos desenvolvidos esse ano na Associação Livre, em especial o trabalho de cartel sobre o seminário 23, permitiu-me recolocar minha questão.

            Mais importante, para mim nesse momento, que as vicissitudes possíveis do sujeito que se vê muito precocemente enlaçado ao Outro em meio a agressão, são as respostas singulares que este sujeito dá ao vivido.

            Se a estrutura é a do sujeito que comporta sua posição frente à falta, há de se considerar o que Lacan nos coloca no final de seu ensino: a estrutura não como uma anterioridade e sim a que se constrói como efeito de linguagem e de forma retroativa. Dessa forma, a estrutura do sujeito não tem nada de palpável, de objetivável, de interioridade. O sujeito não é o objeto da psicanálise, pois a psicanálise não tem objeto. O que interessa ao analista é a aparição do sujeito, que não é objetivada.

            Sendo assim, numa oficina de contação de histórias na instituição pública em que ouço crianças de todas as idades e, por vezes, sujeitos em diferentes tempos, uma criança de onze anos revela ao grupo que sua história favorita era “O Diário de Anne Frank”, em meio a “Chapeuzinhos Vermelhos” e “Procurando Nemo”. Essa mesma criança, apreciadora da história de Anne Frank, conta-me ao pé do ouvido uma situação difícil pela qual passou antes de vir à oficina. Convidada a relatar o ocorrido ao grupo ela se nega, mas pede-me que conte. Com toda licença poética que me permiti, dramatizei seus percalços, dando um tom pessoal a uma história que, a partir de contada, passou a ser minha. Mas minha jovem interlocutora, foi aos poucos se apropriando de sua própria historia, acrescentando detalhes e construindo no grupo algo que lhe era pessoal e intransferível. A história contada despertou no grupo o desejo de contar histórias, de outros ou suas, construídas sempre no momento em que se toma a palavra.

            Entendi que a palavra nos dá âncora, faz ancoragem, permite ao vivente se segurar no mundo. Numa análise, se o texto que o analisante apresenta é um texto construído, então a possibilidade de reconstrução é enorme, dando-nos uma grande liberdade para trabalhar.

            E já que este trabalho se trata de crianças e histórias, terminarei este texto homenageando o saudoso poeta Manoel de Barros, que nos deixou recentemente e que entendia muito de palavra e criança: “A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos.”

Para mim, de forma poética, essa pode ser uma definição do trabalho da análise.