Final de Análise e Ato Analítico

Dentre as várias particularidades da formação em psicanalise, irei focar a respeito do fim de análise e o ato analítico, resultado do que eu pude trabalhar  no cartel cujo tema é o “O Ato Analítico” promovido pela ALPL neste ano.

E dentro do Seminário resolvi destacar a questão da analise pessoal na formação  do analista, porque a analise pessoal tem me dado condições de auxiliar em  tantos impasses e dificuldades que a psicanálise provoca em mim diariamente.

Exemplifico esta importância que, (apesar de parecer com os títulos daqueles  livros que dão mil e uma razões para fazer qualquer coisa na vida), aqui vão as minhas “04 razões da analise para a formação do analista”:

  1.  Porque apesar da complexidade que envolve a formação do analista é necessário ser simples na sua prática;
  2. Porque permite que os laços libidinais do analisante provocados pela  minha presença me contornem, sem que me emaranhe nestes fios, dando subsidio de fazer semblante da transferência;
  3. Porque para que aconteça o ato analítico é necessário uma renuncia do  meu saber e do meu ser;
  4. Porque o desejo de ser analista é diferente do desejo do analista.

1a Razão

apesar da complexidade que envolve a formação do analista é necessário ser simples na sua prática;

Freud1 nos diz em “A questão da análise leiga” sobre o curso de uma análise:

Nada acontece entre eles, salvo que conversam entre si. O analista não faz uso de qualquer instrumento – nem mesmo para examinar o paciente – nem receita quaisquer remédios (…) O analista concorda em fixar um horário com o paciente, faz com que ele fale, ouve o que ele diz, por sua vez conversa com ele e faz com que ele ouça”. (p.183).

Enrique Mandelbaum2 distingue a cena analítica com a de um equilibrista andando sobre um mínimo de fio de arame, neste caso ninguém duvida sobre a dificuldade e o treino que foi necessário nesta situação e

Não é assim com a psicanálise. Observar a prática de um bom psicanalista, o comentário que ele eventualmente faz numa sessão, a postura que adota diante da fala do paciente etc, não permite vislumbrar o seu treino pessoal. É como se a prática obrigasse o despojamento dos próprios conteúdos adquiridos na formação. Estes não podem ser manifestados `a maneira de etiquetas enunciadoras de competências pessoais” (p.140)

Ou seja, por mais tentador que seja explicar para o leigo que o que você faz não é “ganhar dinheiro só pra escutar as pessoas e bater papo” é necessário um abandono dos ideais narcisistas dentro da cena analítica com o seu analisando.

Um calar sobre si, pois só podendo abster-se de saber antecipadamente sobre o analisando que propicia um dizer e um saber dele, possibilitando o surgimento do saber insabido, vindo de sua própria enunciação.

2a Razão

Porque permite que os laços libidinais do analisante provocados pela minha presença me contornem, sem que me emaranhe nestes fios, dando subsidio de fazer semblante da transferência.

O discurso do analisante, ao procurar o enigma de seus sintomas, presta-se a expor e transpor a sua transferência atualizando ativa e passivamente no analista a sua maneira de produzir laços libidinais, se fazendo e fazendo no analista objeto deste. Parafraseando Dominique Fingermann3:

Trata-se para o analista de saber aproveitar-se da ocasião oferecida pela transferência do sujeito para fazer uso desta, implicando-se na estrutura do sujeito, sabendo manter aí seu lugar. Essa manutenção da posição “desejo de analista”, a despeito da demanda do sujeito vai, de fato, produzir um corte, um certo espaçamento, um intervalo, uma descolagem, uma descontinuidade com o intuito de esvaziar o sentido complementar que dá o enredo neurótico”.

O analista é convocado pela transferência a fazer relação com a pulsão, satisfazendo-a, colaborando com a fantasia, e a partir deste lugar, endereçado a ele, que o analista frustrar a demanda, relançando o sujeito a sua verdade, sem que isto remeta ao objeto que que o analista foi em sua estória, a ficção que ele fez de sua novela familiar.

3a Razão

Porque para que aconteça o ato analítico é necessário uma renuncia do meu saber e do meu ser;

O ato está presente desde o começo da análise, tanto da parte do analisante quanto da parte do analista, se de um lado o ato foi de decidir-se a ingressar a psicanalise e procurar um psicanalista, a partir do momento em que se engaja na análise, institui-se um fazer, cujo suporte e autorização são dados pelo ato do analista.

Ato analítico, diferente da ação, tem dimensão significante, e ele só “toma seu valor, sua articulação de ato significativo com relação ao que Freud então introduz como inconsciente, certamente não é porque ele se apresente, se coloque como ato. É exatamente ao contrário. Ele está lá, como atividade, mais que apagado e, como diz o interessado, atividade para obturar um furo que só está ali se não pensa nele, à medida que não se importa com ele, que só está onde se exprime, por toda uma parte de suas atividades, para ocupar as mãos supostamente distraídas de toda a relação mental, ou bem, ainda, esse ato vai colocar seu sentido precisamente no que trata de atacar, de abalar, seu sentido ao abrigo da inabilidade, da falha”. (p.33).

Percebe-se no texto de Lacan que o ato opera somente quando não se pensa nele, ocupado por mão supostamente distraídas na relação mental e que no final produz efeito divisão.

O ato analítico é aquele operado pelo analista, na e pela transferência, que promove um corte que rompe o circuito da repetição que aliena o sujeito no lugar de objeto, produzindo uma descontinuidade e continuidade transferencial na qual o sujeito tenta enrolar o analista.

E para que este corte que produz o efeito de linguagem na divisão como sujeito opere é necessário que, o que eu nomeei neste trabalho como a razão 1 e 2, estejam presentes na cena analítica.

Em outras palavras, é necessário que na cena analítica o analista abstenha de seu saber e do seu ser e para que esta função seja plenamente ocupada, no qual envolve este abandono narcísico do saber, deixando em reserva o intenso trabalho teórico, para ser objeto causa de desejo para que a pulsão o contorne este lugar vazio em que o sujeito do analista desaparece.

É somente porque houve o efeito desta experiência com o seu inconsciente que se torna possível estas renúncias.

4a Razão

Porque o desejo de ser analista é diferente do desejo do analista.

O desejo consciente de querer ser analista é diferente do desejo do analista, produzido no final de análise.

O desejo de ser analista tem haver com a transferência com a psicanalise, com o significantes garantia da verdade deixado por Freud e que tem com os seus continuadores, os analistas, o suporte de uma transferência com a verdade.

O desejo do analista é o que sustenta a clínica de um analista.

Desejo do analista não pode ser concebido como um desejo pessoal do analista, mas como uma função, ou seja, desejo para que haja analise e que portanto, surja o desejo, sem que se esbarre na inversão de papeis em que aparece o querer do analista endereçado ao analisando. “É isso que torna delicada a posição do analista que está no meio, onde está o vazio, o furo, o lugar do desejo” (p.69)

Laurence Bataille4 aponta o engodo que muitas vezes o eu do analista entra em cena sob o nome de “desejo de analista” :

Cada vez que atribuo uma intenção ao paciente, um pensamento que ele não diz, estou fora da posição de analista. Cada vez que me sinto visada como sujeito pelo paciente, estou fora da posição de analista. Cada vez que tenho que representar algo para o paciente, nem que seja representar um analista, estou fora da posição do analista. A cada vez isto deve prevenir-me de que não é meu desejo de analista que está em jogo”.

Ao ocupar esta função, o sujeito do analista desaparece, pois houve uma mudança em sua posição que permite uma disponibilidade para o inesperado, para o real sem sentido.

O ato analítico é sustentada pelo desejo do analista que promove este “giro” que consiste do analisando remeter a sua fala ao analista e se escutar, em seu discurso, produzindo um efeito de sujeito nele. Parafraseando Lacan no Seminário 15, “O Ato Psicanalítico”

O ato psicanalítico suspende tudo o que até então tenha sido instituído, formulado, produzido como estatuto do ato, à sua própria lei”. (p.63)

Mais para frente faz uma passagem que resume todo este percurso que tentei falar aqui hoje:

O ato psicanalítico consiste essencialmente nesse tipo de efeito de sujeito (…): o sujeito dividido, o $, à medida que está aí a aquisição do efeito de sujeito ao final da tarefa psicanalisante, é verdade que, qualquer que ele seja e seja qual for o pretexto pelo qual ele se tenha engajado, é conquistada pelo sujeito, é por exemplo, para o sujeito mais banal, aquele que chega com a finalidade de conseguir alivio: eis meu sintoma, agora tenho sua verdade, quer dizer que é na medida que eu não sabia tudo de mim, é na medida em que há algo de irredutível nessa posição do sujeito que se chama, em suma, e é precisamente denominável: a impotência de saber tudo, que estou aqui e que, graças a Deus, o sintoma que revelava o que fica mascarado no efeito de sujeito ressoa um saber, o que há de mascarado, eu tive o levantamento disso, mas seguramente não completo. Algo perdura de irredutivelmente limitado neste saber. É ao preço – já que falei de distribuição – de que toda análise se fez o suporte, o objeto a à medida que ele é, foi e permanece sendo estruturalmente a causa dessa divisão do sujeito (…) no efeito de transferência (…) a medida que na relação analítica elas foram distribuídas aquele que é seu parceiro, o pivô e, em suma, o suporte, como disse na ultima vez, o instrumento, que pode se realizar a essência do que é a função do $, a saber a impotência do saber.” (p.218).

Enfim, para que possa suportar (no sentido de dar suporte) este esvaziamento do saber, sustentando a transferência, norteado pelo desejo do analista foi necessário o percurso de sua análise. O analista passou pelos efeitos de seu inconsciente produzidos pela analise que pode permitir que seja instrumento, ou como diz pivô, para que estes efeitos aconteçam com o analisando.

Como diz Lacan:

Começar a ser psicanalista, todo mundo sabe, é algo que começa no fim de uma psicanálise (…) Chegou-se ao fim uma vez, é aí que é preciso deduzir a relação que isso tem com o começo de todas as vezes” (p.83).

Autora: Michelle Hattori Fuziy

1 FREUD, S ““A questão da análise leiga” In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S Freud. Vol XX Ed Imago 1926.

2 MANDELBAUM, Enrique “Notas sobre a formação em psicanálise” In: Diálogos sobre a formação e a transmissão em psicanalise. Ed Zagodoni 2013.

3 FINGERMANN, Dominique. A análise dos analistas. J. psicanal. [online]. 2008, vol.41, n.74 [citado 2013-11-08], pp. 131-139 . Disponível em: . ISSN 0103-5835.

4 Bataille, Laurence input Costa, Teresinha. “ O desejo do analista e a clinica psicanalítica com crianças”. Psicanalise & Barroco e, revista v7 n2: 86-102, dez 2009.

Desejo de Analisar Crianças

Vamos lá, você vai gostar… encare como desafio: afinal, quem atende criança atende adulto e nem sempre quem atende adulto… atende criança.

Foi com esta proposta de desafio que iniciei meus estágios e meus estudos com crianças. Esta frase veio de uma professora, durante a minha graduação em psicologia, diante da minha recusa em atender “este tipo de paciente”.

Assim, o interesse de atendê-las e escuta-las começou enviesado: na tentativa de compreender o adulto e, para tornar mais fácil o trabalho com estes ouvia e brincava com crianças.

Que adulto era este que queria atender e que criança era esta recusada em ser escutada?

O Grupo de estudos sobre crianças da ALPL neste ano teve como objetivo o desejo do psicanalista de crianças e, é um pouco do que foi trabalhado e as marcas em mim produzidas que irei falar hoje. Dentre várias particularidades desta clinica, focarei na escolha do analista em trabalhar com crianças.

São muitos os desafios e as particularidades que envolvem esta clinica e em meio aos brinquedos, irmãos, avós, pais, escola, médicos o analista se vê convocado a responder e atuar. E, diante de tantas transferências e lugares remetidos a ele que a pergunta: “que ordem de desejo faz alguém psicanalisar crianças?” deve ser revista e repensada.

Leda Bernardino1 esclarece:

“(…) a clinica com crianças provoca nos que se aproximam da psicanálise seja uma grande fascinação, ou então, inversamente, o horror. Sabemos, desde Lacan, que estes efeitos se manifestam a cada vez que há algo de real na experiência. Há uma criança real, que ao mesmo tempo fascina e horroriza. Não se trata das crianças da realidade, que encontramos no dia – a – dia de nosso consultório, mas d’A Criança, presença que remete à origem, para sempre perdida, irresgatável, de todo sujeito”. (Bernardino 2004, p.60)

Continua a autora:

“Trata-se da criança de cada sujeito, núcleo da neurose infantil, matéria – prima fundamental que clama por se manifestar. (…) Por isso, quer se trate da Criança Real, ou da criança recalcada, a aproximação desta clinica deve nos conduzir a uma investigação desta “vocação”, no sentido de poder afasta-la do que poderia ser uma busca sintomática por um encontro finalmente bem sucedido com estas crianças, na qual o paciente não teria outro lugar senão o de objeto” (p.61).

Ou seja, a direção de tratamento depende da resposta a pergunta “por que psicanalisar crianças?”

Se a resposta for salvacionista, protegendo-a de todo trauma e castração gerados pelo encontro com o Real, sustentando o tão sonhado ideal de resguardar a criança da falta do Outro, propondo um Outro sem falhas, reparador e onipotente… de qual criança se trata?

Se a resposta for atender a demanda dos pais, na tentativa de restituir as feridas narcísicas que o sintoma da criança provoca, “consertando-a” para que continue respondendo ao ideal parental… de qual criança tentamos reparar?

Como diria Alfredo Jerusalinsky2, nestes casos, se atendermos a queixa da criança, imediatamente ficando contra os pais, nos transformamos numa espécie de goleiros das bolas que endereçam à criança: os que aparam, param um pouco os pais, aí a criança pensa “aqui posso gozar de certa tranquilidade que não vão me encher o saco”, e na relação com o analista não tem sintomas, fora dali se torna o diabo, atacando todo mundo, atrapalhando possíveis enlaces e intervenções analíticas.

Porem, se atendermos a queixa dos pais, de sermos agentes corretivos do que nelas está mal, faz com que evidentemente a coloque numa posição de desconfiança em relação a nós, não havendo possibilidade de realizar um trabalho analítico com ela.

Então, o que fazer?

Manoelle Descamps3 (p.62) indica que “o trabalho do analista em sua própria análise é identificar as motivações conscientes e sobretudo inconscientes, de sua escolha profissional e dos desejos que o engajam a trabalhar como analistas e em particular com crianças. Se, como ocorre nos melhores casos, o caminho pessoal da analise vai apresentando a iniquidade destas escolhas e derrubando uma a uma suas sustentações narcísicas inconscientes, podemos nos perguntar o que resta desta operação, que resultou em uma vocação, em uma escolha”.

Porque o lugar que o analista deve oferecer é um lugar vazio, vazio de demanda, de identificações pessoais, de narcisismo para que com este silencio, esta não – demanda, faça com que a criança se confronte com algo inédito: “Um adulto que não é imperativo, complementa Bernardino, que mesmo que seja colocado por ela mesma numa posição de mestre, não a ocupa; um adulto que não dá orientações, não dá ordens, não ensina, nada pede a não ser que a criança ocupe um lugar ali. (…) Este novo abre a possibilidade, para a criança, de localizar seu desejo como podendo ser diferente do que interpretou como desejo do Outro, destacado deste.

O analista convida a criança a assim uma expansão do imaginário, em que ela poderá encenar os ideais a que deve responder, dotando o seu ato com a importância significante, que tem ali uma função; e, ainda, há que representar esta função de Outro que compartilha o faz de conta, dando lugar a associação livre da criança. Torna-se a função do analista dar lugar e mergulhar na rede significantes que a criança arma, sobre o plano de fundo dos significantes familiares trazidos pelos pais.

A questão dos pais não pode ser vista de maneira desconectada no tratamento da criança, escuta-los faz parte do manejo da transferência na sustentação da analise da criança. O que deve ser escutado é em que lugar a criança está situada na fantasia do Outro, no desejo dos pais, no discurso que se mantêm sobre ela e a partir disto delinear a direção de tratamento, considerando cada caso. 

E, amparado pela transferência dos pais, que o analista intervém no sentido de produzir uma mudança subjetiva do sujeito em relação ao sintoma. Para finalizar, cito Colette Soler4 : “Trata-se de uma operação que vai do Real em direção ao Simbólico, ou seja, trata-se de propiciar que a criança passe da posição de objeto que ela foi chamada a ocupar na fantasia do Outro para o acesso ao seu desejo na condição de sujeito”.

Somente abstendo do meu ser e do meu saber que se torna possível desprover de significantes próprios, me incluindo no universo significante do analisando e me emprestar enquanto lugar, no qual o analisando depositará as suas demandas, propiciando a emergência do sujeito deste pequeno analisando.

A “frase desafio” que marcou meu percurso no atendimento com crianças permanece e continua verdadeira, porém sem identificações narcísicas, sem a intenção de tornar fácil os atendimentos com adultos. E se renova a cada vez que tenho que dar conta de produzir o ato analítico ( que nem sempre é bem sucedido) tanto em intensão, na relação com a criança, quanto em extensão, na relação com os pais, familiares, escola, instituições. Questão revista e recolocada a cada novo analisante, a cada próxima sessão de um mesmo analisante.

Autora: Michelle Hattori Fuziy

 

BERNARDINO, Leda M F (org) “Psicanalisar crianças: que desejo é esse?” Bahia: Algama, 2004.

2 JERUSALINSKY, Alfredo “Seminário de Psicanálise de Criancas” 07 dezembro de 1996.

3 Apud Bernardino, L M F, id ibidem.

4 Soller Colete Apud Costa, Teresinha. “O desejo do analista e a clinica psicanalitica com crianças”. In: Psicanálise e Barroco em revista v7, n2:86-102, dez 2009.

As Operações de Causação do Sujeito e a Interpretação Psicanalítica

O título proposto sugere duas vias de trabalho. Primeiro apresentar o que Lacan propôs, no seminário XI, como as operações de causação do sujeito. E a segunda via diz respeito a especificar qual a possível relação entre a interpretação psicanalítica e as operações de causação do sujeito.

Antes de nos introduzirmos nestas questões, penso ser válido apresentar quais foram meus interesses pela escolha do tema. A prática clínica me gera inúmeras questões, dentre elas uma tem tomado corpo durante esses anos de trabalho: qual é a lógica que rege uma interpretação psicanalítica? Como e a partir do que devemos intervir? O que orienta uma escuta psicanalítica?

Nos últimos capítulos deste seminário Lacan trará as operações de alienação e separação para trabalhar a constituição do sujeito. Trata-se, efetivamente, de como se produz um sujeito. Esses processos entre o sujeito e o Outro são circulares, mas não de reciprocidade.

Lacan nos mostrará que o sujeito somente se constituirá como tal pelo assujeitamento ao campo do Outro, lugar onde se situa a cadeia de significantes que ordenará aquilo que se fará presente no sujeito. Lacan (1998) nos diz: ¨Tudo surge da estrutura do significante¨ (p. 196). Rabinovich (2000) lembrará que para Lacan ¨o sujeito é causado, nunca é causa de si¨(p. 90).

Lacan explicará a alienação a partir de uma lógica da reunião, dizendo que é diferente adicionar coleções ou reuní-las. No primeiro caso a somatória de elementos seria muito maior, pois contaria aqueles já repetidos, já na reunião não se trata de uma somatória, pois os elementos não poderiam ser contados em dobro. Por essa lógica propõe um vel particular para dar conta desta operação: o vel da alienação.

Primeiro traz que há dois tipos de vel: o exclusivo e o inclusivo. No vel exclusivo ou escolho uma opção ou outra, sem a possibilidade de fazer as duas coisas: ou vou ao cinema ou ao teatro. No vel inclusivo opera uma lógica do tanto faz: ou vou ao teatro ou ao cinema, tanto faz. Já no vel da alienação a lógica da reunião opera por uma via do nem um, nem outro: não vou nem ao cinema, nem ao teatro.

O exemplo mais claro é proposto por Lacan pela seguinte questão: A bolsa ou a vida? Diz que se escolhermos a bolsa, ficaremos sem a vida. Mas se escolhemos a vida, também não teremos a mesma vida, pois ela ficará, de certa forma, decepada, sem a bolsa. Tal exemplo sustenta a ideia de que há uma escolha forçada, na qual o sujeito não tem opção. Na verdade, não tem escolha.

Este significante, produzido no campo do Outro, diz Lacan, faz surgir o sujeito de sua significação, mas no mesmo movimento que o significante o convida a falar, a funcionar, também o petrifica. Harari(1990) esclarece que ¨ao mesmo tempo em que o sujeito nasce na cultura por meio da ação do significante outorgando-lhe a única vida possível para um falante, também lhe presentifica a morte…O sujeito aparece ao preço de uma desaparição¨(p. 238) Rabinovich (2000) esclarece que a primeira falta é a falta de sujeito, pois colado ao S1, não pode aceder a palavra pois para tal é necessário no mínimo dois significantes. Assim, fará um apelo ao segundo significante no Outro.

A primeira falta do sujeito originada pela alienação se deve ao fato de que no momento em que o sujeito se identifica com um significante, ele é representado por um significante para outro significante. Laurent (1997) nos traz um exemplo: um ¨menino mau¨ é representado como menino mau em relação ao ideal de sua mãe. Assim, menino mau, que se caracteriza como um significante-mestre, o será como uma linha mestra pelo resto da vida, definindo-o e, provavelmente, comportando-se como tal. Aqui está a petrificação da qual falamos antes. Para Laurent (1997): ¨É definido como se estivesse morto, ou como se lhe faltasse a parte viva de seu ser que contém seu gozo¨(p.38) Desse modo quando é definido como um menino mau, uma parte do sujeito é deixada de fora, já que ele não é apenas um menino mau. Lacan dirá que estas identificações básicas não tem sentido nenhum, apenas são. Laurent (1997) diz que se pode explorar o sentido que elas tomam, mas, no final das contas, se verá que elas não fazem sentido. Esta identificação primária com um significante mestre vai mais além, pois ele tentará se identificar com aquilo que ele foi no desejo do Outro, não apenas no nível simbólico do desejo, mas como substância real envolvida no gozo. Aqui o sujeito tenta criar uma representação do gozo no interior do Outro através de sua fantasia, criando uma outra falta: de que o gozo é sempre parcial. E fará a tentativa de recuperação pela cadeia significante.

Assim o sujeito é capturado pelo significante, fica aniquilado, desaparecido. Lacan irá propor duas circunferências com uma parte em comum. Em uma delas Lacan inscreve o ser, na outra circunferência, que se refere ao Outro, o sentido. O primeiro significante, S1, designa o ser, mas não lhe dá sentido nenhum. O segundo significante, S2, lhe atribui sentido, mas ao fazê-lo apaga seu ser, produzindo a afânise. O Outro é o produtor de sentidos, que de alguma maneira, são sempre inconclusos, incompletos. Na intersecção destas duas conferências que é justamente a zona de relação entre o ser e o Outro Lacan inscreve o sem-sentido. Segundo Harari (1990):

Quando de algum modo o sentido se realiza em um sujeito em virtude da ação do
Outro deixa caído no caminho uma região de sem sentido. Esta região é
justamente, a daquilo que é inconsciente. Desse modo aquilo que é inconsciente é
um resto da operação da constituição do sujeito no campo do Outro (p.241).

Rabinovich (2000) afirma que o inconsciente é o produto da união destes dois campos, mas que ele ficará situado no campo do Outro, já que o inconsciente é o discurso do Outro. A alienação, longe de se tratar apenas de uma fusão, segundo Lacan (1998), instala uma divisão no sujeito, isto é, ele apenas aparecerá nesta divisão entre, de um lado o sentido, e de outro a afanise. Esta divisão e a operação lógica da reunião explicitada acima, nem um nem outro assinala uma falta. A partir do momento que tal falta é instalada, o sujeito colocará a falta em relação ao Outro: irá busca-la, induzí-la, como salienta Harari (1990). Lacan (1998) nos traz os porquês infantis, afirmando que tal exercício, longe de ser procura pura de conhecimento, é uma busca pela falta do Outro. Na intimação que lhe faz o Outro por seu discurso, o sujeito procurará a falta do Outro nos intervalos deste discurso, naquilo que o Outro não disse, nos tropeços, nos gemidos, o que pode ser expresso na frase proposta por Lacan: Ele me diz isso, mas o que ele quer?

É nesse intervalo que Lacan (1998) situará a metonímia, e consequentemente o desejo. Diz Lacan (1998): ¨É de lá que se inclina, é lá que desliza, é lá que foge como o furão, o que chamamos desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro¨(p. 203).

Subordinado pelo significante, a alienação o faz ser, mas ao preço de uma falta-em-ser. Na operação de alienação este Outro é não barrado, provocando o eclipsamento do sujeito.

Frente a esta operação revela-se como saída a segunda operação: a separação. É a reação do sujeito ante o ficar afanizado. Vejamos uma citação de Lacan (1998):

O efeito de linguagem está o tempo todo misturado com o fato, que é o fundo da
experiência analítica, de que o sujeito só é sujeito por seu assujeitamento ao campo
do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do
Outro. É por isso que ele precisa sair disso, tirar-se disso, no fim, ele saberá que o
Outro real tem, tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disso. É mesmo aí
que se impõe a necessidade de boa fé, fundada na certeza de que a mesma
implicação da dificuldade em relação às vias do desejo existe também no Outro
(p.178).

Percebe-se aí que o sujeito, de alguma forma, pode jogar. Entra, então, o que Lacan dirá a respeito da função da liberdade. Esta é limitada e trabalha a partir da falta. É a esta pequena liberdade em relação aos significantes do Outro que o sujeito terá para jogar. Rabinovich (2000) salienta que esta função da liberdade não diz respeito a identificar-se inteiramente com o S1 do ser, mas de se liberar do sentido. Complementa que a Psicanálise encontra-se justamente frente a questão de como conciliar o determinismo com uma margem de liberdade, pois se essa não houvesse, não haveria psicanálise.

Lacan (1998) dirá que a alienação é ligada essencialmente a dupla de significantes. Diz que é preciso que haja dois e não três, porque um significante é o que representa o sujeito para outro significante. Harari (1990) esclarece que no momento em que acontece a articulação S1-S2, o sujeito cai como um efeito dela. A separação consiste justamente em se fazer um ataque a cadeia de significantes, entre os dois significantes, aí está o lugar do sujeito na separação. Harari (1990) salienta que não implica ficar fora da cadeia, mas fazer um lugar nela. Rabinovich (2000) esclarece que a falta primeira da alienação, falta produzida pela perda do S1, é recuperada com a falta do sujeito como objeto para o Outro. Já na separação esta falta primeira remete à perda do sujeito como objeto causa do desejo do Outro, ficando este descompletado. Assim o sujeito, na separação, joga com o efeito desta perda no Outro, o que é exemplificado por Lacan com a frase: Podes me perder? Este jogo com a perda tem a finalidade de situar seu lugar de causa. Rabinovich( 2000) aponta que a perda, para Lacan, tem uma função instrumental, é um instrumento com o qual se faz algo. Lacan (1998) diz que a perda não acontece, que ela é buscada. Assim ¨perder-se para o Outro implica que o luto fica do lado do Outro, o buraco fica do lado do Outro…O seio cai do lado da criança e a mãe fica com o buraco¨(Rabinovich, 2000, p.125), por isso Lacan usa a expressão eu te mutilo, no seminário X. Não se trata de um luto do objeto, pois o luto é do Outro, mas uma prova do quanto o outro me deseja, o quanto sou
causa para ele.

Quando Lacan se refere a separação usa o termo torção que diz respeito a reversão das estruturas topológicas, pois além da separação fechar a alienação também se associa com o momento do fantasma, da cena fantasmática. Aí se dá uma topologia que se fecha neste instante e que produz um não saber acerca da determinação do sujeito pelo desejo do Outro. Esta torção topológica própria da separação fixa o S ao objeto a, o que nos dá a fórmula do fantasma, que tem como consequência a ocultação do desejo do Outro e o objeto que o sujeito foi para esse desejo. (RABINOVICH, 2000) Esta autora pontua: ¨a consequência da separação é a passagem da alienação entre ser e sentido para a estrutura do desejo como desejo do Outro¨ (p. 110).

Do mesmo modo procede o analista, com sua interpretação, realizando um ataque ao par significante no ponto débil do intervalo, onde, diz Harari (1990), jaz o desejo do Outro. Para Lacan (1998) ¨o inconsciente é o discurso do Outro, ele não está do lado de dentro, mas do lado de fora. É ele que, pela boca do analista, apela a reabertura do postigo¨.(?)

A afirmação lacaniana: ¨o desejo é o desejo do Outro¨ nos encaminha para a ideia que o desejo é sua interpretação. Não que haja um desejo pré-existente ao discurso do analista, mas a interpretação analítica põe em ato uma dimensão a mercê da qual o sujeito é constituído. Assim quando o analista interpreta o desejo se faz presente. Lacan (1998) define o desejo como o ponto nodal onde se ligam a pulsação do inconsciente e a realidade sexual. Nas palavras de Lacan: ¨A interpretação do analista não faz mais do que recobrir o fato de que o inconsciente já procedeu por interpretação. O Outro já está lá, em toda sua abertura, por mais fugida que seja.¨(p.?)

A ética do analista implica trabalhar com estas operações, suportando a alienação nos significantes, e dentro do movimento de retorno torcional, ir para a separação. Lacan (1998) diz ¨¨A interpretação não se dobra a todos os sentidos. Ela só designa uma única serie de significantes. Mas o sujeito pode com efeito ocupar diversos lugares, conforme se o ponha sob um ou outro desses significantes.¨ (p. 198)

Dessa forma não é qualquer coisa que serve para uma interpretação: não basta apenas criar um efeito de sentido ou ir experimentando diversas interpretações para verificar qual seria a mais adequada a um analisante em específico ou mesmo explicar detalhadamente sobre o que pode ser analisado sobre o sujeito.

Laurent (1997) diz que a interpretação deve referir-se ao verdadeiro sentido daquilo que o analisando diz em sua cadeia significante e este verdadeiro sentido é o resto do primeiro encontro do sujeito com o Outro, o resto do gozo.

É preciso, em análise, rastrear todas as significações em que o significante-mestre aparece, encontrar essa cadeia sem sentido de significantes, que, encadeados de uma certa forma, definem a fantasia do sujeito. Isso é conduzir o analisante aos seus modos de gozo, segundo Laurent, as maneiras pelas quais ele transforma o outro que ama num objeto. Então para Lacan a interpretação deve visar ao objeto, mas não comentá-lo diretamente, através de interpretações explicativas, pois o efeito seria uma fixação nesse gozo, levando-o a atuação. É preciso utilizar as entrelinhas, utilizando a cadeia de significantes do sujeito e a equivocação, de acordo com Laurent. Rabinovich (2000) diz que a formulação que faz Lacan sobre a interpretação é determinada pela liberdade do sem-sentido, ou seja, ir além do problema da significação. Ainda a autora nos fala que Lacan comparou este S1 que corresponde ao sujeito com um número de loteria, ou seja, ninguém o tira, ele simplesmente sai. Isso nos esclarece esta ideia do não sentido do S1 e nos aponta a possibilidade de trabalho em Psicanálise, pois a nossa causação, como fomos causados não é da ordem do determinismo absoluto e imutável. Rabinovich (2000) nos alerta que a psicanálise opera sobre o desejo e não sobre o sem-sentido, pois o sem sentido no final de análise não se relaciona com a ausência de desejo, encontrada hoje em alguns sujeitos.

Vou relatar a vocês um pequeno trecho clínico sobre o qual penso podermos ver estas operações de alienação e separação e sua relação com a interpretação.

P. chegou ao meu consultório com a seguinte queixa: dizia se irritar demais com as pessoas e mudar seu humor de repente, sem que nada provocasse isso. Perguntou-me se isso o que tinha era o Transtorno Bipolar e contou-me o quanto ficava afetada com sua falta de controle sobre o que sentia. Usava, desde as primeiras entrevistas, a seguinte expressão: ¨Eu viro¨. Pergunto: vira o que? Diz que vira outra pessoa, que parecia que tinha até dupla personalidade, pois não se reconhecia quando virava. Queria apenas se isolar em seu quarto, ficar ¨quietinha¨, como dizia. Segundo P. ao virar, sentia crises de angústia com sintomas físicos de sufocamento e falta de ar e muita ansiedade, descontando nos alimentos, principalmente em doces, o que a fazia se sentir feia e culpada. Este significante virar insistia ao longo das sessões.

Certa sessão lhe indico o divã e assim que deita começa a dizer que não está confortável ali, sente como se a sala estivesse muito estreita e pequena, sente-se sozinha, sem ar e acha que não está passando bem. Ofereço-lhe a volta para a poltrona e lhe convido a falar destas sensações. Descreve estas sensações como muito semelhantes ao que sente em suas crises de angústia e diz que ao virar de costas para mim, sentiu-se abandonada. Aponto que ela também ali estava virada. Ao longo da sessão volta a falar de sua mãe, a qual descreve como ausente em sua criação, localizando a função materna em sua avó materna. Conta que apanhou inúmeras vezes da mãe, sem motivos que julgasse plausíveis. A última surra se deu aos 16 anos, no meio de uma praça, em frente às pessoas. Conta que sua mãe não lhe deixava sair de casa e que sempre lhe fez dormir no mesmo quarto dela, mesmo havendo quartos de sobra na casa. Aos 18 anos começa a namorar virtualmente e sai da casa da mãe para novamente morar com a avó. A mãe não aceitava o namoro e as duas ficam dois anos sem se falar. Após um rompimento trágico, o qual define como possível causador de seus sintomas, volta a morar com a mãe a pedido desta, mas com a condição que cada uma tenha seu espaço. Reclama da ¨folga¨ da mãe, pois geralmente todo o serviço da casa fica por conta dela. Diz não sentir que a mãe a ama. Relata um dia das mães no qual ouviu uma música e todos os presentes se emocionaram, mas ela não conseguia, pois não sentia um amor verdadeiro de sua mãe. Lembra que sua avó sempre a pegava na escola e seu maior sonho era que sua mãe fosse buscá-la. A mãe promete certo dia que irá pegá-la e quem a leva para casa é o vigia da escola. Jurou, após este dia, que a mãe não a deixaria esperando. Nessa mesma sessão da ida ao divã, estava falando de sua mãe, quando diz: ¨Porque ela sempre me disse: ¨se vira¨.

P. que tinha um nome composto, mas sem aparente conexão entre eles, diz que um nome foi escolhido pela tia, irmã da mãe, e o outro pelo pai, que desparecera no dia do casamento. Em outra sessão também relaciona a virada e a dupla personalidade com estes dois nomes, como se ora fosse tal nome, vindo da mãe, e ora o outro nome, vindo do pai.

P. fica petrificada por este significante que a divide, controla e lhe gera esta sensação do sem-sentido, do desconhecimento de sua condição.

Voltando a função do analista, se a perda é um instrumento para dar lugar a causa do desejo, o analista, segundo Rabinovich (2000) se deixará usar como objeto, objeto causa de desejo e não como objeto de gozo, posição perversa. Pois diz a autora: ¨Operar em termos de gozo é operar em termos de recuperação; operar em termos de desejo é operar em termos de perda¨ (Rabinovich, 2000, p.118). Dessa forma não há gozo no exercício da função do analista.

Também se pode afirmar que a operação de separação tem sua relação com a definição proposta por Lacan de desejo do analista. Este seria uma busca pela pura diferença, não um desejo puro, pois o analista deve se situar no lugar do intervalo, do entre-dois, desejando produzir um espaço, espaço onde se situa o objeto a, lugar em que renuncia uma posição amorosa.

O caminho deste trabalho me levou então a pensar a articulação entre desejo, amor e gozo na função do analista. Assim, esta função exige um esvaziamento de gozo, um para-além do amor e uma direção ao desejo.

Autor: Marina P. de Paula.

 

Referências Bibliográficas

HARARI, R. Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan. Campinas, SP: Papirus, 1990.

LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

LAURENT, E. Alienação e separação I e II. In: Feldstein, R., FINK, B.,JANNUS, M.,(Orgs). Para ler o seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro; 1997.

RABINOVICH, D. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2000.

Repetição: A falta de encontro ou o encontro da falta?

Pretendo, a partir da questão proposta no título, trabalhar a definição que Lacan formula no seminário 11 da repetição. Ele nos apresenta a função da tiquê, situada como a dimensão real da repetição, como essencialmente encontro faltoso, encontro enquanto podendo faltar.

Há diversas maneiras de ler a questão proposta. O que Lacan está chamando de encontro faltoso? Entendo que a primeira parte da questão que propõe uma falta de encontro pode nos direcionar em um caminho equivocado, já que Lacan define a repetição como um encontro, mas ao mesmo tempo diz sobre um encontro enquanto podendo faltar. De que se trata este encontro? É um encontro que não acontece, um desencontro ou se encontra algo na repetição? E o que seria a repetição como encontro da falta?

Lacan nos diz que este encontro faltoso é apresentado na psicanálise a partir do traumatismo. É justamente isto que vemos em Freud em Mais Além do Princípio do Prazer quando evoca os sonhos traumáticos e a experiência da separação no fort-da. Nota no trauma a presença do real, este se apresentando como irredutível, não passível de ser reduzido à palavra ou imagem. O princípio da realidade ao balizar o automaton, face simbólica da repetição que caracteriza o automatismo da repetição significante, insiste em deixar fora o real e a tiquê tem que se repetir.

Lacan nos fornece um exemplo de encontro faltoso a partir de um sonho presente na Interpretação dos Sonhos. Trata-se de um pai no velório do filho que solicita a um senhor que cuide do corpo de seu filho morto enquanto ele dorme na peça ao lado. Ele sonha com o filho lhe dizendo: Pai, não vês que estou queimando?, e coincidentemente, como por acaso, o caixão do filho começa a pegar fogo a partir de uma vela tombada e do adormecer daquele que deveria estar cuidando. Lacan questionará o que é que desperta? Pergunta-nos se não há uma outra realidade e afirma que o pai não desperta pela realidade da fumaça ou do barulho do quarto ao lado. Esta outra realidade aponta para a fantasia, pois Lacan articula que o real vai do trauma a fantasia, esta funcionando como uma tela que dissimula algo de determinante na repetição. ¨…pois o que nos desperta é a outra realidade escondida por trás da falta do que tem lugar na representação – é o Trieb nos diz Freud (Lacan, 1964, p. 61).

O real não é aquilo que retorna, o que retorna são os signos, mas aquilo que se repete como falta. Também não se pode confundi-lo com a realidade, mas ele confere realidade ao mundo. É este real que se repete que irá caracterizar a pulsão. Para Garcia-Roza(1999) ¨a repetição é o ato pelo qual a pulsão é presentificada, mas, ao mesmo tempo, o ato pela qual ela permanece oculta¨( p.52).

Lacan, ainda no seminário 11, nos traz a pulsão como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, assim como a repetição. Examinando os textos freudianos marcará a força constante da pulsão, sem assimilá-la a nenhum conceito biológico. Mostra que a satisfação da pulsão não é atingir o alvo, pois a sublimação, apontada por Freud como um dos destinos da pulsão, atinge sua satisfação, mesmo inibida quanto ao alvo. Diz que os pacientes não estão logicamente satisfeitos com o que são, mas, apesar disso, isto o que eles são, seus sintomas, dependem da satisfação; ¨…eles dão satisfação a alguma coisa…eles não se contentam com seu estado, mas, estando nesse estado tão pouco contentador, se contentam assim mesmo¨(Lacan, 1964, 158).

Mas esta satisfação é paradoxal, pois há algo da ordem do impossível, do real como impossível e como obstáculo ao princípio do prazer. A satisfação da pulsão não está em sua apreensão do objeto, pois, como Freud já havia demarcado, os objetos são indiferentes para a pulsão, pois não há nenhum objeto que satisfaça a pulsão, sua satisfação encontra-se no trajeto, no contorno do objeto, no retorno em circuito. O alvo da pulsão, exemplifica Lacan, não é a ave abatida, mas ter acertado o tiro.

Isto que é contornável pela pulsão é um furo, um vazio, no qual se aloja o objeto pequeno a, é o contorno ao objeto eternamente faltante. No lugar deste objeto que falta, fica algo em seu lugar, o objeto a, contudo este não é um objeto específico, mas antes um furo em torno do qual gravitam os significantes.

Rabinovich conta sobre Nicolau de Cusa e o considera um predecessor de Lacan, pela ideia de que entre um saber já constituído e sua aplicação na realidade, sempre sobra um resto, algo inassimilável. Três instrumentos do saber humano sobre a natureza – contar, medir e pesar – mostram a insuficiência dos nossos parâmetros, assim a aritmética e a geometria deixam sempre um resto não realizado em toda a aplicação a objetos reais. A este resto pode-se entender como objeto a. Este resto, por mais que tenha sido produzido pelo saber, o move. Na metáfora lacaniana sobre a caça, esclarece Rabinovich (2000): ¨o objeto a, objeto eterno e inalcançável da caça, é um objeto que, como resto da divisão subjetiva, está atrás causando a busca, mas não é sua meta¨ (p. 42).

Laureano (2015) salienta que após os anos 60, Lacan qualifica o real como ¨o resto não morto encarnado no objeto pequeno a, o resto de gozo para além da mortificação que a ordem simbólica introduz no sujeito¨(p. 78). Diz que a primeira leitura de Lacan sobre o real transmitia a ideia de que seria perigoso se aproximar desta dimensão da pulsão além do princípio do prazer. Em uma segunda leitura o real é imanente ao simbólico, tornando-se causa da repetição simbólica. 

O vaivém da pulsão é o que caracteriza sua força constante e é este retorno em circuito que se pode caracterizar como repetição. Garcia-Roza diz: ¨A repetição é a característica própria da pulsão¨ (p. 25). Lacan falará, quanto às pulsões, de um estado de deriva. ¨Estar a deriva é estar remetido ao acaso dos encontros, encontro sempre faltoso, que vai ser subjugado ou ordenado pelo mundo dos signos¨ (Garcia-Roza, p. 70). Estar à deriva significa que não há ordem pulsional, esta ordem é dada pela estrutura de significantes, a possibilidade de satisfação é mediada pela representação. A pulsão ocupa um mais além da ordem e da lei, fora da cadeia significante e não é regulada pelo princípio do prazer e da realidade. É o lugar do acaso. O objeto da pulsão é o objeto da fantasia, o que demostra sua submissão à articulação significante e a caracterização do sexual, já que ¨a sexualidade constitui-se a partir da captura das pulsões pela rede significante¨ (Garcia-Roza, 1990, p. 144).

Este encontro faltoso para Lacan é o encontro com o real. A face real da pulsão é a pulsão de morte. Esta é entendida por Lacan como uma vontade de destruição, não no sentido da agressividade ou de vontade de se auto destruir, como muitos fazem esta leitura: ¨Ah, ele é obeso, come demais, então tem muita pulsão de morte¨. Esta vontade de destruição diz respeito a uma propriedade disjuntiva, que visa romper os laços entre o representante do objeto e o representante da pulsão, recusa a permanência, possibilitando a criação, o novo. Freud aponta a pulsão de morte como silenciosa e invisível, definição análoga que tem a tiquê em Lacan.

A pulsão de vida é aquela que objetiva a união permanente dos laços, é aquela que diz : ¨é isso¨. Diferentemente, a pulsão de morte é a recusa da repetição do mesmo, automaton, e nesse sentido, como salienta Garcia – Roza, é mantenedora do desejo, se este é entendido como a pura diferença. Diz este autor: ¨Se pulsão é
repetição, ela é uma repetição diferencial¨(p. 137).

Trago um exemplo clínico para tentar analisar a relação da articulação da pulsão com a estrutura do significante. Um homem adulto vem me procurar por conta das dificuldades que tem em um relacionamento. Brigam muito, separam-se várias vezes, ela o agride e ele sempre foge ou recua. Quando estão juntos não suporta as brigas recorrentes e desconfia que ela não o ama suficientemente. Quando está separado tem sintomas físicos e não consegue realizar suas atividades diárias no trabalho, pois só pensa nela. Tem dificuldades de assumir este relacionamento para a família já que esta considera a moça como barraqueira. Em uma sessão especifica quando me dizia que tinha vontade de largar tudo, diz:¨Vo toca gado no Mato Grosso¨(sic). Eu só conseguia escutar: Estou cagado no Mato Grosso. Minha primeira reação foi de surpresa por não ter entendido a primeira significação, que ele conscientemente usou. Perguntei a ele se era uma expressão. Ele teve aquele ar de estranheza quando o sentido aparente é desvelado e começou a rir. Perguntou-me: Você entendeu estou cagado? Ele também escutou.

Fazendo este trabalho este exemplo me torturou por algum tempo sempre que eu pensava na repetição. Parecia que tinha relação com ela, apesar de não ter nenhuma característica de um automaton, ou seja, de uma repetição do mesmo, uma reprodução do idêntico, mas me parecia que tinha relações, mas não sabia ainda quais. Bem, analiso primeiramente que parece não se tratar de um ato falho, no sentido de uma palavra que sai sem querer dizê-la, ou que é trocada por outra. O analisante quis formular a frase de forma consciente, mas o sentido que se depreendeu dela era outro. Como chamar isso? Entendo que o significante produz como efeito seu próprio sentido, sem haver uma fixidez em algum significado prévio. Lacan diz que o significante atua para constituir o sujeito, faz ato por ser um representante da pulsão. O ato é essencialmente humano por ser ele atravessado pela linguagem.

Segundo Brousse a pulsão é o resultado do funcionamento do significante, da demanda do Outro. O significante barra a necessidade e cria a pulsão, pois a pulsão oral não é satisfeita pelo leite, deixando um resto que é o desejo. Assim pode-se entender a pulsão como uma consequência da articulação na linguagem da demandado Outro não barrado.

A função do analista, para Lacan, é de presentificar da realidade do inconsciente, a pulsão. A atividade da pulsão está em um ¨se fazer¨, o que denota que algo nos é feito pelo outro. Penso que no exemplo citado acima, havia um ¨se fazer cagar¨, pois revelava de alguma maneira a posição do sujeito diante da demanda do Outro. O que quero sublinhar aqui é que me parece, que ali, na transferência, surge um significante passível de ser o representante da pulsão, pois dela nada conhecemos, apenas seus representantes. Representante da pulsão que nos diz da demanda do Outro e do modo como o analisante se satisfazia a partir do uso que fazia dela.

Se faire – se fazer – é a própria montagem da pulsão, montagem, pois se refere a uma ordem única e própria, montagem entre a própria satisfação sexual como demanda do Outro e de introduzir a própria satisfação sexual furtivamente no campo do Outro afim de completá-lo.

Não posso afirmar que se trata de uma repetição diferencial, tiquê, pois só poderia dizê-la conhecendo seus efeitos posteriores. Isto não se deu, pois logo depois ele abandona a análise. Questionei-me inicialmente se não se tratava de um tempo da análise que ele ainda não pudesse ser atravessado pelo sentido da frase, mas tenho a impressão que se trata de algo diferente. Já chegamos lá.

Se como vimos a tiquê é este encontro faltoso com o real, este encontro que provoca um desencontro, a intervenção do analista deve apontar para este gozo ao qual o sujeito está retido, escolha de gozo parcial, porque a outra parte é decidida pelo Outro, por isso sofre. Vegh afirma que isto seria interpretar a castração do Outro.

Significa construir um buraco no sentido existente, sustentar como presença o objeto a, para depois subtraí-lo, deixar cair. O encontro faltoso como encontro da falta no Outro, reconhecer a inexistência do Outro, para que o sujeito possa ler de outro modo, autremente, o Outro mente.

Quando fui tomada de susto por isso que se revelou, decidi fazer o corte da sessão. Acredito que foi uma má escolha, pois percebo, hoje, que não pude sustentar, com minha presença, algum gozo que se manifestava ali retido. Ao me assustar, tenho a impressão que não me deixei levar a esta teia de aranha, metáfora usada por Vegh, tecida pelos fios do Outro. Ao encerrar a sessão não dei espaço para que ele falasse sobre isso e depois nas outras poucas sessões que se sucederam isto não mais apareceu.

É a demanda do Outro que determina qual será o objeto pulsional. O neurótico tende a confundir a falta do Outro com a demanda do Outro, assim a demanda assume papel na fantasia, esta ficando reduzida a pulsão. Dessa forma quanto mais se trabalha a fantasia, mais há possibilidade de se desconectar com a demanda do Outro, fazendo surgir o objeto sem o véu da demanda. Brousse (1997) indica que assim o real pode ser reintroduzido na construção da fantasia, operando como puro furo, objeto a.

Acredito que a repetição diferencial tem como objetivo a possibilidade de reconectar o objeto a à fantasia, pois se a pulsão está por trás de todo encontro faltoso, é através de sua interpretação que, penso, pode ocorrer a reinstalação do a como causa de desejo, dando lugar ao real e a uma nova forma de gozar e se posicionar subjetivamente.

Para Fink (1998) um caminho para o final de análise é atravessar a fantasia fundamental ¨ através do qual o sujeito dividido assume o lugar de causa, em outras palavras, torna subjetiva a causa traumática de seu próprio advento como sujeito, vindo a ser nesse lugar onde o desejo do Outro – um desejo estrangeiro e estranho – havia estado¨(p.85).

Autora: Marina P. de Paula

 

Referência Bibliográfica

FELDESTEIN, R; FINK, B. JAANUS, M. Para ler o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

FREUD, S. Além do Princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GARCIA-ROZA, A. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

GARCIA-ROZA, A. O mal radical em Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

LACAN, J. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LAUREANO, P. S. A razão vence a seriedade da morte? Trauma e Pulsão em Lacan. In: https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/viewFile/…/44091.

RABINOVICH, D. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em
Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

É só Castração?

Muitos podem ter pensado – Não é só castração, há a denegação e a foraclusão – e afirmo a vocês que a resposta para essa pergunta não reside no âmbito das formas de negações do Édipo.

Pretendo abordar neste trabalho as proposições de Lacan acerca das noções da relação da falta de objeto.

No momento em que pensava como seria este trabalho final, me confundia em textos já lidos, como se alguns conteúdos tivessem sido completamente apagados da minha memória.

Quero dizer, que eu já havia tido contato com essa proposição de Lacan sobre a relação da falta de objeto, constitutiva do sujeito, mas este contato foi por textos intermediários e não propriamente pela leitura do Seminário 4. Em 2013, realizei a leitura do livro “Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais”, de Michele Roman Faria, no qual ela retoma as três formas, propostas por Lacan, da relação de falta de objeto: a privação, a frustração e a castração.

No entanto, eu esqueci totalmente de dois modos em relação à falta de objeto. E em 2014, envolvida com a leitura do Seminário 4, em uma das reuniões de Cartel, cheguei a afirmar que era a primeira vez que lia sobre privação e frustração – Sempre li sobre a castração – Ai ai estava eu enganada!

Sabemos que o inconsciente é soberano, portanto eu não poderia deixar de mencionar aqui sobre esse esquecimento. Arrisco a dizer a partir disso, que fazer psicanálise não está somente no âmbito de ler e estudar, se trata sim, de uma experiência com a psicanálise. Então, que fique claro, a minha experiência de esquecimento a respeito de duas das três formas da falta de objeto e por isso, o meu interesse em falar sobre elas.

Com as atividades da ALPL e com o estudo do Seminário 4, percebi que meu conhecimento sobre a constituição do sujeito estava limitada à teorização do Complexo de Édipo (interdição do incesto e castração), o Estádio do Espelho e Narcisismo.

E o que mudou com a leitura do Seminário 4?

A mudança está no fato de que há de se considerar as formas pelas quais se estabelecem a relação de objeto, ou melhor, a relação com a falta de objeto: frustração, privação e castração. Conduzirei minha escrita pelo caminho de abordar a noção dessas três formas.

Lacan, no momento em que fala sobre essas formas, nos diz: “Jamais, em nossa experiência concreta da teoria analítica, podemos prescindir de uma noção da falta do objeto como central. Não é um negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo” (Lacan, 1956-57/1995, p.35).

Ele toma o cuidado de retornar a Freud ao tratar do objeto, há de se atentar que o objeto é sempre perdido e que sua redescoberta é sempre insatisfatória.

Com a proposta de articular as formas da falta de objeto ao objeto (falo e seio) e suas dimensões (Real, Simbólico e Imaginário), Lacan apresenta um quadro, no qual se pretende relacionar a dimensão do agente Pai (Real/Imaginário) e Mãe (Simbólica) (Lacan, 1956-57/1995, p. 59).

Nessa relação, sigo com a noção de castração, sendo este um dos modos de relação com a falta de objeto. Está ligada a ordem simbólica, a noção da lei. E nos remete a pensar no arcabouço freudiano e sua teoria do Complexo de Édipo. Articulado a isso, temos com a leitura lacaniana, o entendimento de que o objeto (falo) está localizado no plano do Imaginário, a interdição imposta na figura do agente-pai (Real) cujo modo da falta de objeto se dá no Simbólico e nos diz como cada sujeito lidará com sua falta-a-ser.

Em seguida a outra noção, a frustração, na qual o modo da falta de objeto está ligada a dimensão Imaginária e que segundo Lacan (1956-57/1995), está ligada a experiências pré-edipianas, em uma relação com o objeto real, o seio materno, tem como agente, a mãe, no campo simbólico. A frustração opera, diante de uma recusa da mãe, uma recusa não do objeto de satisfação (seio) e sim uma recusa do dom (amor) “(…) na medida em que o dom é símbolo do amor” (Lacan, 1956-57/1995, p.184)

Existe, então, uma dialética de presença e ausência – ora a mãe está presente com o objeto de satisfação (seio)/dom (amor), ora está ausente e veja que de alguma forma, enquanto agente, a mãe está, porém sem o objeto símbolo de amor.

Sendo assim, “(…) com a noção de frustração introduz-se no condicionamento, no desenvolvimento do sujeito, todo um cortejo de noções que se traduzem numa linguagem de metáforas quantitativas – fala-se em satisfação (…) – ou, ao contrário, carência (…)” nos diz Lacan (1956-57/1997, p. 62). A criança neste momento já está imersa na ordem simbólica, vejamos o que diz Lacan (1956-57/1995, p.184): “Isso  quer dizer que ela já está totalmente engajada, o que implica a existência da ordem simbólica”.

De maneira a tentar alcançar essa noção pensei no exemplo freudiano, citado por Lacan, o jogo do “Fort-da” em que a criança lança o carretel para longe e sobre a cortina de seu berço – sem condições de vê-lo – o traz de volta, para perto, vocalizando o som do “oooo-daaaa”. A metáfora está aí colocada no jogo dessa criança, ou seja, há a presença e ausência do carretel, sendo possível compreender a presença da metáfora (jogo/vocalização) ausência e presença da mãe.

Há nesse modo de falta de objeto, frustração, uma realidade de falta (objeto/seio) imposta, que se articula a um agente simbólico (mãe-ausente/presente), ligada a questão do dom, ou melhor, como já disse do objeto de amor.

Muitos são os exemplos clínicos trabalhados por Lacan para dizer sobre as formas singulares manifestadas pelos sujeitos em relação à frustração, quero dizer com isso, que não há uma receita para apreender na clínica a manifestação do modo pela qual a frustração se dá. Assim, os casos aqui mencionados, apenas ilustram essa
forma de falta de objeto, para aquele sujeito em particular.

Lacan discorre acerca de um caso atendido por Freud, da jovem homossexual, em que certo momento de sua história, esperou receber uma criança, e ele nos diz: “Uma criança é dada pelo pai, é verdade, mas justamente a outra pessoa, e a alguém que lhes é mais próximo” (p.110), ou seja, é dada uma criança à mãe.

Vejam só, ele trabalhou com a singularidade desse sujeito, diante da relação da falta de objeto real (criança) cuja posse é de sua mãe, podemos ver com as palavras de Lacan que: “A presença da criança real, o fato do objeto ser aí, por um instante, real, e de ser materializado pelo fato de ser sua mãe quem o tem a seu lado, vai conduzi-la ao plano da frustração” (1956-57/1995, p.110).

A frustração é então, uma forma de falta de objeto, que envolve para além do agente (simbólico) o objeto real identificado ao dom, o que permite ao sujeito fazer apelo ao que lhe falta. Como havia dito no começo, a experiência com a psicanálise segue para além dos estudos, a análise pessoal, o cartel, os estudos e a supervisão proporcionam tal experiência e conto a vocês uma parte da minha.

Em uma dada sessão, logo no início, peço a minha analista um outro horário, para a semana seguinte, devido a impossibilidade de estar na próxima sessão e digo “é porque não quero perder o horário da semana que vem”. Ela me interroga a respeito do significante perder e sigo falando sobre ele, ao final da sessão ela me diz “você me pede para não ter uma sessão” e encerra o atendimento com a pontuação de que não atenderia o meu pedido de um outro horário, saí desapontada e me questionando, como ela poderia me negar uma sessão?

Na mesma semana, em estudo no dispositivo de Cartel, minhas colegas mencionam uma frase escrita por Lacan em uma de suas aulas, e leio para vocês a frase: “Eu te peço para recusar-me o que te ofereço – porquê: não é isso”. Aqui ficou evidente para mim que fazer psicanálise é ter uma experiência, no plano da vivência, de experimentar os efeitos que ela tem. O ocorrido na minha sessão de análise estava ali no plano da frustração, ou seja, estava eu ali oferecendo um pedido para não lidar com aquilo que me falta, experimentei ali uma falta imposta e marcada (falta real/sem sessão) mas, sobre a qual, me sentia autorizada a apelar que fosse concedida outra sessão para não perder/não faltar.

Para continuar, sigo com mais uma apresentação de Lacan, sobre a frustração, diante de uma caso de anorexia: “(…) não é um não comer, mas um comer nada (…)” e “(…) Nada, isso é justamente algo que existe no plano simbólico”(p.188).

Mais uma vez a linguagem está imposta ai, no modo singular, em que cada sujeito se posiciona frente a falta de objeto.

Sobre a noção de privação, modo de falta de objeto, ligado ao ordenamento do Real, o pai (agente) aparece como privador, se trata de um pai (Imaginário), que age sobre um objeto (simbólico), a saber, o falo (Simbólico). (Lacan, 1956-57/1995).

A privação marca uma falta à criança justamente por aquilo que supostamente a mãe teria e que com a ação do pai faz com que, o interesse da mãe por este, fique evidenciado, e revela que a ela também falta o falo.

Para ilustrar, Lacan, faz analogia com um livro de uma biblioteca, o qual não é encontrado na estante em que está referenciado no catálogo, ou seja, o livro pode ser identificado e procurado na biblioteca, mas se ele estiver sendo usado por outro, ou ainda estiver no setor de devolvidos, a biblioteca estará privada do livro. Isso consiste em dizer que o simbólico (a organização da biblioteca está antes formulada) e depois a falta (do livro/real). “Quando digo que, em se tratando da privação, a falta está no real, isso quer dizer que ela não está no sujeito. Para que o sujeito tenha acesso à privação, é preciso que ele conceba o real como podendo ser diferente do que é, isto é, que já o simbolize” afirmou Lacan (1956-57/1995, p.55-56).

Tendo discorrido sobre as três noções da falta de objeto, percebo que neste Seminário, Lacan, apontou que esses três modos de falta de objeto operam ao mesmo tempo, mas que é preciso distingui-las, pois muitos analistas interviram de forma equivocada por não reconhecer a diferença entre as relações de falta de objeto.

Em suma, uso as palavras de Lacan: “Na castração, há uma falta fundamental que se situa, como dívida, na cadeia simbólica. Na frustração, a falta só se compreende no plano imaginário, como dano imaginário. Na privação, a falta está pura e simplesmente no real, limite ou hiância real” (p.54)

Exposto tudo isso e com a experiência de ter participado desse Cartel e das atividades da ALPL, afirmo que a constituição do sujeito tem que ser abarcada para além dos modos de negações do Édipo. Isso implica em dizer que, a determinação de um sujeito se dá no campo da linguagem, marcadamente pelas dimensões do Real,
Simbólico e Imaginário.

Autora: Marana Tamie Uehara de Souza

 

Referência Bibliográfica

Lacan, J. (1956-1957). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEd., 1995.

Faria, M.R. Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. São Paulo: Hacker Editores: Cespuc: FAPESP. 1998.

Sobre Nomes e Sobrenomes

Eu não gosto
do meu nome,
não fui eu
quem escolheu.
Eu não sei
por que se metem
com o nome
que é só meu!
O nenê
que vai nascer
vai chamar
como o padrinho,
vai chamar
como o vovô,
mas ninguém
vai perguntar
o que pensa
o coitadinho.
(Trecho do Poema “O nome da gente”, de Pedro Bandeira)

Júlio é um nome. Tavares é um sobrenome. Juntos constituem a particularidade de uma criança e a pertença a uma família. Todos os dias Julio Tavares é chamado por seu nome completo pela tia do portão, na escola, quando seu pai vai buscá-lo. No auge de seus três anos, ele obviamente ainda não sabe escrever, mas ao ouvir seu nome, pára toda a brincadeira, pega a lancheirinha e vai para o portão, em retorno à sua casa. Ele também não sabe ainda, mas seu pai biológico, com quem nunca teve contato, através de uma ação jurídica de reconhecimento de paternidade, quer retirar-lhe o Tavares e substituí-lo por Monteiro.

Todo mundo tem nome, sobrenome, às vezes apelido. Até que se resolva freqüentar o divã de um analista, poucas vezes pensamos sobre o nome que temos, o que significa carregá-lo. O próprio Lacan adverte: “vocês tem sempre que prestar atenção em como se chama seu paciente. Nunca é indiferente” (Lacan, 1961-1962, p. 81).

Sabemos que “fundamentalmente ninguém pode levar um nome sem ter sido nomeado por outro. O ato de nomear permite que a criança entre na ordem das relações humanas. Ter, possuir, levar um nome, significa adquirir um lugar no sistema simbólico. Ninguém escapa da assinatura de um nome próprio” (Tesone, 2009, p. 142)

Paula Santana Sato, com seus olhinhos puxados e seus 5 anos completos, me contou sua história: “furei meu dedinho porque ele está gordinho. Nesse dia o meu pai estava lá no hospital, mas me confundiu, eu falei ‘oi’ para ele, mas ele achou que eu fosse sua prima, porque ele disse ‘eu não sou seu pai’. O dedinho gordo é culpa da ansiedade, Paula come desde o dia em que a intimação para realização de exame de DNA, através de um processo de negação de paternidade, pode retirar desta criança o sobrenome de seu pai, já que de sua memória e de sua construção fantasmática o pai não sai, mesmo sem vê-lo há mais de 3 anos.

A nomeação, como ato de reconhecimento, está indissoluvelmente ligada à função simbólica do parentesco” (Tesone, 2009, p.143). O nome marca o mundo simbólico, cava-lhe um buraco que antecede e antecipa o parletre, lhe confere um lugar que só-depois ele poderá ocupar, rejeitar, aceitar ou ceder, mas com o qual certeiramente há de esbarrar. Dado o ato de reconhecimento, dado o nome, é possível retirá-lo?

Quando pergunto a um menininho de 4 anos sobre o nome que tem, ele afirma: meu nome é João Paulo Soares. Soares é o sobrenome da família que cuida dele desde que tinha 6 meses de idade. Esta família quer adotá-lo. Ele já a adotou faz tempo. Mas a família Soares está judicialmente impedida de filiar João Paulo da Silva, seu nome de registro. A mãe que lhe deu a vida o coloca diante de uma morte simbólica, ao requerer o retorno da criança para a casa dela. “Eu já tenho mãe e pai, meu nome e o meu time”, diz a criança à sua mãe biológica, no momento de uma visita monitorada, dispositivo criado pela justiça para a aproximação de vínculos rompidos.

Não é meu propósito abordar sobre as questões jurídicas, que nos conduziria por outros caminhos. Se cito trechos advindos deste campo é porque eles nos impõe reflexões acerca do ato de nomear: o que significa portar um nome? O que pode significar, para uma criança pequena em plena estruturação psíquica, sofrer alteração no sobrenome, marca de seu pertencimento familiar?

Quando iniciamos o estudo sobre o seminário 9 de Lacan, intitulado Identificação, o que me movia era uma curiosidade sobre o conceito de traço unário, algo que me assusta e me fascina, e ainda não sei bem o porquê. Muitas vezes, muitas vezes mesmo, essa palavra “traço unário” me fazia abrir os ouvidos e ao mesmo tempo me fechar para o entendimento dela. No decorrer deste trabalho de cartel fui me apropriando, de um jeito que não tinha conseguido antes, sobre este conceito. Ao longo do seminário, Lacan articula o traço unário ao nome próprio, e me aproximar desta articulação é o que tentarei transmitir a vocês, e é o que também me fez pensar sobre a função dos nomes e sobrenomes enquanto marcas distintivas, aquilo que para Lacan é o mais próprio da identificação.

É que o traço unário demarca uma possibilidade de contagem das diferenças e serve de referencial simbólico para o significante. O traço unário não é o significante, mas a base, o fundamento para o seu nascimento. É o traço unário que vai permitir que a inscrição do significante possa denotar uma diferença no real.

Lacan salienta que a inscrição significante ocorre em três tempos, e o traço unário seria o primeiro deles: a marca indelével, que por si só não diz nada, mas que sem ela não há como se dizer. O traço unário marca a experiência por não mais estar ali, é como apagar aquela pista que você não quer deixar, o pé ante pé de quem chega as 5 da manhã de uma balada e não quer ser visto, registra, por não estar lá, o que só-depois poderá ser dito.

Seguindo este raciocínio, o nome próprio é comparável ao traço unário por anteceder o sujeito, inscreve-o no mundo simbólico antes mesmo de sua existência, tal qual o traço inscreve a experiência antes mesmo que ela possa ser dita. Além disso, o nome é a marca da unidade e também da diferença, traz consigo o registro da ordem e da pertença familiar, ainda que não a garanta é a base para tal. E também – sua função é binária – o nome  permite que o sujeito seja contado como um, repetidas vezes, a cada vez que responder pelo seu nome. No portão da escola, será que Julio Tavares poderá responder por Monteiro?

E porque repete, é importante pensarmos que, no campo do registro, importa mais a escrita; o que faz o nome próprio ser diferente dos outros significantes é que seu suporte é menos o fonema que a letra. Com Lacan sabemos que a existência de um significante só se torna possível na relação com outro significante, uma vez que ele não comporta em si nada que possa atribuir-lhe uma identidade. É por sua negatividade, por oposição, portanto, que um significante se define. Já a letra é designada por Lacan como a “essência do significante, meio através do qual ele se distingue do signo” (1961-1962, p. 83).

Assim, o traço unário demarca uma possibilidade de contagem das diferenças e serve de referencial simbólico para o significante, que passa a ser entendido como tudo aquilo que, na fala do sujeito, pode ser contado como um.

O que podemos extrair do seminário sobre a identificação é que o nome próprio é um significante que funciona como traço unário. Diferente dos outros significantes, cuja função é de representação, o nome próprio possui uma função distintiva, através da qual o sujeito poderá contar a si mesmo, reconhecer-se como um.

Dadas essas considerações, pode-se pensar que não é sem conseqüências para uma criança que seu nome seja alterado, que o sobrenome que comporta sua história familiar seja trocado ou retirado. Comprometimentos na transmissão do desejo, na nomeação paterna, nos enlaces que encadeiam amor, desejo e gozo, sintomas no corpo, muita ansiedade. De qualquer modo, fazer o próprio nome é tarefa de cada um, artesanal e única.

 

Autora: Josani Campos 

Referências Bibliográficas

LACAN, J. A identificação: seminário 1961 – 1962; tradução: Ivan Corrêa e Marcos Bagno – Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2011.

TESONE, J. E. Inscrições transgeracionais no nome próprio. In: Jornal de Psicanálise, São Paulo, 42 (76): 137-157, jun. 2009.

O Sujeito e Sua Escrita Através do Sinthoma

Primeiramente gostaria de dizer algumas palavras sobre a importância do presente trabalho para mim. É um trabalho que é fruto dos efeitos do generoso ensino dessa importante figura no cenário psicanalítico, Aurélio Souza, que está aqui nos escutando e nos prestigiando; mas, sobretudo, este trabalho que compartilho com vocês, hoje, testemunha o entusiasmo que se renova a cada texto e seminário lido e, principalmente, testemunha a renovação do meu desejo de acolher o sofrimento
de nossos pacientes.

Acolher o sofrimento alheio a partir de uma posição que para mim é nova, mas que trouxe efeitos que acredito que favorecem a minha sustentação do desejo do analista. Trata-se de uma posição que faz da psicanálise lacaniana uma prática respeitosa, acolhedora e que tolera as manifestações sintomáticas e dificuldades de nossos pacientes, uma vez que pode ser o melhor que o sujeito pode ter naquele momento. Enfim, podemos fazer dela uma prática suave. Mas vejam bem, não confundamos tudo isso o que disse. Conduzir uma análise ou deitar no divã não é, de maneira alguma, algo fácil. Muito ao contrário, todos sabem da dificuldade que é isso!

Para ilustrar o que estou dizendo e marcar a diferença entre a “velha escuta” (porque eu utilizava) e uma “nova escuta” vou contar uma anedota sem mencionar nomes. Certo dia estava lendo, com interesse e entusiasmo, um texto de um psicanalista de renome. Ao descrever um caso, disse que seu paciente, em certa sessão, estava enchendo linguiça e o que dizia era somente para agradá-lo. Fazia associações que não eram associações, mas falas vazias. Neste exato momento simplesmente perdi todo o interesse sobre seu texto. No entanto, quem aqui já não pensou isso de nossos pacientes: “esta sessão não rendeu; o paciente não trouxe nada de novo; só se defendeu e resistiu; etc.”. Confesso que já fiz dessa forma e por isso acho importante compartilhar algumas questões que surgiram a partir do texto citado: o que dava ao suposto psicanalista o direito de supor que o que o seu paciente dizia era uma fala vazia destituída de verdade? A partir do quê, de quais referências, que podia fazer tal afirmação de que seu paciente estava enchendo linguiça?

Depois de ter começado a me aproximar das formulações lacanianas que irei apresentar hoje, vi a extensão e compreendi a potência da recomendação que Aurélio faz para todos os seus pacientes, que é: “Tudo o que disser em análise, eu acredito; isto é, o tomo como Verdade”. Esta recomendação que faz Aurélio para seus pacientes vai na contramão do modelo clínico do psicanalista citado, pois este modelo – do psicanalista da anedota – parte de um suposto de que existe uma Verdade inconsciente que o ego recalca e cuja função do analista é encontrar a tal Verdade. Portanto, a Verdade estaria no interior e o analista deve, a partir do exterior, arrancar tal Verdade. O analisante mente e o analista é responsável por retirar, arrancar, encontrar a verdade do paciente através dos atos falhos, dos sonhos, dos chistes, etc. Este, para mim, é o velho modelo.

Pois bem, é justamente sobre um fazer analítico que meu trabalho versa e que vai de encontro com esta recomendação que Aurélio faz para seus pacientes, que coloca a verdade não como algo que deve ser encontrada, e sim como construída. E foi pensando nesta ideia de construção que pensei o título do meu trabalho: “O Sujeito e sua Escrita através do Sinthoma”. Quando o pensei, intentei jogar com um duplo sentido, com um equívoco. Deste título, podemos depreender dois significados: 1) de que o sujeito escreve algo através do sinthoma; ou 2) o sujeito se escreve, se constrói, através da escrita do sinthoma. Optei, então, pela segunda acepção. Neste sentido, se produz uma frase incômoda, uma vez que a tendência, para aqueles que não têm intimidade com o tema, seria pensar que para que haja escrita é necessário a existência prévia de um sujeito. A segunda acepção do título afirma justamente o contrário, de que o sujeito surge na medida mesma em que começa a escrever o sinthoma, isto é, se produz simultaneamente ao ato de escrever.

Para aclarar, faço uma comparação entre dois modos de se pensar o sujeito que está em Lacan. No Seminário 11, por exemplo, o sujeito é o que está entre dois significantes. Sua principal característica é a de ser evanescente e obedecer uma pulsação temporal. No entanto, no Seminário 23, Lacan afirma que há sujeito quando ocorre um ato de fala que se propõe a construir uma verdade, através da escrita do sinthoma (p. 31).

Sinthoma, aqui, é com th. É uma forma de escrita antiga que Lacan utilizou no seminário 23 para aludir a um elemento que faz junção, que enoda a cadeia borromeana, enlaçando Real, Simbólico e Imaginário. Aqui já lhes adianto que existe uma divergência entre os psicanalistas sobre este conceito. Alguns acreditam que o sinthoma serviria apenas para os casos de psicoses; e outros acreditam que o quarto nó, que é o sinthoma, está presente em todos os sujeitos pois se trata de um elemento singularizador, isto é, que regula o  funcionamento de cada um. Neste sentido, então, acabaríamos de vez com a ideia de que existe a tão famigerada ideia de estruturas clínicas estanques e permanentes. Há, ao invés disso, modos de funcionamentos do sujeito (psicótico, neurótico e perverso) que são efeitos de um enodamento através do sinthoma.

Tenho razões para acreditar, a partir da leitura do seminário, que o sinthoma está presente em todos os sujeitos, e não somente em psicoses, e que é passível de sofrer deslocamentos, ser reescrito a todo o momento em que o sujeito se coloca a falar. Lacan, ao mostrar como se opera na escuta jogando com a homofonia, com as partículas das frases, com as letras, faz a seguinte afirmação: “temos apenas o equívoco como arma contra o sinthoma” (p. 18). Isto nos leva a pensar que existe um sinthoma, anterior, que regula o funcionamento do sujeito, mas que com a análise podemos operar deslocamentos através dos equívocos produzidos pelo paciente reorganizando a cadeia borromeana.

Ademais, Lacan afirma, também, que o sinthoma é uma pai-versão. Isto é, uma versão construída do pai que organiza o funcionamento do sujeito, pois, como vimos, faz a amarra entre as 3 cordas: Real; Simbólico; e Imaginário. Lacan, portanto, diz que a análise permite, através dos equívocos, reescrever novas versões do pai para reorganizar a estrutura do sujeito; o que pode resultar em menos sofrimento. Gostaria de frisar, mais uma vez, que a partir desta leitura, deste modelo teórico, fica insustentável a ideia da divisão das estruturas clínicas (neurose, psicose e perversão) como organizações subjetivas estanques; fixas e eternizadas. Pois, neste modelo teórico, por exemplo, a forclusão do nome-do-pai se trata apenas de uma versão do pai escrita pelo sujeito, que produz efeitos psicóticos. Assim, o sujeito poderia reescrever uma nova versão do pai, um novo sinthoma, que pudesse sair dessa posição psicótica. Portanto, o sujeito não é mais vítima do Outro. O sujeito passa a ser
responsável por seu sofrimento pois é de sua responsabilidade a organização e o enodamento da cadeia borromeana através da escrita do sinthoma.

Um outro ponto que está contemplado no meu título e que foi apenas abordado tangencialmente até aqui, é o termo escrita. Isto é fundamental para se pensar este outro modelo de clínica que não é mais pela via do significante e do significado e sim pela via da letra, do fonema, do som, da polifonia. A impressão que tive do seminário 23, após este cartel, é que a tônica está nesta temática da escrita e não de Joyce. Joyce é apenas o suporte para Lacan sustentar este modelo clínico que não é mais da ordem da escuta e sim da leitura. Portanto, o analista não escuta, mas lê. Muitos leitores deste seminário ficam tão presos à discussão se Joyce era ou não era psicótico, se o sinthoma faz ou não faz suplência, que  deixam escapar algo que insiste em aparecer em quase todas as páginas, que é a fundamentação e ilustração de um outro modelo clínico: a passagem do significante para a letra.

Após o término do Cartel, nos momentos em que ainda estava saboreando todos os enigmas que contemplam o seminário 23, vinha sempre a pergunta: “Por que Joyce?”. “Por que Joyce fisgou tanto Lacan?”. Por enquanto, a resposta que encontrei é a que compartilho hoje com vocês: que Joyce apenas ilustra o conceito de escrita e leitura em psicanálise. Acredito que Lacan encontra em Joyce o suporte daquilo que o analista deve fazer em análise, que é transformar significantes (a fala do paciente) em letras, em escrita. Isto não significa que o analista deva ficar com papel e lápis na mão escrevendo a fala do paciente, e sim de poder pensar que os significantes e as palavras são, em análise, um aglomerado de letras que produzem sons. Está ai, talvez, o encantamento de Lacan por Joyce, pois Joyce faz exatamente isso: subverte toda regra gramatical e faz dos significantes apenas aglomerados de letras que emitem sons, que podem ou não ter sentido. Para ilustrar essa ideia, que é totalmente abstrata, me apoio em Joyce para dar um pouco de concretude a essa proposta de transformar significantes em aglomerados de letras. Vou ler uma citação de Joyce e escutem a minha fala:

rolarrioanna e passa por Nossenhora d”Ohmem’s, roçando a praia, beirando ABahia, reconduz-nos por cominhos recorrentes de Vico ao de Howth Castelo Earredores”.
rolarrioanna (rola; rolar; lar; larri; lá, ri; rio; riu; riu Ana; ã? na…?; etc.)

Enquanto eu lia para vocês essa citação de Finnegans Wake de Joyce, certamente um sentido foi produzido através dos sons emitidos, pois ainda estava no plano do significante, portanto da escuta. Mas agora, quando projeto essa citação e todos são capazes de ler o que estava escrito, podem perceber que alguns significantes são apenas aglomerados de letras que emitem sons destituídos de um referido significado. Portanto, seria exatamente esta manobra que deve ser feita na análise quando se propõe fazer a passagem de uma escuta da fala para uma leitura das letras do analisante.

Neste sentido, então, não são os significados dos significantes que afetam o analisante. O que passa a afeta-lo é o som que as letras são capazes de produzir e que fazem eco no sujeito. Quando estes ecos são produzidos é que podemos considerar que tocamos em pontas de real. E a partir desses ecos é que permitimos ao analisante ir rescrevendo um novo sinthoma que possa regular seu sofrimento.

Para finalizar, cito um trecho de Lacan que está na página 93: “é por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é caso de se livrar do parasita falador de que lhes faleis há pouco ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala”.

 

Autor: Edinei Hideki Suzuki

Angústia e estrutura do sujeito

Este trabalho é fruto de um cartel, que durou dois anos, e que se dedicou a estudar o Seminário 10 – A Angústia. Portanto, é uma leitura da psicanálise anterior a chegada da cadeia borromeana, mas que contribui, imensamente, para pensarmos sobre o estatuto do objeto a e sobre a ideia que Aurélio apresentou sobre o conceito de gozo e real. Já advirto que este seminário não é o ponto final do conceito de angústia, mas o começo. Sabemos que até o seminário RSI este conceito sofre algumas modificações. Mas pelo que li até agora, pude perceber que uma das diferenças entre o conceito de angústia deste seminário e do seminário 22 é que neste seminário a angústia está atrelada ao Outro, e no seminário 22 está atrelada a dimensão do registro do real, portanto do gozo. Só por este fato, o estudo do seminário já se justifica, uma vez que para começar a compreender esta difícil noção de gozo, penso que é necessário compreender o desenvolvimento que Lacan começa a fazer sobre o objeto a, neste seminário.

A minha proposta é discutir uma ideia que é colocada por Lacan que faz, ao longo do seminário, uma aproximação entre a estrutura do fantasma e a estrutura da angústia. Para deixar indicado o caminho que percorrerei no meu trabalho, apresento a questão que me fiz, que é a seguinte: sendo a estrutura do fantasma a mesma da angústia, o que opera a passagem de uma para outra? Isto é, por que a estrutura do fantasma afeta o sujeito de uma forma e a da angústia de outra se se tratam de uma mesma estrutura?

Para começar a responder essas questões, parto do ponto em que Lacan apresenta o quadro de divisão do sujeito. Neste quadro, Lacan vai fundamentar a lógica que organiza alguns elementos de sua álgebra – seu sistema formal de letras, que muitos chamam de álgebra lacaniana.  O que podemos visualizar nesse quadro de divisão é a lógica que sustenta um dos pilares fundamentais do seminário que é: entre o sujeito e o Outro não existe uma medida comum, pois sempre resultará em um resto desse processo de divisão. É como se tentássemos dividir 7 por 6. O 6 sendo o divisor e o 7 o dividendo. Desta divisão, 7 dividido por 6, o resultado, o quociente, é 1,1666… e sempre terão dois restos: 1 e o 4. Este último sendo permanente. Sabemos, pois, que a este resto permanente Lacan vai identificar o objeto a. Mas, além do objeto a, outros elementos são decantados desse cálculo. Se fizermos toda leitura do processo divisão do sujeito, ficaria da seguinte forma: quantas vezes o sujeito (divisor) cabe no Outro (dividendo)? A resposta deste cálculo, o quociente obtido, seria: (A/). Isto é, o sujeito cabe no Outro quantas vezes for possível desde que o Outro seja faltante, seja barrado. O primeiro resto desta divisão seria a marca do Outro como desejante ($) e o segundo resto, o permanente, seria o “a”. A partir deste Seminário, Lacan vai passar a chamar este objeto a, resto do processo de divisão do sujeito, como objeto causa do desejo. Portanto o objeto a nunca poderia ser considerado um objeto da realidade, da consciência, do sujeito. Ele não é o alvo, mas é causa, é motor do desejo. O alvo do desejo é o objeto recoberto pelo imaginário. Assim, o objeto a seria o número que indica que para que exista um sujeito desejante, não deve haver encaixe perfeito entre o sujeito e o Outro. 

Gostaria de ressaltar que este cálculo proposto por Lacan não segue a risca as normas matemáticas, pois não se trata de matemática, e sim de um sistema formal denominado álgebra lacaniana.

Pois bem, a partir deste cálculo, como pensar a estrutura do fantasma e da angústia? Sobre a estrutura do fantasma, Lacan é categórico em dizer que está do lado do Outro. Isto nos faz pensar que se a montagem do fantasma está do lado do Outro, cabe ao sujeito responder a este fantasma. Penso que aqui acontece o que Lacan disse, neste seminário, da criação, por parte do sujeito, de uma falsa demanda. Falsa demanda não no sentido de que seja algo inexistente; mas de que seja algo construído pelo sujeito, uma demanda suposta, uma vez que o fantasma está do lado do Outro. Portanto, o sujeito constrói uma suposta demanda no Outro que tenta responder a partir de um ideal imaginando que de alguma maneira este feito pode ser alcançado. Não consegue alcançar porque não é suficientemente capaz e competente de fazê-lo. Outras pessoas conseguem, menos ele. É assim que o campo sintomático está, então, colocado e organizado. Tenta-se, a partir de um recurso imaginário, obturar a falta do Outro, anular o (A/). Lacan vai dizer que o sujeito veste imaginariamente o objeto a para responder a esta estrutura fantasmática com o único objetivo de não se a ver com a falta do Outro.

Agora falarei um pouco da estrutura da angústia para tentarmos trabalhar a afirmação de Lacan de que a estrutura do fantasma é a mesma da angústia. Lacan, em vários momentos, diz que a  angústia é um afeto que surge quando falta a falta. Isto é, quando a falta do Outro (A/) pode desaparecer é que o afeto da angústia aparece como um sinal. Vai afirmar, em vários pontos do seminário, que a angústia surge quando algo que deveria ficar oculto, aparece. Articula este algo que aparece e que produz angústia com o objeto a. Se retomarmos o cálculo da divisão do sujeito para tentar ilustrar essa ideia, é como se por algum acidente o cálculo 7 dividido por 6 desse um resultado exato, sem resto, o que indicaria um encaixe perfeito entre divisor e dividendo, entre o sujeito e o Outro. Isto, como vimos, implicaria numa anulação total do (A/) e o Outro não seria faltante e nem desejante, consequentemente tampouco o sujeito.

No entanto, penso que temos de pensar sobre essa ideia de aparição do objeto a. Aparece onde e como? Uma vez que é um objeto totalmente abstrato, pensado a partir de um cálculo lógico que não corresponde com a realidade concreta. Inclusive, para não deixar dúvidas de que esse objeto a não participa de nossa realidade concreta, Lacan vai dizê-lo a partir de figuras topológicas. Bom, penso que é importante abrir um parênteses aqui. Quando estou dizendo sujeito e Outro não estou falando de seres concretos, pois não se trata, como Lacan já nos advertiu, de uma ontologia. É importante ressaltar que quando digo “lado do Outro” e “lado do sujeito” não se trata de dois entes, por exemplo, a mãe e o bebê ou a criança. Ao contrário disso, trata-se de dois lugares lógicos e totalmente abstratos que respeitam as leis da álgebra lacaniana e que nos servem para pensar a estrutura do sujeito; no meu trabalho, por exemplo, a estrutura do fantasma e da angústia. Penso, inclusive, que seja por isso que Lacan utiliza o recurso matemático para falar disso. Para nos advertir que, ao teorizarmos, não devemos nos apoiar, demasiadamente, em entes, em pessoas, para que não façamos da psicanálise uma ontologia.

Fechando o parênteses e retomando a estrutura da angústia. A partir do texto de Lacan é afirmado que a angústia surge não pela aparição do objeto a para o sujeito, mas, ao invés disso, surge quando o sujeito se depara com a aparição daquele que evoca o objeto a, portanto o Outro em sua dimensão devoradora e enigmática. Se pensarmos no caso do Homem dos Lobos e nos interrogarmos o porquê do sonho dos lobos ter produzido tamanha angústia, podemos chegar à conclusão de que os lobos trepados na nogueira, enquanto elementos que apareceram para o paciente de Freud, não eram o objeto a. Ao contrário disso, podemos pensar que os lobos representavam aquele que evoca o objeto através do paciente de Freud. Assim, a angústia sinal surge quando o objeto aparece e o sujeito está identificado a ele, ao objeto a. No caso do Homem dos Lobos, ele estava identificado ao objeto a olhar – relacionado à pulsão escópica.

Se considerarmos, juntamente com Lacan, que o objeto a corresponde ao que Freud chamou de objeto parcial da pulsão, talvez possamos pensar na principal diferença entre a estrutura do fantasma e da angústia. Na estrutura do fantasma, mesmo que o sujeito se coloque como um objeto que tenta tamponar a falta do Outro, este objeto está vestido imaginariamente com o brilho narcísico de um suposto ideal. Por outro lado, se pensarmos na estrutura da angústia, o objeto que aparece é o objeto pulsional sem a vestimenta imaginária, portanto totalmente fragmentado. O sujeito estaria identificado ao objeto pulsional oral, anal, escópico ou invocante. Objetos de exclusivo domínio do Outro que teriam propriedades de ser uma merda, dejeto, fétido, mastigado, invadido, destruído, dentre outros.

Outra diferença importante entre a estrutura do fantasma e a estrutura da angústia diz respeito aos efeitos que cada estrutura produz. A estrutura do fantasma, como dissemos, tem prioridade de organizar o campo sintomático do sujeito. Portanto, de estar enredado numa falsa demanda, construída pelo próprio sujeito, e que o faz sofrer. Por outro lado, os efeitos da estrutura da angústia atentam muito mais contra a vida do sujeito, podendo levar ao suicídio ou a atuações que causem danos graves e irreversíveis ao sujeito. Para não chegar a angústia, o sujeito tem dois recursos: a passagem a ato e o acting-out. A passagem a ato sendo o recurso mais radical, em que o sujeito se precipita para fora da cena para sair dessa identificação maciça com o objeto a pulsional; e o acting-out sendo um recurso que o sujeito tem para solicitar uma intervenção do analista para que o retire dessa identificação. É uma mostração dirigida ao analista, que está na mira transferencial, em que se pede uma intervenção que possa resgatar os recursos simbólicos e imaginários.

Para encerrar e ilustrar essa ideia de acting-out como efeito da angústia, apresento um fragmento de caso, que alguns já conhecem pois trabalhei num contexto mais íntimo e privado. Trata-se de um caso encerrado e antigo de uma adolescente. Foi levada com a queixa de que tinha sérios problemas com o cumprimento das regras na escola. Era agressiva, desrespeitava todas as figuras de autoridade, mas o que mobilizou os pais foi o fato de que começou a roubar os colegas e a escola. Era uma filha adotada e naquele momento os pais diziam que estavam pensando que sua filha não teria mais jeito, que ela era assim mesmo e que só lhes restaria assistir, passivamente, o terrível futuro que estava reservado a ela. Atribuíam essas características aos pais biológicos. A filha, segundo eles, tinha herdado os genes ruins dos pais. A paciente não gostava de falar sobre a adoção. Talvez, o que fosse insuportável para ela era saber que foi “abandonada” pelos pais, uma vez que tinha irmãos biológicos dos mesmos pais e que não foram retirados e nem dados para adoção. Pois bem, quando a adolescente  chega até mim, tudo acontece sem a menor dificuldade. Brinca, fala, interage, tudo aparentemente bem. Responde docilmente a minha demanda. Percebam aqui a estrutura do fantasma e o lugar de não analista que ocupo. Se demando tudo isso, vacilo de meu lugar presença de analista. Mas, de repente, começa a se tornar agressiva, inquieta e começa a estragar os brinquedos que trazia ou que tinha em minha sala. Arremessava os brinquedos na parede e, sem querer querendo, acertava em mim. Neste período fico sabendo, através dos pais, que estes decidem seguir suas vidas e, consequentemente, deixar que a filha se vire – isso apenas com 13 anos! Deixa a filha morando com a irmã mais velha e alugam um apartamento para os dois. Logo em seguida a adolescente não aparece mais nas sessões e nunca mais a vejo. Muito tempo depois repensei este caso; para ser mais preciso, quando comecei a estudar o seminário 10. Penso que, talvez, essas destruições dos brinquedos era um acting-out, em transferência, para me mostrar a identificação que estava fazendo com esses objetos estragados, quebrados, destruídos, merdificados, que só lhes restariam a lixeira como destino. Afinal, mais uma vez estava sendo dejetada pelos pais. Talvez, se pudesse ter feito alguma intervenção neste momento, a história poderia ter sido outra; ela poderia ter conseguido se afastar dessa identificação com o objeto pulsional e poder falar, simbolizar, como era para ela ter uma história em que se sentia como um objeto quebrado, estragado, que só lhe restava o abandono, o lixo. Acredito, também, que boa parte desta elevação do nível de angústia era de minha responsabilidade, por demandar excessivamente que falasse, que brincasse, que cumprisse o protocolo. Penso que por não ter podido ocupar a função de analista, ocupei o lugar daquele que evoca o objeto – o Outro da angústia. O que lhe restou, como única alternativa, foi deixar-se cair da sessão, precipitar-se para fora da cena que estava identificada ao objeto pulsional.

 

Autor: Edinei Hideki Suzuki

Considerações Sobre a Relação Entre a Angústia e o Desejo do Analista

Primeiramente gostaria delimitar a superfície por onde transitarei durante os 15 minutos que tenho disponível para apresentar minhas ideias. Estas ideias são, sobretudo, um testemunho do meu percurso na psicanálise, que está em formação, uma vez que é disso que se tratou em nossa Associação em 2013 e disso que se trata em nossa Jornada; refletir sobre a função e a formação do analista. Assim, tanto a Angústia como o Desejo do Analista são conceitos fundamentais para se pensar a formação e a função do analista.

É importante ressaltar que meu trabalho de hoje está sustentado pela noção de cura do primeiro movimento do Lacan. Sendo assim, está assentado sobre o conceito de Travessia do Fantasma, que, resumidamente, nada mais é do que fazer com que o analisante produza uma modificação no seu campo pulsional e fantasmático em análise e possa, com isso, ter minimamente uma liberdade com relação ao desejo do Outro. Este desejo do Outro na mesma medida em que é essencial para a constituição do psiquismo e do desejo é também condição de aprisionamento do sujeito ao pathos da experiência humana.Para desenvolver esse trabalho, parto então de dois seminários de Lacan: o Seminário 10 e o Seminário 11.

Feito essas considerações iniciais, começo citando uma ideia de Lacan contida no Seminário 11, que nos traz muitos elementos a serem trabalhados acerca do desejo do analista:

[…] se a transferência é o que, da pulsão, desvia a demanda, o desejo do
analista é aquilo que traz [a demanda] ali de volta [para a pulsão]. E por
essa via [de colocar a demanda em cena] ele [o analista] isola o a, o põe a
maior distância possível do I [identificação] que ele, o analista, é chamado
pelo sujeito a encarnar. É dessa idealização que o analista tem que tombar
para ser o suporte do a separador, na medida em que seu desejo [o do
analista]lhe permite, numa hipnose às avessas, encarnar, ele, o hipnotizado
(p. 258, Seminário 11).

Nesta pequena frase lida de Lacan, podemos isolar 2 partes:

       1. A transferência é o que da pulsão desvia a demanda e o desejo do analista é o que traz de volta a demanda para a pulsão.

Podemos entender neste pequeno trecho que esse momento em que se estabelece o amor transferencial num tratamento, o analistante se coloca numa posição de amado e o analista na posição de amante. Doce engano, mas elementar para a direção da cura. Sendo assim, deixemos nossos pacientes manifestarem esse dom do amor e pensarem que, em troca, os amamos. Esse amor transferencial é uma forma de o analistante evitar de se deparar com a falta do Outro, encarnado pela figura do analista, o que se traduz, de certo modo, em uma certa paralisação e inércia, pois a demanda está satisfeita Ex: o meu analista quer que eu fale disso, então falarei disso em troca de seu amor. Há, nesse exemplo uma suposta completude entre analisante e analista. Existe também nesse amor transferencial uma relação especular e mimética, em que o analista é colocado na posição de detentor do saber que dará os devidos direcionamentos para soluções do pathos do analisante.

Contudo, quando o analista exerce sua função e acede ao seu desejo, que é o desejo do analista, ele restitui a dimensão da demanda no tratamento, mas uma demanda de caráter enigmático que produz um efeito no analisante, o de não completude. Isto instala a seguinte questão no analisante: “Que queres de mim?” “Que queres que eu faça ou  fale?”. Isto produzirá movimento no tratamento, pois a tendência do analisante é tentar completar essa falta no Outro.   

      2. É dessa idealização que o analista tem que tombar / para ser o suporte do a separador, na medida em que seu desejo [o do analista] lhe permite, numa hipnose às avessas, encarnar, ele, o hipnotizado.

Ficou claro no início da frase que o analista não pode aceitar o lugar em que o analisante o reserva e deve, então, tombar dessa idealização. Quando o analista
consegue essa viragem no tratamento, se produz uma situação tragicômica, que é descrita por Lacan da seguinte forma: “Eu me dou a ti, mas esse dom de minha pessoa se transforma inexplicavelmente em presente de uma merda”.

Mas o restante da frase soa um tanto enigmática e é nela que vou articular o conceito de angústia. A frase seguinte diz que o analista deve ser o suporte do a separador e ser o hipnotizado ao invés do hipnotizador.

Vejam que aqui se coloca a questão da função do analista. E é neste momento em que aponto a relação da função do analista com a angústia. No momento preciso em que o analista deve suportar, com toda ambiguidade que esse significante carrega, fazer semblante objeto causa do desejo na direção da cura. Dessa maneira, o analista deve ser o suporte desse objeto sendo, nas palavras de Lacan, o hipnotizado ao invés do hipnotizador. Mas para isso deve suportar abrir mão de sua posição de sujeito, o que o colocaria, ou o aproximaria, da posição de objeto, que como vimos no Seminário 10, é a forma que se deflagra a angústia. Lacan, no início do Seminário 10, afirma que é comum analistas em formação sentirem certa dose de angústia na condução de seus tratamentos e questiona se a angústia que sentimos como analistas é a mesma que a de nossos analisantes. Ao que tudo indica, até onde pudemos estudar sobre o conceito de  angústia no seminário 10, estou crente de que seja a mesma angústia, pois este é um afeto que não engana e está desprovido de adjetivos auxiliares, como por exemplo: angústia de morte, que é um conceito da outra psicanálise. Angústia para Lacan tem uma relação as avessas com a angústia de Freud, ao passo que para Lacan a angústia surge da vacilação da castração e não da castração, como Freud pensou em Inibição Sintoma e Angústia. Neste sentido Lacan aponta uma relação da angústia com o desejo do Outro, ou melhor, com a identificação maciça do sujeito em ser o objeto de gozo do Outro. Esta condição produziria o aniquilamento total do sujeito. Nesta via, em tempo de concluir, mesmo que seja uma conclusão apenas provisória, acredito que a angústia pode ser um dos maiores obstáculos que se impõe no caminho do analista para aceder ao seu desejo – o desejo do analista, uma vez que para isto é necessário aceitar abrir mão de seu gozo e fazer semblante do objeto, ou, como disse Lacan, como suporte do objeto para seu analisante.

Para poder ser o suporte do a e, sobretudo, suportar essa condição, é fundamental o trabalho da análise pessoal, uma vez que só através dela é que se pode encontrar recursos para modular a angústia, não eliminá-la, uma vez que com um fim de análise pode se produzir certa margem de liberdade com relação ao desejo do Outro e além disso, modificar a relação entre o sujeito e o Outro ao reorganizar seu campo pulsional e fantasmático.

 

Autor: Edinei Hideki Suzuki

O Sujeito do Desejo na Clínica Lacaniana 1

Primeiramente gostaria de agradecer a presença das pessoas que vieram aqui participar desse momento especial, que é de comemoração e não de inauguração, uma vez que já iniciamos, há algum tempo, os nossos trabalhos. Para comemorar, nada mais especial do que chamar a Zeila para participar deste momento, pois, para mim, é uma mestra, mestra que inaugurou a série de outros mestres que sobrevieram através de textos ou pessoalmente. E comemorar em companhia de pessoas que tenho tamanho apreço é muito importante; com quem estou junto desde o começo e outros que fui encontrando durante o meu percurso. Hoje, então, vamos comemorar trabalhando. A Marana e eu pensamos em trabalhar com a temática que já estamos trabalhando este ano que é: Amor, Desejo e Gozo. Portanto, vou apresentar minha parte, que é a do desejo.

Esta apresentação, visa lembrar, que não se trata de um seminário. Não tenho essa audaciosa pretensão. Ao invés disso, o que pretendo fazer é compartilhar e discutir algumas ideias que foram se forjando a partir de um trabalho que fiz ano passado sobre a temática da repetição, inconsciente e desejo. Todas essas discussões têm como pano de fundo o Seminário 11, a que se conjugam outros textos de Lacan. Pois bem, é isso que gostaria de discutir hoje com vocês. Vale lembrar que como estamos entre camaradas, de forma geral, penso que seria mais divertido se deixássemos as formalidades de lado e participássemos sem encanação.

Para disparar nossa discussão, que é sobre o desejo, faço a seguinte afirmação: o que Freud falou sobre desejo em sua obra tem muito pouco a ver com o que Lacan começa a desenvolver sobre o desejo, pelo menos naquilo que vejo no seminário 10 e se formaliza no seminário 11. Não posso dizer nada sobre os seminário anteriores pois os desconheço, mas me apoio em comentadores que afirmam que o desejo, antes da década de 60, ia mais no sentido hegeliano do termo, que é o desejo de reconhecimento. Ao falar isso, gostaria que não pensassem que faço um corte duro em torno dessas viradas epistemológicas da obra do Lacan. Ao contrário disso, começo a perceber que existem alguns fios que amarram as ideias e teorizações que Lacan foi desenvolvendo ao longo de sua vida. Talvez daqui alguns muitos anos eu consiga enxergar alguns desses fios.

Se Lacan está, de alguma forma, propondo uma virada na sua própria concepção de desejo, inconsciente e repetição, e propõe, declaradamente, uma diferença com o que Freud desenvolveu sobre o conceito de inconsciente, temos que nos esforçar para tentar entender qual é essa diferença. Penso que são, fundamentalmente, duas:

  1. O ics lacaniano é pontual e surge entre significantes em condição transferencial; e não abriga memórias cujo conteúdo é a perversão polimórfico perversa reprimida pela cultura. Não há memórias no ics lacaniano, não há desejos perversos ou de qualquer outra ordem.
  2. Lacan ao afirmar que a existência do ics depende da presença do analista propõe pensar a operação da análise calcada em outro plano, em outra dimensão. Cabe a nós fazermos um esforço para pescar as dicas que Lacan dá em sua obra sobre qual é essa dimensão. Já lhes adianto que vai utilizar o campo da física e matemática para isso. Vou trabalhar sobre estes dois pontos, mas, como disse anteriormente, não no sentido de um seminário, mas de convidá-los para uma conversa e ver onde isso pode dar.

Vou abordar o primeiro ponto que levantei. Ao contrário do que Freud acreditava, que podemos vislumbrar no trabalho sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, o ics lacaniano não é algo que possa existir fora da transferência. O ics lancaniano não é, também, esse modelo hidráulico proposto por Freud na Interpretação dos Sonhos, que abriga memórias cujo conteúdo são os elementos perversos polimórficos que são interditados pela cultura. Assim, para Lacan, não há um conteúdo no ics, não há o que temer do conteúdo ics, não há desejos no ics. O ics lacaniano não é, mas está.

O ics lacaniano opera segundo um princípio muito particular, que é a repetição-tychê. Portanto, só podemos apreender o ics quando está dentro de uma estrutura espaço-temporal delimitada por dois significantes: S1 e S2. Quando essa estrutura espaço-temporal surge dentro da análise é aí que o sujeito do desejo aparece. É o momento em que a estrutura do Outro se revela faltante (A/) e o seu objeto fálico, que comumente associamos ao bebê, cai de sua posição idealizada e investida libidinalmente. É o que Lacan pontuou como o momento da Separação, precedido pelo movimento de Alienação, onde se produz uma parte não simbolizada; resto permanente, duro, indivisível, do processo de divisão do sujeito; portanto, vertente real do objeto ‘a’. É a estrutura do desejo do Outro que se revela em sua vertente mais enigmática, aparição do sujeito desalienado da  demanda do Outro, ponto no qual carece de qualquer resposta pronta ao que supostamente falta ao Outro. Onde ocorre uma vacilação do saber e um desvelamento da verdade. Saber do quê? Saber sobre como responder ao que o Outro supostamente demanda – estrutura do fantasma vacila neste momento.

Nesta mesma via, gostaria de compartilhar algo com vocês. Se vocês voltarem ou irem para o Seminário 11, perceberão que as operações de Alienação e Separação não estão no começo do seminário, mas no fim. Coisa muito estranha e que não deve passar despercebida aos nossos olhos, uma vez que é justamente sobre o não-evidente que devemos nos atentar. É isso que a própria psicanálise nos ensina. Então me fiz a seguinte pergunta: por que esse tema não está no começo, mas no fim?Porque seria muito mais fácil se Lacan tivesse falado da estruturação do sujeito, da constituição do psiquismo das pessoas, a partir do vél da alienação e da teoria dos conjuntos para depois explicar o funcionamento do ics a partir da lógica da repetição. Falar de como as pessoas/sujeitos se constituem e formam seu psiquismo para depois falar em como operar em análise seria o procedimento mais lógico, mais coerente. Mas ele não faz assim. Então por quê?

A minha hipótese é que quando Lacan vai trabalhar o seminário 11 e vai formalizar essa ideia do sujeito do desejo entre significantes, ao abordar o vél da alienação ele não está falando de como as pessoas formam seu psiquismo ou de como ocorre a relação entre o bebê e sua mãe /cuidador e pai. Penso que ao invés disso ele está tentando formalizar uma estrutura que fundamente a sua proposta da repetição como um princípio do ics e que marca esse projeto de diferenciar o seu ics do ics freudiano.

Quando passei a entender o vél da alienação dessa forma, passei a compartilhar da mesma ideia de Aurélio de que a clínica do bebê é uma prática de extensão da psicanálise e não em intensão, pois fazemos uma correlação direta entre pais, os professores e a instituição escolar com o Outro, com o propósito de promover uma ortopedia da constituição do sujeito. Fazemos ontologia ao articularmos dessa forma. O sujeito, que só pode ser definido pelo verbo estar, nestes casos passa a ser definido pelo verbo ser. Isto, a meu ver, não é o que está propondo neste momento.

Vejamos o que Lacan diz em Ciência e a Verdade, texto que está nos Escritos, mas que é a primeira lição do seminário 12, portanto logo após de trabalhar com o vél da alienação: “Seja como for, afirmo que toda tentativa, ou mesmo tentação […] de encarnar ainda mais o sujeito é errância: sempre fecunda em erros e, como tal, incorreta” (p. 873). Nesta passagem ele estava justamente discutindo  sobre qual sujeito que operamos em análise. Desta maneira, o vél da alienação trata apenas do sujeito do desejo, do ics lacaniano, e não de um sujeito encarnado, isto é, de carne e osso. O vél da alienação ganha seu valor se pensarmos o sujeito definido pelo verbo estar e não pelo ser.

A repetição-tychê, que é produto da manobra do analista, aponta para esse momento de constituição do sujeito do desejo resultado da Separação. Divisão aguda entre saber e verdade, o que possibilita ao analisante se encontrar com a verdade de seu desejo – que é o furo, o Outro faltante (A/) – e assim algo de sua estrutura poder ser tocada, reescrita.

Pois bem, a partir disso surge a seguinte questão: se o que ele propõe desde o seminário 11, e continua nos seminários seguintes, não versa sobre o sujeito encarnado (pessoas de carne e osso), do que ele está falando quando fala da psicanálise em intensão?

É justamente aqui que adentro no meu segundo ponto que eu interrogava justamente qual é a dimensão do sujeito do ics se não deve ser representada pela pessoa de carne e osso. Lacan, no seminário 11, no momento em que está desenvolvendo seu conceito de ics, cita, em todas as lições, nomes de matemáticos e de Newton. A este último, especialmente, faz uma crítica à sua teoria da mecânica e começa a afirmar que a sua psicanálise em intensão deve ser reduzida a uma matemática que se debruça sobre o estudo de superfície, portanto a topologia. Este é um campo da matemática muito utilizado na mecânica quântica e na teoria da relatividade. Portanto, Lacan lia e estudava a filosofia da física, o que começo a acreditar que pesou bastante para se pensar, inclusive, a sua categoria de real.

Então qual é a dimensão do sujeito do ics de Lacan? É alguma dimensão definida pela física? Pela matemática? Penso que também não, apesar de que esses dois campos ajudam a pensar a dimensão do sujeito da psicanálise. Faz, pelo menos para mim, com que fique mais palpável a ideia de que existe uma estrutura do sujeito (tema que nos ocupamos no ano passado) que tem uma realidade paralela ao sujeito encarnado, mas que o afeta constantemente. Assim como existe uma 4ª dimensão que é definida pela mecânica quântica e interfere diretamente em nossa existência concreta e encarnada, existe, para a psicanálise, uma Outra dimensão, que podemos chamar de topológica, portanto de duas dimensões, que emerge na análise e sobre o qual o analista deve operar.

A intervenção do analista recai sobre essa superfície topológica. Autorizado pela transferência, as palavras, os sons, as letras que saem da boca do paciente devem ser tomadas como elementos que dão consistência a essa Outra dimensão e constitui essa superfície topológica que  possibilita o trabalho do analista. Neste caso do sujeito do desejo, estou fazendo referência à banda de moebius. Lacan fala o seminário 11 inteiro, de forma muitas vezes implícita, sobre a banda de moebiu e continua no seminário 12.

Vejam por exemplo, quando Lacan fala em mau-encontro da Tychê, de corte, ou mesmo a celebre frase: ali onde se estava, deve o sujeito advir. Vejam que nestes termos, mas sobretudo nesta última expressão, está em jogo essa formalização dessa dimensão espaço-temporal delimitada entre dois elementos, que podemos pensar S1 e S2.. Penso que estas coisas devem ser pensadas na banda de moebius. Todas essas expressões fazem alusão ao momento de aparição do sujeito do desejo, momento este que corresponde ao momento, preciso, em que o último corte sobre a banda se encontra com o primeiro corte, fazendo com que seja aberta. É neste momento de abertura (vejam que este termo também é utilizado por Lacan) da banda que se produz uma divisão experimentada entre saber e verdade, e que a partir daí pode acontecer uma mudança na estrutura do sujeito, que pode ou não afetar o sujeito encarnado.

Operamos sobre essa estrutura da topologia lacaniana, na certeza de que isso afetará o sujeito. Certeza que extraímos de nossa própria análise e dos estranhos efeitos que colhemos do processo analítico. Não há outra maneira de acreditarmos em nosso fazer analítico, que é totalmente insano, como espero ter demonstrado aqui, que não seja passando pela experiência.

 

Autor: Edinei Hideki Suzuki

 

1Texto apresentado num evento comemorativo.