De Héracles a Hércules: da Inscrição do Nome Herdado à Construção de um Nome Próprio

O herói Hércules, famoso por sua força e coragem sobre-humanas, foi assim chamado pelos romanos, originalmente na mitologia grega, chamava-se Héracles. Seu nome grego significa “glória de Hera”, e a escolha dele está diretamente ligada à origem deste semi-deus. Héracles era filho do deus Zeus com uma mortal, Alcmena. Quando o marido de Alcmena estava na guerra, Zeus se transformou nele para seduzi-la e desta união nasceu Héracles. O nome dado ao bebê foi uma escolha de Zeus, na tentativa de apaziguar o ódio de Hera, a esposa dele, porém sem sucesso. Zeus tentou tornar Héracles imortal, porém só conseguiu que ele adquirisse a força dos deuses, permanecendo mortal. O ódio de Hera pelo marido foi transferido para o filho dele eHéracles passou a ser perseguido por Hera, sendo alvo de diversos planos da parte dela para matá-lo. Seus famosos 12 trabalhos são decorrentes de um destes planos. Héracles libertou- se do jugo materno, ganhando o direito, a partir da intervenção paterna, de habitar entre os deuses do Olimpo. O significado do nome romano, pelo qual o herói é conhecido, diverge do original grego. Hércules significa “aquele que dispensa calor e claridade”. Não consegui encontrar o porquê desta mudança de significado mas podemos pensar que o corte romano com relação à herança cultural grega, faz também um corte da herança de uma mulher – esposa e mãe – para este homem, permitindo-lhe encontrar seu lugar entre aqueles cujos o pai havia lhe indicado previamente.

O percurso heróico deste semi-deus é o mesmo a ser percorrido por todos os mortais, no processo de constituição de um sujeito desejante. Necessário é a todo humano ser nomeado por um Desejo materno, e que posteriormente ele negue este nome, dando-lhe uma versão própria, a partir do crivo de leitura que o pai lhe oferece. Este processo se dá dentro da linguagem, sendo que a posição de um sujeito nela marca sua posição diante da vida. Dentro disso, o que dizer quando um ser que não faz uso da linguagem? Escolhe ou encontra-se impossibilitado de falar, escrever, articular gestos dentro de um contexto discursivo?

A lógica medicalizante que impera na atualidade enquadraria-o em uma nosografia e lhe proporia técnicas para instrumentalizá-lo, reparar déficits e readequar suas condutas. Separa o sujeito de seu sofrer, deixando de fora a relação que ele estabelece com o próprio sintoma (ESPERANZA, 2011). As explicações medicalizantes reduzem-no a um fator biológico e o tratamento tem como base a administração de psicofármacos (ROCHA e FERRAZZA, 2011; Untoiglich, 2006). Em tratando-se de crianças, este tipo de leitura acarreta resultados hiatrogênicos, em decorrência da especificidade do tempo da infância.

A Psicanálise trata estas questões sob outro viés, a partir da concepção de que o humano é “deficiente” por estrutura. Lacan afirma que “o Outro da linguagem possui um buraco fundamental que lhe é constitutivo” (22- R.S.I. – 1975 apud SNIKER & ANDRADE, 2010). No entorno deste buraco organiza-se uma estrutura, que constitui o sujeito do inconsciente. Este está submetido à lógica do significante, ou seja, ele é atravessado pela linguagem. Dentro desta concepção, Lacan (20 – mais ainda – 1985 apud SNIKER & ANDRADE, 2010) afirma que o analista intervém na estrutura. A estrutura preexiste ao sujeito, mas ela tem um tempo de instalação em determinado ser, no qual certas inscrições são realizadas dentro de momentos lógicos. E no caso de bebês ou crianças  nas quais tais inscrições ainda estão se realizando? Como o analista intervém, em um tratamento pela palavra, com alguém que ainda não está plenamente instalado nela?

Tal é o caso de uma criança que chegou aos três anos de idade: não fala, não se comunica, não responde, não se reconhece, não brinca, não tem imagem de corpo; suas reações diante da intromissão do outro eram jogar-se no chão, debater-se e gritar. Depois de um ano de trabalho ela caminhou muito com relação a esses nãos. Hoje ela está na linguagem, compreende o que lhe falamos, fala algumas palavras, escolhe objetos específicos e manifesta-se frente ao discurso parental, sente afetação em seu corpo, busca contato e demonstra prazer na troca com o outro. Tem começado a armar cenas do brincar, onde posiciona as pessoas e estabelece o roteiro que devem seguir. Solicita a mãe de uma forma imperativa, chora quando ela sai, circula em torno dela, com uma expressão que parece perguntar o que tanto ela olha no computador, ou fala no celular, e em alguns momentos chama-a em tom de súplica: “mã!”. Por outro lado, hoje esta criança se posiciona de forma a ela dizer não, diante da demanda do Outro. Responde, com veemência, na negativa, aos pedidos de seu Outro de que abandone as fraldas, as mamadeiras, de que se sente na sala de aula e aprenda os conteúdos pedagógicos, que coma de talheres e pare de pular e arrancar os pedaços das coisas, e que comemore seus aniversários. Quando encontra a mãe, solicita-lhe que toque em seu corpo em movimentos ritmados, sendo capaz de ficar muito tempo nesta atividade. O que é isso que ela faz? Que posicionamento é esse que ainda obstaculariza sua relação com o outro/Outro?

O que a faz vacilar diante de expectativas que parecem ser colocadas para ela, de modo que ela vai até um ponto, para em seguida reagir com agressividade afastando-se do que é esperado dela? Ainda estamos investigando, e por ora, nos deparamos com a escolha de seu nome, o qual mimetiza com o nome de todos dentro da família. Isso assomado a uma posição bastante narcísica desta mulher, faz-nos pensar o quanto ele pode estar situado como uma extensão dela própria. Este lugar combina com a falta de recalque encontrada nesta criança, que avança e retoma o que já havia ultrapassado, misturando presente, passado e futuro.

Movimento de separação necessário, mas dificultoso, em especial porque se repetiu conosco a posição decidida desta criança. Necessário foi cavar entrada de forma a não mostrarmo-nos por demais invasivos de modo que ela não precisasse defender-se da mesma forma. Foi então, a partir da inscrição materna, que iniciamos nosso trabalho. Na clínica da fronteira das palavras, há que se estender o fio do simbólico, por mínimo que ele seja, a partir de onde encontremos uma ponta para puxar. Esta do toque no corpo pareceu-nos a única que ficou de uma experiência prazerosa onde o Outro compareceu na missão de inscrever a palavra no corpo deste infans. Transformamos uma atividade repetitiva em um brincar ritmado, com pausas, alternâncias, ou seja, atrelados ao ritmo que a linguagem impõe. A palavra, trazidas por nós, enquanto representantes do Outro, era carregada de afeto e comparecia no momento em que afetava o corpo desta criança.

E é por aí que acredito que esta criança tenha entrado na palavra. A linguagem é uma estrutura que antecede o sujeito, dentro da qual todos nascemos. É necessário porém, uma virada por parte dele. Para que uma criança possa vir a habitar a linguagem, após ter sido habitada por ela, é necessário que algumas inscrições sejam realizadas. Jerusalinky (2011) diz que é a mãe (enquanto Outro) que introduz o bebê na linguagem, ao situar as fonações dele enquanto um chamado. Ao questionar o que ele quer quando escuta seu grito, questionando assim o enigma do desejo que supõe estar no bebê. É na  tentativa de responder a essa suposição que o bebê faz laço com o Outro. O bebê é capturado na prosódia materna, sendo tomado no funcionamento da linguagem muito antes de aprender a fazer uso dela. É engajado no circuito pulsional materno que se produz inscrição no bebê, a partir da afetação que ela lhe provoca em seu corpo. Jerusalinsky (2011) diz que a linguagem não se inscreve por si, para que o bebê seja convocado a se atrelar ao Outro, é necessário um endereçamento do representante deste Outro, o que Lacan (1969 – Duas notas sobre a criança) chamou de um desejo não anônimo.

No caso desta criança em específico, parece-nos que a falta de afetação por parte desta mãe com relação a este filho o fez não vivenciar esta experiência de ver a satisfação pulsional desta mãe implicado na relação com ele. Assim, fez parte do trabalho com esta criança escutar esta mãe, a fim de modificar algo nesta economia psíquica, e ao mesmo tempo, posicionarmo-nos no lugar de um Outro ortopédico, de modo a exercer esta função para esta criança.

Em crianças onde essa inscrição falhou é necessário retornar a este momento do engatamento da palavra ao corpo. Ali onde a palavra não comparece em sua função de comunicação e enunciação de um sujeito, a convocatória é realizada por meio da voz, do olhar, do gesto, da modulação de entonação do analista, variações que afetem os sentidos do infans (Jerusalinsky, 2011, p. 77). De acordo com Freud (1895 – Projeto para uma Psicologia Científica), as inscrições psíquicas são produzidas a partir de experiências. Nascemos com uma carência instintual que nos faz depender de um outro, semelhante e experiente, que preste uma assistência alheia, por meio de uma ação específica, eliminando estímulos e ocasionando uma satisfação impossível de ser alcançada por conta própria. Isso gera uma experiência de satisfação. É este adulto experiente que atribui ao choro do bebê uma intenção de comunicação, a partir da afetação que as ações do bebê ocasionam neste adulto, engajando-se subjetivamente nos cuidados que realiza, colocando seu saber inconsciente a serviço de fazer funcionar no bebê um corpo subjetivado. Isso o retira do registro da necessidade, e ele passa a funcionar no registro pulsional. Os traços que ficam inscritos desta experiência nãoguardam correspondência com a experiência em si, mas ficam registradas na forma de traços. Estes sofrem transcrições e retranscrições entre as diferentes instâncias psíquicas (Freud, 1896 – Carta 52 a Flies). Os traços são sulcos na superfície psíquica, que formam vias de facilitação, caminhos mais permeáveis à catexia, que acarretam tendências à repetição. Podemos pensar no caso de nosso paciente, no pedido insistente de que ficássemos tocando em seu corpo com movimentos específicos enquanto um traço.

Por outro lado, Freud coloca que nem tudo o que se inscreve no aparelho psíquico pode ser evocado. O esquecimento é indissociável à condição de um sujeito desejante. Entre um sistema e outro nem todas as inscrições são transcritíveis, Em outras palavras, em indivíduos onde se operou o recalque a consciência nada pode saber acerca das inscrições primordiais que fundaram o que se estabeleceu como o inconsciente.

A partir desta concepção, concordamos com Jerusalinsky (2011), que nos diz que seria catastrófico nos colocarmos diante desta criança para ensiná-la a falar, fazendo uma correspondência unívoca entre significado e significante, metodologia que exclui o ponto de entrecruzamento entre o código da língua e o enigma do desejo do Outro que comparece na fala do adulto direcionada à criança. A problemática decorrente desta forma de intervir é que ela reforça exatamente o que falhou na relação do Outro  primordial com esta criança. Uma mãe cuja libido não se engata em seu bebê, não consegue supor nele um saber acerca de seu desejo. Isso acarreta uma dificuldade em se reconhecer em nele (VORCARO, 2013), uma vacilação no processo de filiação e consequentemente uma dificuldade de pôr a trabalho seu saber parental acerca de como educar esta criança. Frente a essa vacilação, em vez de promover a educação de seu filho a partir de um ideal projetado sobre ele, “efeito da produção de um lugar numa história para um sujeito, em virtude da transmissão de marcas simbólicas advindas do passado” (Lajonquière, 2002, p. 49), os pais ficam à espera da resposta que ela oferece, invertendo a lógica educativa.

De acordo com Vorcaro (2013), o discurso psiquiátrico oferece uma resposta diante dessa falta de (re)conhecimento parental, proporcionando padrões de conduta, o prognóstico daquela patologia. Esse tipo de interpretação e  intervenção empurram para a destituição da filiação da qual a criança é proveniente, ela perde os traços identificatórios de sua tradição familiar e passa a ser filiada pela nosografia. Os pais, destituídos de seu saber, a partir da vacilação de seu desejo parental, guiam-se pelo saber anônimo do especialista.

Isso posto, de que forma nós da Psicanálise trabalhamos com esta criança? Ainda segundo esta autora, da mesma forma em que um psicanalista, ao realizar a leitura das formações do inconsciente de um paciente que está instalado na palavra, sem dispor de uma interpretação a priori, cujo sentido será dado apenas após a articulação com outros significantes, com o engajamento do sujeito em tais formações, passando a produzir associações a partir delas. É do que o analista escuta (ou lê) ao pé da letra do que é falado, que é possível se construir sentidos, a partir da polissemia significante. Na clínica da fronteira das palavras a criança dá a ver, em suas manifestações corporais, gestuais e nas emissões de seus gritos, seu particular modo de engajamento no estabelecimento do laço com o Outro. Necessário é que isso que se dá a ver seja tomado como enigma por um Outro encarnado, inserindo-o numa rede associativa. Diferente do primeiro caso, isso que se dá a ver não é o retorno do inconsciente recalcado, é o próprio inconsciente em constituição.

Não pedimos para que a criança associe, mas lemos o discurso que se produz no entorno das produções dela. Isso porque, de acordo com Jerusalinsky (2011), se um bebê, ao nascer, não dispõe de um aparelho psíquico constituído, é o aparelho psíquico da mãe que opera inicialmente. É a mãe que interpreta o que se passa com o bebê, interrogando-se diante do enigma que ele traz com seus atos, propiciando-lhe satisfação na medida em que o engata em sua economia libidinal. Mais tarde, ele terá condições de formular respostas, que estenderão sua rede significante, a partir da marca inscrita em seu corpo. Tal resposta é feita pela criança por meio do brincar. E então nos deparamos com outra ferramenta de trabalho do clínico que atua na fronteira das palavras: a construção de um brincar simbólico com a criança, articulando um lugar e um meio no qual ela possa formular e complexificar sua resposta ao Outro.

Assim, dessa inscrição inicial materna, é necessário um longo caminho da criança, no sentido de apropriar-se do código da língua e utilizar-se dele para sua enunciação. Podemos supor que nosso pequeno herói estava na primeira etapa apenas dessa empreitada. Tal qual Héracles, herdou um nome materno, porém tal nomeação não possibilitou-lhe a constituição de um sujeito singularizado, impedindo-o de seguir adiante, negando-o e fazendo dele uma versão própria, assim como Hércules, o que lhe possibilitaria constituir-se enquanto um sujeito desejante, faltante e falante.

Autora: Mônica Fujimura Leite

 

Referência Bibliográfica

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