Efeitos do Desejo

Queixas X Demanda X Desejo dos Pais

Pedro chega com quase 5 anos e é caracterizado desde pequeno como uma criança que não dava trabalho, era quietinha, dormia o dia todo, nunca chorava, “era bem bonzinho”. A queixa da mãe é a de que Pedro não interage com os as outras crianças, não pede o que quer, não acompanha os amiguinhos na escola. Recolhidas as queixas iniciais, a direção do trabalho foi a de diferenciar a demanda dos pais da possibilidade de uma questão analítica referida à criança. Este trabalho requer o atendimento paralelo dos pais, para possibilitar a elaboração de um luto, pela perda da ilusão de que uma criança real poderia corresponder à imagem da criança narcísica do desejo. (ZORNIG, 2006).

A partir disso, foi possível delimitar o quanto as demandas eram diferentes, por parte dos pais e da criança. As queixas do pai com relação ao filho tinham muito a ver com sua própria história. O pai tem muita preocupação de que o filho não apareça, não pode brincar, se sujar e fazer malcriações, por assim parecer um filho mal cuidado. A mãe queria uma menina, branca e Pedro passou da hora do parto, nasceu escuro. Logo de saída Pedro chega ao mundo desencontrado do filho esperado, sendo que tal identificação é necessária para a entrada na filiação. Os pais vieram pedindo uma reparação, que lhes devolvessem um filho de acordo com seu ideal.

Por outro lado, nota-se que eles não reconheciam as manifestações da criança diante da separação, relatam que Pedro não manifestava reação. Porém Pedro traz personagens para os atendimentos, falando de feridas e mortes, atestando registrar a separação de pessoas importantes, da entrada na escola. Ao mesmo tempo, os cuidados eram muito no sentido de invadir o corpo da criança, tomado apenas pelo aspecto biológico, não era dado um sentido aos atos dela, nem atribuídas sensações que lhe dessem notícia de um corpo. Segundo (Lacan, 1969), para o devir de um sujeito, é necessário um desejo “que não seja anônimo”. Esse desejo tem a função de nomear, de transformar o grito em apelo, cuja conseqüência é a de “dar” lugar na rede significante. Há, então, a busca incessante de significantes pelo infans que o possam representar. Esse movimento se estabelece na tentativa de ocupar um lugar no desejo do Outro. (ZORNIG, 2006).

Os pais tomam Pedro num lugar de alguém que não pode saber. Ao supor o filho nessa posição, acabam impedindo-lhe o acesso ao saber. Não o deixam participar de atividades fora da família com a escola. Tais atividades possibilitam uma vivência prática do que os alunos aprenderam, possibilitando uma atribuição de sentido ao que se aprendeu. E é isso que possibilita o aprendizado.

Os pais de Pedro têm bastante medo de deixar os filhos experimentarem isso que eles consideram “estranho”. O estranhamento com relação ao social pode dizer do estranhamento sentido por eles com relação a esse filho, que é reatualizado frente ao olhar de estranhamento do outro. Não conseguem admitir nenhuma produção de Pedro como um saber, sempre as toma como “bagunça” ou “frescura”, algo sem sentido, que não visa uma construção. A ferida que não cicatrizou faz a filiação ser pela via do que fracassa, do que fica como débil, incapaz, que não entende as coisas.

(…) Fica marcado um impossível no real, que fica ali e não pode modificar –
se.(…)? algo próprio o que se destruiu. Aquilo que se busca realizar num
filho.(…)O narcisismo e a trasmissão em outra geração.(…)Não se pode
reconhecer – se nele. Então, não se tem onde situá – lo. E o primeiro lugar pode
ser o de um refugo. (TKACH, p.194 ).

É possível verificar então o quanto a queixa dos pais, de que Pedro não aprende tem a ver com seu próprio desejo. Isso ocorre pela própria estruturação do sujeito humano. Para Lacan (1967 apud Zornig, 2006) o infans vem ocupar um lugar marcado pelo desejo do Outro, se alienando a ele. A criança humana, ao nascer, por sua própria imaturidade biológica, não tem como se ver inteira; é o olhar do Outro que vai lhe dar uma imagem antecipada de uma unidade que não corresponde ao que ela vivencia (um corpo despedaçado). Dessa forma, a criança é capturada por este olhar que funda uma imagem, com o qual ela se identifica, ficando alienada a ela. Mas ali o sujeito se escraviza. Necessita encontrar o intervalo no discurso do Outro para constituir o seu próprio desejo, reencontrando sua própria falta.

Sintomas

Do lado de Pedro, é possível verificar o quanto essa dimensão do imaginário falhou: ele não dava conta de ver sua própria imagem no espelho, nem de ver suas fotos de pequeno. Depois, passou a não se olhar mais no espelho, e recobria sua própria imagem e fazia o mesmo com as figuras das revistas. Pedro também não tinha noção de seu próprio corpo, do espaço que ele ocupava. Não falava, babava o tempo todo e enfiava objetos na boca. Também tinha frequentes dores de garganta, vômitos, diarréias, e não comia. O não falar dele pode ser efeito de que não se falava com ele, nem era escutado, ele não era tomado num lugar de falante. O Outro sabia dele sem ele precisar dizer.

Por outro lado situava-se num conflito: se correspondia ao desejo de seus pais, colocando-se na posição de débil, por outro lado, recusava-se a corresponder totalmente a esse fantasma. Fazia sintomas de recusa (alimentar a princípio), adoecia, se entristecia, denunciando que algo não ia bem. Os sintomas infantis são uma maneira da criança denunciar sua não conformidade ao ideal, demonstrando sua própria subjetividade. A maneira pela qual o sujeito interpretará o desejo do Outro sempre o levará para um impasse. Temos então, o infans situado na condição ativa, participativa, na construção de sua subjetividade. Porém, sua escolha não é fácil, aparece como duas possibilidades: ser devorado ou abandonado. O sujeito fica sem saída. (Zornig, 2006 & Whitaker, 2003).

Para sair desse impasse, é necessária a entrada de um terceiro nessa relação, que possibilite a Pedro a existência em um outro lugar, menos mortífero. Neste sentido, a entrada na escola foi importante nesse processo. A professora vem com uma nova demanda, a de que fale, é tomado por ela no lugar de alguém que está na linguagem, e a partir disso, ele começa a falar. E lhe dá um lugar, faz parte de um grupo, tem que respeitar regras, cumprir tarefas. Ou seja, tem que considerar a existência do outro, respeitar o espaço dele e delimitar um espaço para si. Seu sintoma aparece quando a demanda da professora entra em conflito com a dos pais: ela lhe pede que aprenda, e ele se inibe, recua diante do saber.

Desejo do Analista e Efeitos do Tabalho

No início de seu atendimento, Pedro só entrava junto com um dos pais, ficava no colo, se escondia atrás deles. Não me olhava, não me respondia, parecia-lhe extremamente penoso estar ali. Em seguida, quando começou a interagir, era somente a eles que se dirigia, ficando de costas para mim. Os pais demandavam que ele falasse comigo e faziam tentativas, porém, era visível que ele mesmo não tinha recursos. Quando Pedro pôde se engajar com os objetos, imediatamente, os pais se retiram. Depois de pouco tempo, Pedro vai até eles e os dois se engajam nessa atividade, me excluindo. De qualquer forma, ficavam sempre entre dois, não havia possibilidade de um terceiro. A escolha dos brinquedos de Pedro e dos pais testemunhavam a relação que se estabelecia entre eles: eram sempre brinquedos “devoradores”. Quando Pedro começa a falar, dizia palavras soltas, que necessitavam sempre da tradução dos pais. Além disso, sua fala era um eco do que eles contavam, era difícil diferenciar o que era dele e o que era do pai (discursos colados).

Diante disso, a direção de tratamento foi a de promover uma separação, barrar esse gozo devorador, possibilitando a Pedro se perceber amado sem ter que se pôr de objeto de completude desses pais. Lacan (1967) indica que a função do analista é a de se opor a que o corpo da criança responda como objeto parcial da fantasia parental. (ZORNIG, 2006). Porém, verificou-se o quanto essa relação estava frágil, foi necessário primeiro restabelecer o que falhou na alienação para depois promover uma separação. Pedro, apesar da presença física constante do pai, não a tinha no psiquismo, não tinha a palavra do Outro para poder representá-lo em sua ausência e dar conta de descolar-se dele.

A partir do olhar diferenciado propiciado pela situação de análise, Pedro começa a responder de maneira diferente, reagindo diante da invasão do pai. Reclama quando este lhe tolhe os movimentos em suas brincadeiras, faz manha. Pedro começa a brincar com tinta. Os pais o repreendem por “fazer bagunça” e ele então passa a repeti-la, direcionando a “bagunça” a eles. Também usa personagens ferozes para falar desse enfrentamento. Os movimentos de agressivização por parte de Pedro talvez possam ser interpretados como tentativas de sair dessa relação com o outro. Antes, não sentia-se invadido, agora já sente. Tem que aprender até onde vai ele e onde começa o outro para não se perder. Por outro lado, vive o conflito de amar esse pai e não poder dispensá-lo, e ter medo de perder esse amor. Ele então, passa a pintar-se e limpar em seguida, e chega a, por um tempo, parar de mexer com as tintas.

Com o tempo, começou a haver divergências entre o que Pedro queria dizer e o que os pais entendiam, denotando um espaço entre as duas subjetividades. Geralmente eram coisas que o pai não dava conta de escutar. Depois eles próprios puderam admitir para o filho que ele precisava falar para poder ser entendido.

Pedro começa a falar para os pais não entrarem, porém ainda não consegue entrar sozinho, e isso se repete por muitas sessões. Com o tempo, a partir de uma autorização e uma sustentação do pai, consegue fazê-lo. Na primeira vez, fica bravo e brinca de lavar a sessão inteira, respeitando a palavra dos pais. Ao terminar a sessão, pela primeira vez perguntou se eu ia embora também. Começa a solicitar os pais de forma mais elaborada (mostrar suas produções).

Nas sessões seguintes, começa a simbolizar uma ausência, chamar quando fica sozinho e notar a ausência das pessoas, perguntando por elas. Também começa a nomear as coisas que quer: ir fazer xixi, ir embora, ir com o pai. Benhaim (2006) diz que a criança, por meio do pensamento, tem acesso a um primeiro grau de independência, a um primeiro apaziguamento de seu desamparo. Segundo Freud (1920), toda simbolização implica um objeto ausente e, por isso ele valorizou a alternância ausência-presença da mãe, nos primeiros tempos de vida do sujeito, que coloca para ele o enigma do desejo.

A relação com o pai muda, para o sentido de uma identificação: pega uma carteira, e diz “trabaiá”. Por outro lado, suas brincadeiras que sempre se repetem dizem respeito aos serviços domésticos: lavar a louça, passar pano, passar o rodo, cozinhar.

O olhar diferente por parte do analista, possibilitou também ao pai uma mudança de olhar para seu filho. Passa a reconhecer o quanto Pedro está mais esperto e este responde a isso, localizando e nomeando figuras nas revistas. Os pais já dizem para ele contar, não diz mais tudo a respeito de Pedro. Em uma sessão, coloca uma questão de se as crianças entendem o que se fala para elas. Pedro então, a partir disso, começa a brincar com “hominhos”, que serão um companheiro constante nos atendimentos a partir de então. Troca o bicho, um animal primitivo, que se comunica por mímica (que era o que ele fazia), por um homem, que fala. Também brincou de faz de conta, pela primeira vez armando uma cena mais longa e com diversos elementos.

Pedro começa a tomar a iniciativa de falar de suas coisas: ao falar do machucado do bicho, fala de uma “pancada”, que o pai toma como um discurso e mostra que realmente ele chegou machucado da creche. Pedro contou que um menino o empurrou,  e o pai diz ser o primeiro lugar em que ele falou sobre isso. Também começa a se fazer ver: bate na porta antes de entrar, chuta a parede, abre a porta e espia. Começa a brincar de olhar pelo olho mágico. Em seguida, olha e tampa o buraco, impedindo-me de olhá-lo, e isso se repete por muitas sessões. Posteriormente, vai sozinho ao banheiro e fecha a porta. Pode-se pensar em um brincar de esconder-se, de já poder se furtar ao olhar do outro sem deixar de existir. Busca de uma privacidade, delimitação de um espaço íntimo. Também começa a brincar de esburacar esse corpo (enfiar papel nos buracos, ver água ir embora pelo ralo da pia, do tanque, da descarga). As coisas começam a ter uma descontinuidade.

Nos atendimentos, ao brincar, Pedro fala o tempo todo do impasse no qual se encontra. Os animais que mordem e dão medo, mas que também podem ser jogados, pisados e postos de castigo; a sujeira com a tinta lavada em seguida, os cachorros que brincam com água, mas apanham por causa da bagunça, os machucados do animal e que falam de um corte. Ao ir contando sua história, as perdas vividas, o lugar no qual veio ao mundo, a posição que tomou diante dele, vai vivenciando essa dificuldade de cair desse lugar para poder asceder a em lugar de sujeito.

É como objeto a do desejo, como isto que ele foi para o Outro em sua ereção de
vivente, como o wanted ou I’unwanted de sua vinda ao mundo que o sujeito é
chamado a renascer para saber se ele quer o que deseja. (LACAN, apud
SAURET, 1997)

Autora: Mônica Fujimura Leite
Mestre em Educação Escolar pela UEL
Especialista em Transtornos Globais do Desenvolvimento na Infância e Adolescência pelo Centro Lydia Coriat e UNIFEV
Especialista em Psicanálise pelo IMBRAPE e UNIDERP
Psicóloga pela UEL
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina
Atualmente atua no CREAS de Ibiporã e atende em clínica particular em Londrina.

 

Referência Bibliográfica

Benhaim, M. & Jano, I.B. (Trad.) A Intimidade Materna: A contribuição da psicanálise na pesquisa sobre os bebês. In: Estilos da Clínica, v.11 n.20. São Paulo, jun.2006.

Freud, S. Além do Princípio do Prazer (1920). In: FREUD, S. Obras Completas. vol.XVIII, Imago, 1976, cap. 3 e 4.

Sauret, M.J. Sminário Internacional – Textos Selecionados. Sessão Paraná, Escola Brasileira de Psicanálise. Curitiba, Set. 1997.

Tkach, Reflexões sobre nossa prática terapêutica. In: JERUSALINSKY, A. e Cols. Psicanálise e Desenvolvimento Infantil: um enfoque interdisciplinar.____:Artes Médicas, ____.

Whitaker, C. O Sintoma da Criança como Efeito do Gozo Materno: entrevistas preliminares. In: Estilos da Clínica, v.8, n.15. São Paulo, jun.2003.

Zornig, S.A. Da Criança Sintoma (dos pais) ao Sintoma da Criança. In: Revista do Departamento de Psicologia da PUC – SP. São Paulo, 2006.

0 respostas

Deixe uma resposta

Want to join the discussion?
Feel free to contribute!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *