Do desamparo à liberdade

Como a maioria das crianças, nossos textos costumam ser nomeados pré-nascimento, ganham título para a organização e divulgação do evento antes de serem escritos. Ao menos antes de serem digitados e revisados, pois, também como as crianças, acredito que eles já tenham algum tipo de existência anterior à sua redação concreta.

Este bebê foi nomeado poucos dias antes de iniciarem minhas férias, perto do Natal do ano passado. Lugar comum e polido falar que 2020 não foi um ano fácil. Prefiro dizer que foi infernal, mesmo fazendo a mea culpa e meia por ser branca, rica, saudável e ter todos os demais privilégios possíveis e imagináveis desta reles e frágil existência. E foi assim, privilegiadamente exausta e bebendo um drinque no inferno, que o bebê, da Rosemary que aqui vos fala, foi batizado. Atravessada pelo pandemônio e provocada a escrever tendo a angústia como tema-eixo, apareceram as duas palavras (bem óbvias para o momento) do título e proponho trabalhá-las unidas pela crase, indicando um percurso de uma à outra. Já adianto que não se trata de um caminho reto e linear, mas cheio de voltas, passando repetitivamente pelos mesmos pontos e, ainda, concluindo, no a posteriori, que o ponto de chegada comunga com o de partida.

E também não é assim uma análise? Um caminho tortuoso, repleto de volteios, no qual podemos considerar desamparo e liberdade como, respectivamente, os marcos de seu início e de seu fim, sendo que o fim se constata atrelado ao começo, em vários sentidos? Essa definição não deixa de comportar alguma verdade, desde que problematizemos os termos e consideremos a angústia como elemento fundamental ao processo.

Para iniciarmos a caminhada de hoje, tomo duas citações de Lacan (2005) do Seminário 10. A primeira está numa passagem onde enfatiza que a angústia é sem causa, mas não sem objeto, e faz uma articulação à Coisa como o objeto em causa na angústia.

 

É essa distinção que introduzo e na qual baseio meus esforços para situar a angústia. Não só ela não é sem objeto, como também muito provavelmente, designa o objeto, digamos, mais profundo, o objeto derradeiro, a Coisa. É nesse sentido, como lhes ensinei a dizer, que a angústia é aquilo que não engana. (p.338-39)

 

A segunda citação é de um tempo de concluir, bem no final do mesmo Seminário 10, onde Lacan (2005) reitera e sublinha a condição originária e estrutural da angústia e desdobra as implicações deste status para o lugar do analista na direção da cura.

 

Mas hoje não quero sair do primeiro nível, o chamado nível oral, sem apontar com clareza que angústia já aparece nele, antes de qualquer articulação com a demanda do Outro. Singularmente, essa manifestação da angústia coincide com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser sujeito. Essa manifestação é o grito.

Ora, o grito, faz muito tempo que já acentuei sua função como uma relação não original, porém terminal, com o que devemos considerar como sendo o próprio âmago do Outro, na medida em que este arremata-se para nós, num dado momento, como a forma do nosso próximo. Peço-lhes que se detenham por um instante no paradoxo que conjuga aí o ponto de partida do primeiro efeito de cessão, que é o da angústia, com o que será, no final, algo como seu ponto de chegada. A diferença é que, com esse grito que lhe escapa, o lactente não pode fazer nada. Ele cede alguma coisa, e nada mais o liga a isso. (p.354)

Sigamos a letra e, a partir da primeira citação, relembremos rapidamente a Coisa para avançar nas articulações com o segundo extrato e com o recorte aqui proposto em termos de desamparo e liberdade. Nunca esqueçam, Lacan era freudiano e isso significa que lia Freud, produzia sua leitura de Freud. Tentemos seguir seu conselho e fazer como ele, sem imitá-lo.

A apresentação de das Ding é feita por Freud no Projeto de psicologia (Freud, 2007 [1950 (1895)]) através da formulação de um primeiro complexo perceptivo organizado em duas partes, sendo a primeira caracterizada pela estabilidade e imutabilidade e a segunda, marcada pela instabilidade e flexibilidade. Neste modelo perceptivo, a Coisa é localizada em sua parte inalterável e está atrelada aos primórdios da organização psíquica. Um centro, ou melhor, um furo, em torno do qual gravitam as representações de coisa, o que significa dizer que, para Freud, das Ding não pertence ao campo das representações, mas, paradoxalmente, está presente no psiquismo ainda que por sua ausência, como evidenciam as palavras de Lacan (1997) reproduzidas a seguir:

Das Ding é o que – no ponto inicial, logicamente e, da mesma feita, cronologicamente, da organização do mundo no psiquismo – se apresenta, e se isola, como o termo de estranho em torno do qual gira todo o movimento da Vorstellung, que Freud nos mostra governado por um princípio regulador, do dito princípio do prazer, vinculado ao funcionamento do aparelho neurônico, é em torno desse das Ding que roda todo esse processo adaptativo, tão particular no homem visto que o processo simbólico mostra-se aí inextricavelmente tramado (Lacan, 1997 [1959-60], p.76).

Articulando: a Coisa está na origem lógica e cronológica e é o objeto (em sua particular condição de furo) em causa na angústia, a qual coincide com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser sujeito e, por isso, é o afeto que não engana. Assim, temos a associação da angústia com o nascimento, mas não com a ideia de um trauma de separação, mas com a vinda ao mundo, com a passagem de um meio ao outro e com o grito como efeito dessa passagem e da necessidade de respirar.  É o que lemos também um pouco mais à frente:                                                                                

A angústia foi escolhida por Freud como sinal de algo. Será que não devemos reconhecer o traço essencial desse algo na intromissão radical de uma coisa tão Outra no ser vivo humano, já constituída para ele pelo fato de passar para a atmosfera, que, ao emergir neste mundo em que tem respirar, ele fica, a princípio, literalmente asfixiado, sufocado? Foi assim que se deu o nome de trauma – não existe outro –, o trauma do nascimento, que não é a separação da mãe, mas a própria aspiração de um meio intrinsecamente Outro. (Lacan, 2005, p. 355)

Agora não fica difícil associarmos o desamparo ao desenvolvido até aqui. Afinal, ele também está na origem de nossa ex-istência, lógica e cronológica. Desamparo radical atrelado ao complexo de semelhante, proposto por Freud, onde o outro como semelhante deverá fazer, estruturalmente, as vezes de um Outro auxiliador e implicado nas vivências e representações de dor e de satisfação atreladas ao princípio regulador. Desamparo radical também associado à aspiração de um meio intrinsicamente Outro, à intromissão de uma coisa tão Outra constituída no fato de passar para atmosfera e ter que respirar, onde se fica, a princípio, asfixiado, sufocado. A angústia, portanto, é de uma ordem originária associada à intrusão do Outro e também é sinal desse perigo originário. Então, a angústia como sinal, como afeto que não engana o eu e adverte o sujeito, é referida ao desamparo original; é a um perigo dessa ordem radical e originária que se refere a angústia.

Muito bem, desamparo associado ao ponto de partida. Ponto de partida de nossa ex-istência, ponto de partida da angústia e, acrescento, ponto de partida de uma análise. Não é assim que uma análise se inicia: com o desamparo de um saber que é creditado ao analista e com a angústia por tal desamparo? Com a ameaça de um perigo originário, de alguma forma atualizado, de desamparo e intrusão que a angústia sinaliza? E também com a angústia pelo fato de, na verdade, nada querer saber sobre o dito saber insabido, a busca é apenas pelo amparo de um saber alheio supostamente existente e que libertará da angústia. Eis aí a liberdade, vamos a ela, ao dito ponto de chegada.

Comecei com citações de Lacan (2005) e continuo a caminhada rumo à chegada, emprestando as palavras de mais duas pessoas. Uma delas, bem conhecida de vocês, é Charles Melman (2020). Palavras proferidas em uma apresentação on-line no ano passado, dialogando com Alfredo Jerusalinsky sobre uma leitura a respeito da contemporaneidade, em especial sobre a crise moral e intelectual que estamos vivendo.

Considerando as criaturas que somos, será que podemos suportar a liberdade? Teríamos, historicamente, alguma organização social onde se haja celebrado o culto da liberdade? Precisemos a que nos referimos como liberdade. Podemos dizer que a liberdade consiste em reconhecer a lei que vem da linguagem e, a partir daí, respeitá-la. Não é a que vem de um pai, de uma autoridade política, ou do objeto mas a que vem daquilo que a linguagem estabelece como lei. Isso existe? Ou é só um fantasma? …Freud e Lacan nos ajudam a fazer essas perguntas e também a respondê-las. E essas respostas modificam a relação que temos com o nome do pai, para que não sejamos nem dependentes do narcisismo, nem adictos do objeto. Então, isso talvez não seja impossível… Se nós, analistas, temos algum dever é o de contribuir para o melhor conhecimento dessa alienação que nos faz sofrer a linguagem, para dizer que dessa alienação podemos deixar de ser vítimas.

Ao contrário de um nome bem conhecido de vocês, a outra pessoa da qual empresto umas palavras lhes é anônima, trata-se de uma analisante que, falando da angústia que ela associava à palavra desamparo, definiu liberdade mais ou menos assim: “liberdade é ficar livre da dúvida, quero me libertar da dúvida, essa é a liberdade que tanto procuro, para deixar de me vitimizar.”  Voilà! Nesse mundo globalizado, será que minha analisante anda fazendo sessões on-line com Melman?

Entretanto, ainda que ela fale de uma liberdade da vitimização, como Melman, quando almeja libertar-se da dúvida temos uma ambição complicada e talvez avessa à proposição do psicanalista… Afinal, além da dúvida estar no cerne da concepção de sujeito, ela não é a causa da angústia, como parece enunciar essa moça. A angústia é um afeto que não engana, está fundado na certeza, está de fora da dúvida. A certeza é o que paira na angústia. Então, não é possível acompanharmos a definição de liberdade através da ideia de ausência da dúvida e da consequente diminuição da angústia. Isso posto, podemos mesmo identificar um conflito entre as duas posições. Afinal, Melman associa a liberdade à alienação que sofremos com a linguagem e, por sua vez, ao almejar se libertar da dúvida para amenizar a angústia, essa jovem tributa ao conceito de liberdade um escape ou uma anulação da referida alienação.  A princípio parece mesmo um embate, mas vamos com calma, com a calma que devemos ter em nosso trabalho diariamente.

Melman (2020) propõe que a liberdade é a possibilidade de reconhecermos a lei que advém da linguagem, mais que isso, é estarmos atravessados por seus efeitos, operarmos respeitosamente a partir de seu reconhecimento. E isso tem como resultado a liberdade de uma condição de vítima, uma alienação reconhecida sem vitimização e com liberdade. Liberdade da dependência do narcisismo e/ou da adicção ao objeto. Observem: reconhecer a lei que advém da linguagem equivale a reconhecer ou acolher a falta radical que está na origem do parlêtre. Sim, aquela falta radical que se associa ao desamparo radical na origem, à Coisa como furo, objeto mais profundo e em causa na angústia. Temos aí o fim comungando com o começo, desamparo e liberdade atrelados desde o início, mas só na chegada saberemos disso. E aqui a chegada pode ser pensada como o final de análise.

Com tal perspectiva, retomemos a definição de liberdade dessa jovem: “liberdade é ficar livre da dúvida”. Sabemos que a angústia não engana, mas o sintoma sim, esse é enganoso e, portanto, potencializador da dúvida. Também sabemos que se trata de alcançar alguma liberdade ou desembaraço do sintoma com a análise. Desembaraço que advém, precisamente, de uma melhor acolhida, de fazermos as pazes com a nossa condição de parlêtre, com a falta radical na origem, ou, como disse Melman, de um melhor reconhecimento da alienação que sofremos da linguagem para deixarmos de nos dizer vítimas dela. Então, a esperada liberdade da dúvida advinda do sintoma é viável e terá como efeito a desvitimização. Mas e a angústia, vai diminuir como espera a analisante? Sim, a angústia vivida por ela, o afeto no campo da experiência, a angústia como sinal ao eu e advertência ao sujeito deve diminuir, exatamente pelo efeito do reconhecimento da alienação na linguagem, pela acolhida da falta radical na origem. Se deixamos de ser vítimas, de sermos dependentes do narcisismo a ameaça, o perigo, a força à qual estaríamos submetidos, perde sua potência.

Lembrem, a angústia como sinal, como afeto que não engana o eu e adverte o sujeito, é referida ao desamparo original, coincidindo com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser sujeito e, por isso, é o afeto que não engana. É a um perigo dessa ordem radical, intrusiva e originária que se refere a angústia que tem a Coisa como o objeto (em sua particular condição de furo) em causa. Pois bem, a proposta é que na chegada, longe de elidirmos o ponto de partida, possamos reconhecê-lo como condição libertadora que nos permita respirar um pouco mais aliviados, todo dia, todo dia, todo dia. Paradoxal? Claro, como tudo o que esteia a psicanálise.

Grata por caminharem comigo, mais uma vez.

 

VIII Jornada ALPL – A Angústia

17 e 24 de abril de 2021

 

Referências bibliográficas

 

FREUD, S. Proyecto de psicología [1950 (1895)]. In: Obras completas. Vol I. Buenos Aires: Amorrortu, 2007

 

LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-60]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 396p.

 

LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. 366p.

 

MELMAN, C. https://www.youtube.com/watch?v=xrAyPqBRxVM.