É lendo que se escreve

Ao receber o convite para a XXX Jornada de Psicanálise do Espaço Moebius e
ler seu título/tema recortei as primeiras letras de cada conceito (S,o,l), fiz o meu ternário,
e escrevi Sol. Na sequência, ainda com o três, escrevi Sal, uma vez que esse objeto se
escreve abjeto, com a. Depois, uma série se escreveu: Sol, Sal… Salvador! Olha aí o
litoral da letra, fazendo furo na captura significante. Ao ler, não pude deixar de escrever,
contingente que traça um contorno possível sem cair no desfiladeiro do necessário e sem
deixar de contemplar o impossível marcado pelo redobramento do não3. Esse é para mim
o processo na experiência da escrita, percurso moebiano e em duas voltas, partindo da e
terminando na leitura. E no caso de um texto como esse, um texto de transmissão, a escrita
é também da ordem da escritura por formalizar ou, ainda, legitimar uma experiência que
passa em ato sempre a partir da intensão.
Não sei localizar a fonte, perdão ao autor, mas alguém já disse que um texto só
termina quando é lido por outrem (lido “outramente”). E ao acordar com essa afirmativa,
concluo que um texto é sempre plural ao ser lido e, portanto, finalizado diversas vezes,
inclusive pelo mesmo leitor. Reler um livro ou um artigo de forma diferente da(s)
anterior(es) é uma experiência fascinante que não é novidade para ninguém. E se o texto
original não foi modificado por aquele que o imprimiu no papel, quem escreveu tais
diferenças? Temos aí a função leitor entrelaçada à função autor, ler e escrever não são
tarefas estanques e independentes, ao contrário, participam da mesma estrutura. As
seguintes palavras de Foucault (1969) numa conferência intitulada “O que é um Autor?”,
que contava com Lacan na plateia, são extremamente precisas a esse respeito:
Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever;
não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura
de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer…. a marca do

Seguindo essa trilha, mas naquilo que concerne ao campo psicanalítico, à nossa
práxis em suas vertentes de intensão e de extensão, podemos brincar um pouco com a
topologia e pensar intensão e extensão operando na estrutura unilateral e de uma só borda
da banda de moebius. Vamos da intensão à extensão num continuum e assim também são
as funções de leitura e escrita, inclusive no que concerne às referidas vertentes. Leitura e
escrita na intensão, leitura e escrita na extensão, leitura e escrita no continuum da intensão
à extensão produzindo uma escritura.
Escrever Sol ou Sal é uma maneira seriamente divertida4 de ler e escrever a
articulação entre os conceitos enunciados em série para o trabalho de hoje. Sujeito,
(a)objeto, letra e, nessa proposta, é ao pé letra que traço, que escrevo a dita articulação
com o meu ternário. Também foi com um ternário, com três letras (R,S,I) que Lacan
escreveu uma articulação dos mesmos conceitos. Na escritura da cadeia borromeana,
onde RSI se pode ler héresie, temos uma escritura com sua particular amarração e
produção de buracos. E nessa héresie (RSI) leio meu Sol ou Sal, pois ali se articulam
Sujeito, objeto e letra. Afinal, a letra faz contorno de forma litoral (faz borda) no buraco
central da cadeia (cadeia cujos efeitos de amarração podem ser lidos como a estrutura do
sujeito), buraco no qual se escreve o objeto a ou ainda, como leem alguns, onde se escreve
o próprio sujeito numa equivalência a esse (a)objeto. Escritura onde também se pode ler,
como propõe Lacan (2011) no Seminário 19, o enodamento de três verbos que orientam
o sentido da demanda: pedir, recusar, oferecer5. “Eu te peço que recuses o que ofereço,
porque não é isso” (Lacan, 2011, p.69).
Dessa forma, me divertindo seriamente, escrevo uma pequena leitura partindo
de outra(s). Aliás, e em mais de um sentido, são sempre muitas e muitas as leituras que
fazemos quando do estudo de um tema para um recorte de escrita, não é? Centenas de
páginas lidas que devem ser deixadas em suspenso (en souffrance) para que a escrita
opere como corte na produção de uma nova leitura de algumas poucas páginas de um
trabalho de transmissão como este. E, ainda, para que na volta da extensão essa leitura de
transmissão se escreva, a suspensão das leituras e mesmo de um saber já operaram como
corte através da função analista. Dessa maneira, se produz na intensão uma leitura do
analista para escrever a direção da cura em articulação ao trabalho do analisante de ler e
escrever as suas ficções, seu sintoma, seu fantasma em transferência até o ponto em que
faça as pazes com o incurável do troumatisme, o impossível sempre à espera de ser
escrito. Como, certa vez, ouvi de uma analisante: “para mim, a existência nunca vai deixar
de ser traumática”.
Trabalho conjunto, analista e analisante participam, assim, da mesma estrutura
do quadro clínico que se arma na transferência, como propõe Lacan (2018) no seminário
13 quando metaforiza a presença do analista como a presença de Velásquez no quadro
“As meninas”6. Nessa intrigante obra, temos a entrada no quadro do que deveria estar de
fora, invisível, exterior: a presença de Velásquez e a tela. Um exterior no interior, um
invisível no visível, tal como o efeito de arrebatamento que o quadro nos propicia como
espectadores, um fora-dentro-fora. O trabalho de perspectiva na obra produz um
descentramento através do estabelecimento de dois centros em duas linhas de estrutura
que cortam o quadro: um geométrico com o deslocamento do ponto de fuga para a porta
num canto da tela que daria para um outro espaço e um centro imaginário num espelho
que compõe a cena, como centro do quadro.
A própria introdução do pintor na cena também pode ser atrelada a um
descentramento, um abalo no centro do quadro, a inserção de um êxtimo. Além da
condição de êxtimo, Velázquez está no quadro em uma situação de pura presença, em
suspenso, en souffrance, em espera. Presença que funciona como tela em branco para
projeção. Ele olha alhures, para um ponto invisível que não se sabe qual é, participando
(a partir da condição de tela, fazendo quadro) da montagem pulsional escópica do olhar
como objeto a. Pura presença, êxtimo, descentramento, corte, fratura. Velásquez, como
o analista, é um elemento da estrutura do quadro que abala as certezas, o centro, corta e
inova. O analista participa da estrutura do texto, arrisco dizer numa transposição da leitura
de Lacan no Seminário 13, onde as funções autor e leitor se articulam tal qual a do pintor
e do expectador do quadro de Velásquez. Quem pinta e quem observa o quadro? Nos
interrogamos com Velásquez e Lacan. E pergunto, quem lê e escreve o texto em intensão
e em extensão?
Sabemos que a autoria do ato não é do analista, que “entre analista e analisante
só se intercambiam letras” e que “…o analista corta. O que ele diz é corte, quer dizer,
participa da escritura” (Lacan, 20/12/77, p. 12, livre tradução)7. Letras que circulam, são
intercambiadas entre analista e analisante… como isso se dá? E o que essa troca produz?
Cortar é participar da escritura, cortar é ler para escrever, no sentido de dar suporte,
propiciar que se escreva. Que se leia e que se escreva em intensão e que se leia e que se
escreva no après coup da extensão. Nesta altura da produção do texto, alguns fragmentos
da clínica do tempo em que trabalhava em um hospital escola (há mais de 20 anos)
insistiam. Segui o fluxo das lembranças e traço aqui a construção de dois fragmentos
clínicos.
O primeiro é de uma mulher por volta dos 40 anos. Tinha dores corporais
inexplicáveis, ataques de ansiedade, irritabilidade, agressividade e ideias paranoides.
Recorto a seguinte frase proferida por ela a respeito de seus pensamentos persecutórios:
“Acho que estou ficando painel, doutora”. Com expressão interrogativa, pedi que me
explicasse o que era ficar painel. Ela me olhou com a estranheza de quem pensa: “Como
é possível a doutora de cabeça não saber o que é ficar painel!?” Cansada, mas habituada
com o fato de que eu nunca entendia nada mesmo, suspirou e disse: “Ficando painel,
doutora, por causa daquele médico, o Painel, que trabalhava com gente maluca…” Ela
escrevia Pinel, mas lia Painel amparada pelo conhecimento de que a letra i em inglês se
lê ai (imagino que pensava que ele era americano). Painel era sua tradução, sua leitura de
Pinel. Como lemos à letra e não a letra de forma literal (Vegh, 2006) tive a felicidade de
não corrigi-la, segui sua forma de ler o i e aí foi eu quem suspirou dizendo: “Ah, o Pai/nel,
ficando painel, ai, ai…” As associações seguiram seu curso a respeito das dores corporais
enlaçadas a outras dores, as relativas ao pai.
O segundo fragmento é, acredito, muito ilustrativo de como uma leitura
enviesada, deslocada da função do analista, uma leitura infeliz, impede uma escrita de
algo novo para o sujeito. Tratava-se de uma jovem diagnosticada como esquizofrênica,
sendo que o primeiro surto teria ocorrido após uma experiência sexual na adolescência,
7Dire est autre chose que parler. L’analysant parle. Ιl fait de la poésie. Ιl fait de la poésie quand il y arrive…
c’est peu fréquent – mais il est « art ». Je coupe parce que je veux pas dire « il est tard ». L’analyste, lui,
tranche. Ce qu’il dit est coupure, c’est-à-dire participe de l’écriture…
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segundo relatos da família. Medicada até a raiz dos cabelos, se apresentava catatônica,
olhar distante, falava pouquíssimo e de forma superficial e fragmentada. Geralmente
relatava algum acontecimento familiar, repetia que precisava retomar os estudos ou que
pretendia trabalhar. Um dia me olhou firmemente nos olhos, o que nunca acontecia, e
disse que estava muito preocupada com sua “dentidade”. Na minha ignorância da época,
que não era nada douta, afundada nos equívocos psicopatológicos, fiquei feliz e surpresa,
afinal não esperava tamanha “profundidade”. Como poderia estar ocupada de questões
identitárias ou do campo da identificação se além da apatia e da fala cortada, “gente dessa
categoria” (os psicóticos) leva tudo, literalmente, ao pé da letra?
Quando perguntei “Como é que é isso, preocupada com a (i)dentidade?”, ela
respondeu “É que procurei em tudo que é lugar, e não encontrei”. Respondi: “Ah, você
não sabe onde está o seu documento!” E, dessa vez, infelizmente, achei mesmo que tinha
entendido: claro, ela falava literalmente do documento de identidade, não podia ser uma
alusão à identidade a partir do documento se era psicótica! Ai, ai, pobre de mim… Eu é
quem estava aprisionada ao literal e não pude acompanhá-la no literário do pé da letra
que o enunciado trazia. Ela falava mesmo de uma preocupação com sua “dentidade” e
deixando cair o i do idem, do estado de igual ou mesmo da imagem, talvez tentasse se
descolar das insígnias da loucura que todos nós lhe imputávamos como estável, como
mesmidade. Seria possível ler uma preocupação em não se deixar capturar completamente
pelo idem, mas o aprisionamento ao literal da psicopatologia não me permitiu alcançá-la
em seu literário.
Vocês poderiam objetar: “Escute, você está viajando, forçando a barra… Eram
“pessoas simples”, sem estudo. Não seriam apenas “erros” em relação ao que é
considerado formalmente correto ou culto em nossa língua portuguesa? Ou melhor, não
seria só a língua se manifestando em sua forma coloquial? Portanto, não seria uma questão
do campo da linguística?” Bem, eu responderia, primeiro que ser gente já é sinônimo de
complicado, então, não entendo bem o que seriam “pessoas simples”. A falta de estudo
ou de erudição tornaria o humano simples? Se fosse assim tão fácil, era só pararmos de
estudar! Segundo: para um leitor externo ao quadro clínico, externo à cena analítica, não
deixa de ser a língua em sua forma coloquial ou algo do campo da linguística. Linguística
como a ciência que tem a linguagem como objeto e suas variações naquilo que se
denomina língua. E nós, analistas, bebemos dessa fonte desde Freud, mesmo antes da
formalização da linguística como ciência, mas somos leitores fazendo parte da estrutura
do quadro, da escritura do texto, e nos ocupamos não das variações ou desvios da língua,
não das regras gramaticais ou ortográficas, mas do que esses desvios e desvarios escrevem
como letra em lalangue (“ele escreve de maneira diferente daquela da graça da
ortografia…”). Por último, mas não menos importante, nosso objeto não é o indivíduo, o
homem. Nosso (a)objeto é o sujeito e esse não tem idade, sexo, cor, nacionalidade ou
grau de instrução. É ele que se escreve, sempre de forma evanescente, no corte da prática
de leitura em transferência, com os efeitos de verdade que a letra pode produzir como
furo no saber. Dez anos lendo o discurso sem palavras de muita “gente simples” me
ensinou, entre outras coisas, um pouco sobre o sujeito, o objeto e a letra, compondo a
escrita, tantos anos depois, deste texto.
Nas voltas moebianas da leitura e da escrita, da intensão e da extensão, onde o
tempo e o espaço operam de maneira particular, vamos tecendo nossa práxis, ponto a
ponto, letra a letra, sempre dispostos a puxar o fio das letras, desfazendo e refazendo o
tecido. À la Penélope, diríamos, mas não pelo mesmo motivo, pois não estamos à espera
de nada, nem de ninguém. É o que tentei transmitir para vocês nesse pequeno exercício
de leitura e escrita.

 

Referências
1.Foucault, M. (1969). O que é um autor?, Bulletin de la Societé Française de
Philosophic, 63º ano, no 3, julho-setembro de 1969, ps. 73-104.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/179076/mod_resource/content/1/Foucault%20
Michel%20-%20O%20que%20%C3%A9%20um%20autor.pdf
2.Lacan, J. (2011). …Ou pior. Seminário XIX (1971-1972). Salvador: Espaço Moebius
Psicanálise.
3.Lacan, J. (2018). O objeto da psicanálise. Seminário 13 (1965-66). São Paulo: Fórum
do Campo Lacaniano de São Paulo.
4.Lacan, J. Le moment de conclure (1977-78). http://staferla.free.fr/S25/S25.pdf
5.Vegh, I. (2006). Las letras del análisis. Buenos Aires: Paidós.
8 Ιl écrit différemment de façon à ce que de par la grâce de l’orthographe, d’une façon différente d’écrire,
il sonne autre chose que ce qui est dit, que ce qui est dit avec l’intention de dire, c’est-à-dire consciemment,
pour autant que la conscience aille bien loin. C’est pour ça que je dis que, ni dans ce que dit l’analysant, ni
dans ce que dit l’analyste, il y a autre chose qu’écriture. (Lacan, 1977, p.12)

NOTAS

1 Texto originariamente apresentado na XXX Jornada de Psicanálise do Espaço Moebius: “O Sujeito, o
objeto e a letra na psicanálise”, novembro de 2021 e publicado em
https://www.espacomoebius.com.br/_files/ugd/3a2ce3_a723ccb0d2c24948b6dd62972e136ddd.pdf
2 Psicanalista, membro fundadora da Associação Livre-psicanálise em Londrina, doutora em psicologia
pela Universidade Federal de Santa Catariana. Contato: zeilatorezan@gmail.com
3 O impossível é “o que não cessa de não se escrever”; O necessário é “o que não cessa de se escrever”; O
contingente é “o que cessa de não se escrever”; O possível é “o que cessa de se escrever”.

2 escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça
o papel do morto no jogo da escrita….Por outro lado, esse retorno se dirige ao
que está presente no texto, mais precisamente, retorna-se ao próprio texto, ao
texto em sua nudez e, ao mesmo tempo, no entanto, retorna-se ao que está
marcado pelo vazio, pela ausência, pela lacuna no texto. (Foucault, 1969, p. 6)

4 “Como disse em outro lugar muito seriamente, eu me divirto.” (Lacan, 2011, p.60)
5 “Mas demanda, recusa e oferta, é claro que nesse nó que avancei hoje diante de vocês, não tomam seu
sentido senão um do outro, porém o que resulta desse nó, tal como tentei desnodá-lo para vocês, ou
melhor, dar a prova de seu desnodamento, dizer-lhes, mostrar-lhes que isso não se sustenta jamais
somente a dois, que está aí o fundamento, a raiz do que diz respeito ao objeto pequeno a.” (Lacan, 2011,
p. 71)

6 São 5 lições que se encontram quase no final do seminário 13, de 11/5 a 8/6 de 1966, onde ele faz uma
detalhada análise do quadro “As meninas”, de Velásquez.