Sexo, Sexualidade e Sexuação

A partir da tríade amor, desejo e gozo sobre a qual trabalhamos neste ano na ALPL, elegi como título do texto de conclusão de cartel uma nova tríade: sexo, sexualidade e sexuação. Pretendo fazer um breve percurso sobre cada uma das tríades a fim de produzir uma articulação entre ambas, focando na importância dessa relação para o processo de sexuação. Ao longo do estudo do seminário 20, destacou-se para mim a proposição de Lacan sobre o que ele denomina sexuação. Tal interesse foi ganhando corpo em função de questões encontradas na prática clínica, em especial nos mais variados impasses frente às posições de homem e de mulher. Por fim, o recorte mais preciso da temática e a escolha do título se deram a partir de uma interlocução com a psicanalista argentina Alba Flesler.

AMOR, DESEJO E GOZO

Quando, seguindo Lacan, localizamos amor, desejo e gozo na cadeia borromeana, fica estabelecido que eles sofrem os efeitos das propriedades desta estrutura. Com a cadeia borromeana, real, simbólico e imaginário passam a ter o mesmo valor e operam de forma enlaçada e de maneira que essas dimensões fazem limites entre si. Portanto, ao situarmos a tríade em questão nessa estrutura borromeana, está proposto pensar amor, desejo e gozo também de forma enlaçada; não considerar uma hierarquia ou ordem valorativa entre eles e também reconhecer que cada um desses campos faz limite, faz borda aos demais. Com a cadeia borromeana, sabemos que quando uma dimensão não se delimita bem em relação à outra, temos excessos, invasões de um registro sobre o outro e, consequentemente, as nossas conhecidas manifestações clínicas. Seguindo a mesma lógica operatória, uma vez que amor, desejo e gozo estão localizados na estrutura borromeana, podemos ter falhas na delimitação de seus campos com a produção de excessos e invasões que ocasionem efeitos, digamos, de um certo descompasso ou um maior desarranjo entre os três campos, com consequências desagradáveis e complicadas. Vejamos alguns exemplos.

Certa vez uma mulher disse com toda a sinceridade e sem metáforas que havia pensado em congelar seu bebê, pois não sabia como fazê-lo parar de chorar. Era atormentada pelo medo de que a criança morresse e alternava tempos de cuidados maciços e excessivos com esquecimentos e descuidos. Poucos anos depois a criança morreu com um diagnóstico impreciso. O apetite devorador do gozo em cena dirigido à criança não pode ser freado pelo amor e/ou pelo desejo.

Não é raro ouvir jovens dizerem-se sem gosto por nada, muitas vezes deslizam metonimicamente da uma escolha de curso a outra, de um ficante a outro, de um estilo a outro, de uma droga a outra. Outras vezes, talvez para se defenderem da corrida desenfreada do desejo, sofrem de intensa inibição e apatia. Seus pais, ainda que amorosos e liberais (talvez permissivos), são tidos por esses jovenzinhos como distantes e não interessados por eles. Façam o que fizerem, acreditam não haver satisfação por parte dos pais, parece não haver quantum de gozo ou de amor suficientes para enlaçar o desejo de forma a refreá-lo.

Meu filho é tudo para mim; foi sempre tudo muito: muito amor, muita proteção; sempre foi uma criança frágil; eu só tenho minha filha na vida…
Essas e outras frases estão, com frequência, na fala de mães de crianças e adolescentes, nem sempre no sentido cronológico do termo, às vezes no sentido lógico também. Não é raro receber telefonemas de mães de jovens adultos para agendar horário para eles, momento em que falam algumas frases como as citadas. Uma delas chegou a ir pessoalmente ao meu consultório, para me conhecer, antes que o filho de mais de 20 anos fosse se consultar. Tudo isso por amor. Muito amor, só por amor. Sabemos como o amor como um fim em si mesmo é mortífero. Em geral, estes jovens se apresentam tímidos, desnorteados, dependentes, um tanto deprimidos e inibidos, atormentados com a sexualidade e incapazes de realizar escolhas e tomar decisões.

Feita a leitura sobre a primeira tríade, passo a alguns comentários sobre a segunda, e seguindo a indicação que Alba Flesler me deu na referida interlocução, destaco a importância de diferenciarmos e, ao mesmo tempo, relacionarmos sexo, sexualidade e sexuação. Sim, é necessário considerar os três termos e mesmo a relação entre eles, o conceito de sexuação estabelecido por Lacan não nega a existência, a importância e os efeitos do sexo e da sexualidade. E, na medida em que delineamos as diferenças e a relações entre tais termos, nos deparamos com a importância do enlace de amor, desejo e gozo no casal parental e em suas funções materna e paterna para o processo da sexuação.

O SEXO

O sexo é biológico, não há como desconhecer que nascemos portadores de um sexo anatômico, que mesmo não sendo o destino, não é sem consequências em nossa existência. As expectativas dos pais para o nascimento de uma criança certamente incluem o imaginário sobre seu sexo anatômico e junto com ele há uma série definições pré-estabelecidas por serem associadas àquele sexo: o nome próprio, as roupas, acessórios, brinquedos, cores e decoração do quarto, os comportamentos e desenvolvimento esperados(meninas são mais calmas, delicadas e afetuosas, os meninos mais agitados, arteiros e independentes; as meninas falam e andam mais cedo; meninos gostam de matemática e as meninas de português). Portanto, não é tão simples quando todo esse imaginário é construído para um sexo e é o outro que aparece no exame de ultrassom ou na nascimento da criança. Era uma vez um casal que esperava o nascimento de seu primogênito, nasceu uma menina que recebeu o nome de Sidiney. Ela tornou-se freira e adotou um nome feminino, nome de uma santa pouco conhecida e que em sua origem latina significa gozo, prazer, júbilo. Insisto, o sexo com o qual nascemos, o sexo biológico não é para nós o destino, ele não sela ou define uma posição de homem ou de mulher, mas está implicado no processo de produção dessas posições.

A SEXUALIDADE

Portanto, não sendo o sexo o destino, a sexualidade não é determinada pelas gônadas sexuais. A sexualidade vai se imprimindo num corpo que porta um sexo e é tomado pelo Outro como objeto de amor, de desejo e de gozo. Trata-se da erotização do Outro sobre esse corpo que porta um sexo. À medida que a criança é tomada alternativamente como tampão e como causa da falta no Outro, o tempo pode passar para que ela chegue ao que Freud chama de primeiro despertar sexual, quando é necessário que caia o véu da inteireza materna, um tempo provocador de angústia pelo abalo do imaginário de ser o falo da mamãe, e tempo prévio à possibilidade de não mais ser o falo, mas de poder tê-lo.

Mais à frente, é necessário haver por parte dos pais o reconhecimento e a autorização para crescer e se apropriar de um saber sobre seu sexo e sobre a sexualidade. No denominado segundo despertar sexual, o real do sexo e da diferença sexual é colocado em cena novamente, se deparar com o outro e seu corpo é agora um fato concreto, nem sempre fácil de abordar. Assim, esse tempo se caracteriza como um novo momento de angústia, agora também frente à sexuação, à redistribuição dos gozos, inclusive para que haja o enlace entre amor, desejo e gozo e ao encontro com o outro.

Havia uma mocinha muito curiosa e fascinada pelo funcionamento do corpo (o cérebro, os genes, os hormônios), e seu corpo correspondia a esse interesse de forma dolorosa: cólicas menstruais excessivas, dores de estômago, insônia, alergias e manchas na pele. Um dia, ela me perguntou: “você que é psicanalista, me diga, a sexualidade é assim tão importante nas nossas vidas?” Na verdade ela não demonstrava dúvidas quanto a isso, o difícil estava em como responder à importância da sexualidade e da sexuação.

Observo que o corpo portador de um sexo torna-se também um corpo da sexualidade e pode haver aí um desencontro entre o esperado para o sexo anatômico, os chamados da sexualidade e a posição sexuada. De qualquer forma, a sexualidade não é sem o sexo e ambos estão implicados na sexuação.

A SEXUAÇÃO

Dizer que a sexuação é um fato de discurso e não é determinada pelo sexo anatômico, mas não é sem a sexualidade, indica a implicação e a importância desta última na sexuação e, portanto, nos remete ao operador fálico como central nesta concepção. Sobre esse ponto destaco um posicionamento de Alba Flesler (2010). Com uma prática clínica extensa com crianças e adolescentes, a autora atribui relevância ao desejo entre o casal parental e seus efeitos sobre o sujeito. Não é sem consequências para as funções materna e paterna o que se passa entre a mulher e o homem, ou seja, entre o casal parental.

Nesta direção, não é vã a afirmação de Lacan: um pai merece amor e respeito quando toma sua mulher no lugar de causa de seu desejo. Assim, ele pode exercer sua função de nominação e colocar as coisas em seus devidos lugares: nomeia-se como pai, nomeia aquela como sua mulher e a criança como seu filho. Para que os tempos passem, a criança cresça, a função fálica e a falta se inscrevam é necessário que os pais possam relançar suas apostas e contribuir para que novas perdas de gozo se dêem. Para nós, parlêtres, não há ganhos sem perdas. E esse jogo do quem perde, ganha, está atrelado ao lugar que a criança ocupa para os pais, à maneira como ela é tomada pelo amor, pelo desejo e pelo gozo dos pais e também pelos efeitos do enlace de amor, desejo e gozo no casal.

Acima observei que o operador fálico é central ao conceito de sexuação, pois bem, na leitura de Lacan, dizer-se homem ou mulher indica a existência de duas diferentes modalidades de gozo a partir da lógica fálica. A sexuação trata, portanto, de uma divisão entre os seres falantes em relação a dois modos de gozo e não em relação ao sexo anatômico. Lacan (1985) reune suas elaborações acerca da diferença entre homem e mulher em fórmulas matematizadas, conhecidas como as fórmulas quânticas da sexuação.

Fórmulas Quânticas da Sexuação Conforme Lacan

A leitura desse quadro e suas fórmulas indica que do lado homem para todos se cumprem a função fálica, mas isso só pode ocorrer porque existe ao menos um que escapou a ela, ao menos um diz não à castração, a exceção faz a regra e permite o fechamento do conjunto. Por sua vez, do lado mulher não há exceção que possa fazer regra ou conjunto. Toda mulher está submetida à lógica fálica e como não há uma que escape, essa lógica não funciona por completo, a mulher está “não-toda” na lógica fálica. Então, a lógica fálica não recobre totalmente o que é ser mulher, como recobre o que é ser homem. Isso permite que deste lado se vá mais além da lógica fálica, num mais-além do gozo fálico. Desse lado não há conjunto que se feche e não todo do sujeito está submetido à lógica fálica, todo sujeito, porém, não todo de cada sujeito. Aqui nos deparamos com o aforismo a mulher não existe, no sentido de que não existe um significante que a diga, que a defina por inteiro, e não há um conjunto das mulheres.

Enfatizo como a função fálica é central à sexuação, o falo simbólico introduz a lógica da incompletude, possibilitando haver também um gozo além do fálico. E como vimos acima, para que a inscrição fálica se dê, para que a falta opere, há todo um processo de sexualização do vivente que depende, entre outras coisas, de como a criança é tomada pelos pais no enlace de amor, desejo e gozo. A sexuação se associa à nossa condição fundamental de parlêtre, e por sermos seres de fala não há mais uma relação direta e completa com as coisas, o atravessamento da linguagem produz um rombo, um buraco estrutural em nossa existência. Mas, para que esse buraco estrutural seja elevado ao estatuto de falta, e o desejo possa advir, as funções de antecipação materna e de nominação paterna são fundamentais. Retomo e ressalto a importância da nominação nesse processo, é através da nominação que o pai interdita o gozo incestuoso afim de que novos gozos possam ser autorizados, inclusive aquele que tange à sexualidade e à autorização de uma posição sexuada.

O conceito de sexuação também permite concluir que não há para nós relação, proporção, no sentido lógico do termo entre os sexos. Não há acoplamento, não há adequação, não há encaixe perfeito entre os sexos de forma a produzir a anulação de dois e, portanto, da diferença. Então, duas posições sexuadas, dois modos de gozo: o gozo fálico do lado do homem e o mais além do gozo fálico do lado da mulher. Mas para chegarmos aí e podermos nos autorizar homem ou mulher, é necessário que sejamos tomados alternadamente no lugar de gozo e de significação fálica (e, para tanto, amor e desejo devem estar presentes), é necessário o enlace de amor, de desejo e de gozo para que de um sexo se chegue à sexuação, através da sexualidade.

Autora: Zeila Torezan

 

Referência Bibliográfica

Flesler, Alba. El niño en análisis y el lugar de los padres. Buenos Aires: Paidós, 2010.

Lacan, Jacques. O Seminário: Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

Passo a Passo

Quando recebi, com muita alegria, o convite do Espaço Moebius com o tema desta Jornada, logo me ocorreu um pensamento que definiu o que abordaria em minha fala e também intitulou meu trabalho. Pensei: passo a passo; a prática clínica se produz passo a passo. Decidi me deixar levar por esta associação para escrever meu texto e compartilhar um pouco como tenho pensado e trabalhado a clínica e, em especial, como entendo que uma prática clínica vai se construindo.

Assim, já vou delimitando uma primeira formulação que hoje considero fundamental, mas, confesso a vocês, me custou muito tempo e trabalho: existe mais de uma psicanálise e, portanto, mais de uma clínica, há plural para ambas. Psicanálise, no singular, é aquela que cada um pratica a partir de um estilo próprio produzido, em especial, com a análise pessoal e de acordo com a adoção de uma determinada lógica a respeito de noções cruciais como as de sujeito, estrutura, inconsciente, transferência, ato analítico, cura, entre outras.

Enfatizo que levou muito tempo para que essa formulação pudesse ecoar de maneira efetiva em minha prática e posição como analista. No chamado frescor da juventude, época da vida que acredito combinar mais com calor do que com frescor, defendia com veemência a existência de uma só psicanálise, a única verdadeira. Tudo o mais que levasse tal nome era equívoco ou mesmo má fé, desvio, charlatanismo, enganação. Não pensem que voltei a acreditar em Papai Noel e tenho uma fé pura na humanidade, acho até que estou bem longe disso. Como em qualquer outra área de atuação, também existem equívocos importantes naquilo que, muitas vezes, se professa em nome de alguma psicanálise. Entretanto, tais distorções não excluem a existência de mais de uma leitura da teoria e de diferentes maneiras de trabalhar com a psicanálise de forma séria e ética. Existem diferentes lógicas que orientam as diferentes clínicas psicanalíticas que praticamos.

Atualmente considero que um dos passos mais importantes no processo de produção de um analista e de sua prática é a escolha de uma psicanálise a partir da qual constrói a clínica que pratica. Essa escolha e o trabalho que aí se produz embasado numa determinada lógica é o que legitima a clínica que se exercita.

Sigo fiel ao propósito de me deixar levar pela associação inicial (passo a passo, a prática clínica se produz passo a passo) e abro um segundo aspecto de trabalho. A expressão passo a passo comumente é associada a um ritmo lento, que demanda tempo, algo feito com tranquilidade e sem pressa. A rapidez nunca foi meu forte. A persistência me cai melhor. Sempre gostei de ditados como “quem tem pressa come cru” e “os últimos serão os primeiros” (este era meu preferido, afinal sou a última filha de oito irmãs e com o nome começando com a letra Z). Era assim, sem pressa e com persistência na escola, na execução das tarefas com antecedência pelo gosto de fazê-las devagar, na dança, no gosto pela Yoga ou no melhor potencial no atletismo nas provas de resistência do que nas de velocidade. E assim também tem sido o caminhar com a clínica psicanalítica, passo a passo, com persistência e resistência, num ritmo mais lento do que veloz.

Compartilho com vocês que tal ritmo na clínica muito me incomodou. As dificuldades encontradas na prática depois de tantos anos de análise, seminários, estudos, supervisões, tudo envolvendo bastante tempo e dinheiro, me pareciam indicadoras de uma espécie de atraso. Hoje me sinto auxiliada pelos referidos anos de muito trabalho e pelas dificuldades e tenho outra leitura deste processo. Ressalvada a obviedade das diferenças individuais, aposto no que a minha associação revela: ao menos nesta psicanálise que escolhi, a prática clínica se produz de fato lentamente, passo a passo. E, ao invés de problema, isso agora me parece, se não solução, ao menos condição. É passo a passo que vamos fazendo nosso caminho, abrindo nossa trilha.

Tuto, cito, jacundi, dizia Freud, na conferência 28 (1916-17), com a psicanálise não é possível que as coisas se deem de forma fácil, breve e com alegria, tanto do lado do analisante, quanto do analista. Portanto, creio ser necessário dispor de tranquilidade e paciência que permitam suportar os processos de produção de um analista, de construção de uma prática clínica e da condução de uma análise, os quais, além de morosos e trabalhosos são também intermináveis: um analista e sua clínica, assim como uma análise, jamais estarão definitivamente prontos e/ou acabados.

Pois bem, essa psicanálise que escolhi está longe de esperanças vãs de uma felicidade mágica, milagrosa ou química. Ela enfatiza a singularidade e o reconhecimento do sujeito e de sua implicação na vida que leva, sempre apontando para a responsabilização por aquilo que lhe sucede. Tal psicanálise afirma que um sujeito goza sofrendo e se esforça para manter essa situação até que ela se torne insuportável. Trata-se de um gozo paradoxal, que inibe, retira as energias, tolhe a liberdade e as perspectivas na vida, as quais se tornam limitadas e invadidas por fracassos.

Neste contexto, uma análise busca produzir alguma transformação, com a possibilidade de outras modalidades de gozo não tão sofredoras e/ou parasitárias. Harari (2008) diz que essa psicanálise visa produzir um pouco de liberdade em relação ao sintoma, para que se possa, como diz Freud, amar para além do seu sintoma como a si mesmo. Acho esta uma formulação muito interessante: que o gozo possa transcender aquele do sintoma, trabalhamos para que o sujeito possa transformar um gozo sintomático em outra coisa. A análise busca uma saída das inibições, dos fracassos, da fuga das responsabilidades, saída para tudo aquilo que impede uma passagem para o mundo, uma saída para aquilo que Freud chamava de introversão libidinal.

Saber fazer ali com, disse Lacan, com os mesmos elementos que compõe o sintoma e o sofrimento, fazer, produzir alguma outra coisa, transformar. Portanto, está em questão um agir no mundo e não apenas uma nova leitura interior, um insight. Poder se libertar um pouco do que parecia um destino, produzindo um estilo. Esta pode ser uma forma de se pensar o fim de análise. Bem, não dá para fazer isso rapidamente, tem que ser passo a passo.

Prosseguindo nas associações, passo a passo pode remeter a uma ordem fixa e necessária, geralmente graduada de uma menor para uma maior complexidade ou dificuldade, a ser seguida para que uma tarefa se complete. Uma sequência pré-estabelecida de passos a serem dados para alcançar um objetivo. Bem, o passo a passo aqui em questão não é bem assim. Acima fiz alusão à abertura de uma trilha, como quando andamos no mato e vamos abrindo o caminho. Emprestei esta metáfora de Isidoro Vegh (2013), ele a usa em seu livro Senderos del analisis, sendero é caminho, mas um caminho que se faz ao caminhar, como quando na abertura de uma trilha.

Acredito que com Lacan, aprendemos que não há como termos uma definição standard dos passos a darmos em nossa produção como analistas e o mesmo vale na condução de cada uma das análises que assumimos e, portanto, na construção de nossa prática clínica. Alguém poderia argumentar que há sim um primeiro passo no que tange à chamada formação de um analista, que seria chegar ao final de uma análise pessoal, afinal, sabemos que um final de análise produz um analista. E que o passo seguinte seria a entrada numa instituição, pois não é assim que Lacan enuncia, um analista se autoriza de si mesmo e de alguns outros? De acordo, mas quantos de nós começaram a prática clínica apenas após um final de análise? E quantos se jogaram numa escola após um final de análise? Creio que não ocorreu assim com a maioria de nós, é muito comum em nosso meio começarmos com a clínica bem antes de um final de análise, nem todos se envolvem em uma instituição e não considero que estes fatos nos desqualificam. Além do mais, podemos necessitar e decidir fazer outras voltas de análise, muito depois do final de uma primeira, não vejo nenhum mal nisso, e se houvesse esta ordem rígida dos passos, isso significaria que estaríamos regredindo, voltando passos atrás, ou que aquele primeiro final de análise não foi verdadeiro? Não penso que seja assim. Claro, existem passos necessários e fundamentais para a produção de um analista e de sua prática clínica, assim como para a condução de uma análise, mas não há como padronizá-los numa ordem obrigatória e essencialmente cronológica ou graduá-los do simples ao complexo.

E falando em simples e complexo, acompanho mais uma vez Isidoro Vegh (2013a) e agora também Tyszler (2011), ambos apresentam a formulação de que na psicanálise não partimos do simples para chegar ao complexo, ao contrário, o simples é o ponto de chegada. Uma chegada que se produz após muito trabalho em todos os sentidos: trabalho com os textos, trabalho com a clínica, trabalho de análise pessoal e de controle. Quando em nosso percurso vamos desenvolvendo e nos apropriando de uma determinada lógica que passa a operar em nossa prática, daí advém o simples, a lógica produz simplicidade e não complexidade. Simplicidade aqui rima com tranquilidade para suportar e acompanhar, sem pressa, o tempo, o ritmo, os passos de cada um de nossos analisantes.

A psicanálise como experiência da transferência e de sua manobra é uma operação lógica da qual o analista é a causa. Esta posição de analista não é nada confortável, Lacan (2000), em O saber do psicanalista, chega a dizer que é uma aberração que ao final de uma análise alguém se decida a trabalhar como analista, se decida a ocupar uma posição tão incômoda. O operador desejo do analista é um nome dessa aberração. A análise do analista precisa, portanto, produzir o operador desejo do analista para capacitá-lo a dirigir os tratamentos analíticos do começo ao fim da transferência. Neste sentido, acredito que um outro passo fundamental na produção de um analista é que ele possa desdobrar em sua análise pessoal a seguinte pregunta: por que quero trabalhar como analista? Por que esta aberração me concerne?

A expressão usada por Lacan, “passo o tempo passando o passe” (Vegh, 2013a) parece indicar, mais uma vez, o interminável da tarefa de produzir-se analista e, portanto, a inexistência de uma resposta única e definitiva para a pergunta que estabeleci acima. Acredito que esta pergunta deva ser renovada e retrabalhada ao longo de nosso caminhar, de nossos passos, como analistas e que, em diferentes momentos, esta aberração pode nos concerner por diferentes motivos. E mais, se não há uma condição ontológica em nossa função, se não somos analistas, apenas operamos como tal, ocupamos este lugar, a renovação de tal questão me parece mesmo necessária, pois, em algum momento pode ocorrer que esta aberração não me concerne mais e, consequentemente, o operador do desejo do analista não pode mais ser sustentado. Se podemos pensar a condição de analista como um sinthoma, ou seja, como algo que opera em nossa estrutura e aí tem uma função, é possível considerar que este sinthoma possa ser substituído por outro, que ele perca o valor e função que adquiriu na estrutura. Passos infindáveis, mas nem por isso, necessariamente, eternos.

Por fim, quero destacar a importância, para a prática clínica de cada um de nós, do passo que estamos dando aqui nestes dois dias de trabalho. Que o analista seja ao menos dois, diz Lacan, que ele possa, para além da sua clínica e das análises que conduz, trabalhar sobre sua prática e transmitir algo sobre ela. É o que fizemos, com entusiasmo, nesta Jornada. Muito obrigada pela companhia de vocês nesse passo.

Autora: Zeila Torezan
zeilatorezan@gmail.com

 

Referência Bibliográfica

Harari, Roberto. O Psicanalista, o que é isso? Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008.

Lacan, Jacques. O saber do psicanalista (71-72). Recife: CEF, 2000.

Tyszler, Jean-Jacques. As metamorfoses do objeto. Clínica da pulsão, da fantasia e da letra. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2011.

Vegh, Isidoro. As intervenções do analista. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2001.

Vegh, Isidoro. Senderos del análisis. Progresiones y regresiones. Buenos Aires: Paidós, 2013.

Vegh, Isidoro. Paso a pase con Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, 2013a

A Felicidade e a Boa Sorte do Sujeito

As pessoas procuram um psicanalista, um psicólogo ou um psiquiatra porque sofrem, das mais diversas maneiras. Como analista, recebo aqueles que trazem questões e sintomas bem delimitados e específicos, os quais atrapalham um viver mais alegre. Outros, ao contrário, falam de uma vida amplamente desafortunada e queixam de mal estar, apatia, tristeza e/ou de fracassos de forma generalizada. Há, ainda, a somatória das duas queixas: na falta de sorte generalizada algum sintoma se particulariza. Por sua vez, não são raros os que sentem-se acometidos pelo referido mal-estar e tristeza generalizados, a despeito de se considerarem pessoas de sorte: têm sucesso profissional, família, dinheiro, amor, mas, ainda assim, não são felizes.

Também observo ser frequente, nas diferentes apresentações no início de uma análise, a pergunta sobre o porquê da insistência dos sintomas, sentimentos e acontecimentos dos quais se queixam e para os quais buscam uma solução. Soma-se à tal questão a estranheza frente ao que parece se reapresentar de forma misteriosa, ou, como dizia Freud, demoníaca: a má sorte, o fracasso, o abandono, a tristeza.

Freud se interessou por e teorizou sobre essas diferentes formas de apresentar e vivenciar o sofrimento, marcando uma distinção entre neurose de transferência e neurose de caráter (1912 com um texto sobre a neurose obsessiva, 1916 – texto sobre alguns tipos de caráter e um capítulo de Além do princípio do prazer). Nas neuroses de transferência, um sintoma se apresenta muito claramente e o sujeito pede, em sua demanda de análise, para se livrar disso que não anda bem e insiste, pede para se livrar do sintoma que, muitas vezes, considera repetir-se em sua vida. Por outro lado, no que Freud denomina de caráter, temos sujeitos que apresentam um mal-estar e fracassos generalizados, sem uma formação sintomática muito bem estabelecida. Freud se intriga muito com esse segundo tipo, propõe que esses sujeitos possuem alguns traços de caráter que os levam a repetir tais fracassos, mas de forma que eles se apresentam como uma força demoníaca, como se o sujeito os sofresse passivamente, como se fossem uma armadilha do destino.

Então, quando realço as diferenças na maneira como aqueles que chegam para uma análise são afetados por e falam de seu sofrimento, me refiro não apenas à óbvia singularidade do discurso e do sofrimento de cada um, mas, em especial à diferença apontada por Freud entre a repetição que ele considera atrelada a uma formação sintomática e aquela que ele associa aos fracassos mais generalizados e como que pertencentes ao acaso. O redimensionamento, através do trabalho de Lacan, da concepçãode sintoma aí em voga, não exclui, em meu entendimento, o valor da formulação freudiana, a qual nos indica a necessidade de precisarmos o conceito de repetição e já reconhece no mesmo mais de uma dimensão e a transcendência da mera reprodução.

Vejamos como podemos encontrar esses elementos na prática. Quando alguém chega dizendo que a bebida ou as drogas se tornaram um tormento, um sofrimento do qual quer se livrar, é possível dizer que apresenta sua questão de trabalho como um sintoma (pois reconhece algo que não vai bem, do qual quer tratar e no qual se vê implicado) e se pergunta porque repete: “Por que não paro de beber ou me drogar? Porque continuo fazendo isso se sei que não me faz bem?” Ou ainda, quando alguém se queixa de impotência e se pergunta: “Porque brocho cada vez que me interesso por uma mulher?” Insisto, nessas situações, a pergunta sobre a repetição está colocada de maneira direta – a insistência de algo atrelado ao sofrimento, atrelado ao sintoma, lhe intriga – e o sujeito se diz aí implicado.

Entretanto, a pergunta sobre a repetição também está presente quando, de forma aparentemente passiva, o sujeito se encontra sempre no mesmo lugar e isso lhe provoca angústia ou mal-estar generalizados. Sujeitos que parecem “destinados” à ingratidão, ao abandono, à solidão, ao fracasso, pois em várias esferas de suas vidas isso se repete. Homens ou mulheres cuja vida amorosa é sentida como um fracasso eterno, com relacionamentos que contemplam fases e finais semelhantes ou mesmo idênticos. Pessoas que profissionalmente não crescem e são vítimas dos mais variados acontecimentos: roubo de sócio, demissão em massa, depressão econômica que leva à perda do emprego, falência. Nesses casos, a pergunta sobre a repetição é feita colocando em questão o acaso, o destino, o azar ou má sorte. Foi por este tipo de repetição que Freud mais se interessou, talvez porque ela coloca em cena o além do princípio do prazer, evidenciando a contravenção da natureza no humano que Freud associou ao conceito de determinismo psíquico. Mas hoje, acredito que ambos os aspectos da repetição devem nos interessar, pois compõem com importância a clínica.

Como analistas, em nossa clínica, devemos sempre nos interessar e acompanhar as questões no que elas apresentam de singular a cada vez que são formuladas. Também como analistas, no trabalho de transmissão, como é o de hoje, devemos procurar construir, a partir do que é singular, elementos que possam nos ajudar a nortear a clínica. Nesse sentido, o meu interesse é produzir uma leitura, sempre a partir daquilo que a clínica me convoca, sobre a articulação, feita por Lacan, entre a repetição e a felicidade e/ou boa sorte (feliz acaso ou boa fortuna), em francês: bonheur e bon heur. Para tanto, a partir dos comentários que tracei inicialmente, chamo a atenção de vocês para alguns elementos que fundamentarão este meu recorte do tema da repetição.

O primeiro ponto, que peço que considerem com cuidado, é que na busca de um tratamento que possa eliminar ou diminuir o sofrimento está sempre implicada uma demanda de encontrar alguma felicidade ou, por vezes, muita ou toda felicidade. É o que os analisantes nos dizem, eles querem ser felizes e se intrigam por não serem: “tenho tudo para ser feliz e não sou; quero apenas ser feliz; porque eu nunca me sinto feliz?; não sei o que é felicidade…” Foi também o que Freud (1930/1996) observou em Mal-estar na civilização: “O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta não pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer.” E, por sua vez, Lacan (1959-60/1997): “O que nos demandam, é preciso chamá-la por uma palavra simples, é a felicidade.” (p.350). Nessa direção, uma questão importante sobre a qual pretendo trabalhar hoje: o que é felicidade para a psicanálise e qual é a felicidade que os analisantes nos demandam, já adiantando haver uma diferença entre ambas.

Em segundo lugar, chamo a atenção de vocês para a relação, estabelecida nas queixas, entre a infelicidade e o que se repete. Tanto a insistência de sintomas, quanto o estranho acaso de acontecimentos e sentimentos são identificados como obstáculos à felicidade. Atrelada à tal constatação, observo que o incômodo, a intriga e a estranheza provocados pela repetição, favorecem uma demanda de análise, na qual se busca, entre outras coisas, a tal felicidade.

Na sequência, percebam que boa sorte, sucesso e felicidade não andam necessariamente juntos, como, a princípio, se poderia pensar. Nem sempre a aparente boa sorte ou sucesso são vivenciados de forma feliz e, nem sempre, aquilo que olhares externos veem como fracasso ou como má sorte faz a infelicidade do sujeito. Muito bem, mas então, o que é e onde está a felicidade? E ainda, o que pode ser a boa sorte para o sujeito do qual a psicanálise se ocupa?

Em Televisão – texto publicado a partir de uma entrevista dada por Lacan (2003) em 1973 – no momento em que está respondendo a uma questão sobre o suposto descaso com os afetos em seu trabalho, Lacan contra-argumenta, falando da importância que deu à angústia, à qual dedicou um de seus seminários e sobre a qual produziu uma leitura que não mais nos permite desconsiderá-la na clínica. A partir desta referência à sua particular tomada e posicionamento sobre o afeto, Lacan passa a discorrer sobre a tristeza, o gay sçavoir e a felicidade. Situando a tristeza e o gay sçavoir – saber alegre que podemos alcançar em uma análise – em polos opostos, indica que a ética da psicanálise é a do bemdizer e que só há saber, gay sçavoir, no não sentido. Entre um polo e o outro, entre a tristeza e o gay sçavoir, Lacan pergunta onde estaria a felicidade:

“Nisso tudo, onde está o que traz felicidade, feliz acaso? Exatamente em toda
parte. O sujeito é feliz. Esta é a sua definição, já que ele só pode dever tudo ao
acaso, à fortuna, em outras palavras, e que todo acaso lhe é bom para aquilo que
o sustenta, ou seja, para que ele se repita. O espantoso não é que ele seja feliz sem
desconfiar do que o reduziu a isso – sua dependência da estrutura – mas que
adquira a idéia de beatitude, uma idéia que vai tão longe que o sujeito sente-se
exilado nela.” (p.525)

Vejam só, diferentemente de Freud, que considerou a felicidade impossível e relacionou a repetição a essa impossibilidade e, também, contrariamente ao que ouvimos de nossos analisantes, Lacan diz que a felicidade já está com o sujeito e está atrelada, exatamente, à repetição. O que isso quer dizer? Antes de esboçar uma leitura a esse respeito, acrescento mais uma citação de dois anos mais tarde, em uma conferência pronunciada em 1975 nos Estados Unidos, na Universidade de Yale, Lacan toca novamente na felicidade, atrelando-a ao final de análise:

“Me desculpem se o que eu digo parece – o que não é – audaz. Somente posso dar
testemunho do que minha prática me provê. Uma análise não deve ser levada
muito longe. Quando o analisante pensa que é feliz por viver, é suficiente.”

Me soam mesmo muito intrigantes essas formulações de Lacan e espero que vocês me acompanhem no interesse pelas mesmas e no trabalho de desdobrá-las. Primeiro, o sujeito é feliz por definição, mas não sabe muito bem disso, e tal condição se articula à repetição como lei constituinte do sujeito, está atrelada à boa sorte ou feliz acaso como fato de estrutura. Pouco depois, o final de análise é associado à possibilidade de se “pensar feliz por viver”. Arrisco uma hipótese: será que “pensar ser feliz por viver” significa poder saber, saber alegremente, sobre a primeira afirmação, ou seja, sobre o fato de que “o sujeito é feliz” nisso que atualiza o encontro faltoso com o Real?

Me parece uma leitura possível, principalmente quando retorno à clínica. Exemplifico com um final de trabalho de uma analisante que foi para mim muito marcante e com o qual pude apreender um pouco mais as referidas construções de Lacan. Após alguns anos de trabalho sobre a impossibilidade de sentir-se bem em sua vida de forma geral, fato bem representado pelos repetitivos fracassos em exames para uma almejada ascensão profissional, ela conclui que seus fracassos eram para ela, até então, um feliz acaso e não uma má sorte. Feliz acaso que ela produzia, pois fracassar nas provas permitia que se descolasse de um ideal de perfeição, de filha perfeita, que a aterrorizava. Então, a repetição se emparalha com o sintoma, delimitado por seu fantasma, protegendo-a de uma suposta posição à mercê do Outro. Finaliza aí sua análise, pouco antes de obter o resultado do último exame que havia feito (pois o resultado já não mais importava, não era mais nele que estava sua felicidade) e no qual, vim a saber depois, obteve sucesso. Na saída da última sessão, me abraçou, agradeceu pelos anos de trabalho e disse, com ternura, que um dia voltaria, mas que naquele momento pensava que era feliz. Tantas vezes enlouquecemos para tentar compreender a teoria, quando, na verdade, se acompanharmos com atenção o que nos dizem os analisantes, conseguiremos construir a teoria com a leitura do discurso aí produzido.

Como todo analisante, essa jovem chegou demandando, através de sua queixa, felicidade e acreditava que era com a aprovação em um exame que a alcançaria. Posição absolutamente exemplar da idéia de felicidade que temos na cultura, ainda por influência de Kant: a felicidade é um bem a ser alcançado por merecimento e é associado à boa adaptação. Pesa sobre essa formulação um valor moral, muito explorado pelo utilitarismo e pelo capitalismo. Entendo que é essa felicidade que, não apenas essa moça, mas todos os analisantes chegam demandando. De uma forma ou de outra, apostam que com a análise serão pessoas melhores, bem adaptadas e, então, merecerão ou alcançarão a felicidade. Certamente, não é isso que uma análise pode oferecer, mas tudo bem, porque trabalhando, essa jovem – e quem mais apostar em uma análise – percebe que boa sorte e sucesso nem sempre andam juntos e que o encontro faltoso da repetição é necessário e traz boa sorte. A partir daí, o sintoma perde sua função e se torna prescindível, assim, a aprovação deixou de ser temerosa e a idéia de felicidade adquiriu uma outra dimensão: ela pode pensar ser feliz ao invés de se escravizar sendo a boa menina para merecer a felicidade.

Agamben (2007), em um pequeno e denso texto denominado Magia e Felicidade, apresenta essa noção de felicidade, que se contrapõe à moral kantiana, da qual trata Lacan e que pode ser reconhecida por essa jovem. Amparado pelas idéias de Walter Benjamin, Giorgio Agamben diz: 

“Benjamim disse, certa vez, que a primeira experiência que a criança tem do
mundo não é a de que ‘os adultos são mais fortes, mas sua incapacidade de
magia’. A afirmação, proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de
mescalina, não é, por isso, menos exata. É provável, aliás, que a invencível
tristeza que às vezes toma conta das crianças nasça precisamente dessa
consciência de não serem capazes de magia. O que podemos alcançar por nossos
méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo.
Isso não passou despercebido ao gênio infantil de Mozart, que, em carta a
Bullinger, vislumbrou com precisão a secreta solidariedade entre magia e
felicidade: ‘Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes, e a segunda, sem
alguma magia, certamente não me tocará. Para isso deveria acontecer algo
verdadeiramente fora do natural’. ” (p.23)

Não há nada mais fora do natural do que o sujeito do qual a psicanálise se ocupa, a linguagem produz uma desorientação pela perda do instinto e o inevitável desencontro entre as palavras e as coisas. Não há nada mais fora do natural e, aparentemente, mágico (demoníaco, diria Freud; necessário, diria Lacan) do que a repetição, associada por Lacan à estrutura do sujeito. Portanto, em sua desnaturação e magia, o sujeito é feliz; o sujeito é feliz na repetição que o sustenta na sempre diferença entre o esperado e o encontrado, no encontro sempre falho e não-todo.

Retomo o texto de Agamben:

“Na antiga máxima segundo a qual quem se dá conta de ser feliz já deixou de sê-
lo, mostra-se que o estreitamento do vínculo entre magia e felicidade não é
simplesmente imoral, e que ele pode até ser sinal de uma ética superior. A
felicidade tem, pois, com seu sujeito uma relação paradoxal. Quem é feliz, não
pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de
uma consciência, mesmo que fosse a melhor. Nesse caso a magia faz valer sua
exceção, a única que permite a um homem dizer-se ou considerar-se feliz.” (p. 24)

Sim, como Lacan, Agamben trabalha a felicidade sobre uma outra ótica que não a kantiana e, dessa felicidade não natural, não moral e mágica que está com o sujeito por sua estrutura, não se trata de sabê-la conscientemente. Mas é possível se produzir um outro tipo de saber sobre ela, um saber alegre que nos permita pensar que somos felizes quando o necessário do encontro faltoso da repetição deixa de ser sentido como má sorte. Dito de outra forma, pensamos ou sabemos ser felizes quando estamos de bem com o inconsciente que nos determina e, portanto, com algum inevitável mal-estar a partir do efeito de não proporção, de desencontro e de não-todo provocado pela linguagem. É isso…. ou pior.

Autora: Zeila Cristina Facci Torezan

 

Referência Bibliográfica

Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: J. Strachey, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Lacan, Jacques. O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

Lacan, Jacques. O Seminário, livro 7. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

Lacan, Jacques. Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

Lacan, Jacques. Conferência na Universidade de Yale. Disponível em: www.elpsicoanalistalector.blogspot.com.br.

Historiando Vidas ou a Constituição do Sujeito em Tempos de Violência

Um psicanalista, diante de uma criança pode posicionar-se de diferentes formas. Mas se um psicanalista, assim como eu, comungar das ideias de Alba Flesler quando afirma que o psicanalista atende a criança, mas aponta para o sujeito e pondera que este sujeito, mais que idade tem tempos, então este analista encontrará o que há de específico no ato analítico.

            A ideia inicial deste trabalho era refletir sobre as vicissitudes de um sujeito em constituição quando o Outro se apresenta a este pequeno sujeito com muita agressão.

            Lembro-me, ainda com espanto, de uma mãe que me procurou devido às sucessivas agressões que o pai havia cometido contra o filho do casal desde tenra idade. Naquele momento o filho, já adolescente, encontrava-se em uma outra (e quem sabe a mesma) situação de violência: trabalhava para o tráfico de drogas. Dizia-me a mãe: “Um dia quando Zezinho tinha por volta de três anos, o pai chegou em casa sob efeito de álcool e drogas. Zezinho estava adormecendo no sofá e o pai jogou-o longe, como se ele fosse uma almofada.”

            Penso ainda hoje o que é para um sujeito ocupar no mundo este lugar de almofada do pai, de objeto para o gozo do Outro. Quais as possibilidades de o sujeito advir? Não por acaso, Zezinho contou-me nas poucas ocasiões que tive de ouvi-lo sobre a crueldade e rigor de seu “patrão”, expressão que ele se utilizava para referir-se ao traficante, chefe da “boca” em que trabalhava.

            Tal reflexão – as vicissitudes da constituição do sujeito diante da agressão do Outro – torna-se um grande complicador, já que o sujeito responde ao chamado do Outro de maneira muito singular e tais respostas se relacionam com os tempos do sujeito.

            Os tempos a que me refiro situam-se entre a proposição do Outro e a resposta do sujeito a essa proposição.

            Recorro novamente a Flesler, que articulando os tempos que Lacan conceitualizou com os três registros do sujeito da estrutura, Real, Simbólico e Imaginário, situa-os da seguinte forma:

1 – Num primeiro momento, o Outro propõe e o sujeito responde que sim, se alienando da proposta. Trata-se de ser ou não o falo, um tempo onde predomina o registro Imaginário, com escassos recursos simbólicos para enlaçar Real e Imaginário.

2 – A autora traça um segundo tempo, tempo de despertar, de deixar descoberto aquilo que se encobria; onde o que a criança vê é a castração do Outro primordial, tempo do primeiro despertar sexual, que no conceito lacaniano localiza-se o instante de ver, cujo predomínio é do registro  Real.

3- O tempo anterior abre possibilidades ao sujeito, ainda que desperte grande angústia. Surge, nesse momento o conflito de ser ou ter o falo, tempo que abre possibilidades para que a separação do Outro se efetue. Nesse tempo é de suma importância que se faça operar o “desejo dos pais”, operação de antecipação e nominação do sujeito, que aponta para o sujeito um lugar de não mais ser o falo, mas que permite ao sujeito ter falo. Tempo de predomínio do registro Imaginário. Esse lugar de ter falo só se faz possível se o Outro suporta a separação e a distribuição de gozo exigida por esse novo tempo.

4 – Caso o Outro suporte, segue-se um tempo, um tempo de sexualidade pulsante onde as crianças questionam normas e leis. Quando chancelada à busca pelo saber, a criança aprende a ler e escrever. Este tempo, tempo de compreender será de predomínio simbólico.

5 – Ao desdobramento desse tempo de compreender segue o segundo despertar sexual, ou como Flesler o coloca, o drama puberal ou adolescência, tempo de questionamentos sobre o sexo e a autoridade e, novamente, de predomínio do registro Real.

6 – Em um momento de concluir, de conclusão da infância, a operação desejo dos pais se faz novamente necessária, antecipando e nomeando novamente o sujeito, permitindo a ele um gozo para além do grupo familiar. Tempo de enlaçamento Real, Simbólico e Imaginário.

             A questão do tempo se faz necessária para essa reflexão sobre a constituição do sujeito e violência. Isso porque delimitar tais tempos, que não são cronológicos, mas lógicos e, logo, não seguem uma sequência natural, já que por ser um ser de linguagem o humano rompe com a natureza, toca em uma questão importante para nós hoje. Essa questão diz respeito à linha mestra deste ano em nossa associação, que é pensar sobre psicopatologia: sujeito e estrutura.

            As questões não nos tomam de assalto sem uma intencionalidade. Tal anseio pela reflexão proposta advém de um trabalho não analítico, em uma instituição pública voltada para crianças e adolescentes em situação de violência. O dia-a-dia com estes sujeitos em diferentes tempos de constituição me colocam muitos interrogantes. Ainda que o Estado demande que seus “técnicos” “livrem” as crianças encaminhadas para tal instituição de um suposto sofrimento que elas tenham vivido em razão da violência sofrida, o que ouço desses pequenos sujeitos é uma outra coisa. Ou dizendo de outra forma, ouço uma porção de coisas, que não necessariamente o que é ser vítima ou  ainda, o que é ser vítima de violência.

            Essa experiência institucional, de um trabalho não analítico, sustentado pelo desejo do analista (não me aprofundarei nessa questão), juntamente com os trabalhos desenvolvidos esse ano na Associação Livre, em especial o trabalho de cartel sobre o seminário 23, permitiu-me recolocar minha questão.

            Mais importante, para mim nesse momento, que as vicissitudes possíveis do sujeito que se vê muito precocemente enlaçado ao Outro em meio a agressão, são as respostas singulares que este sujeito dá ao vivido.

            Se a estrutura é a do sujeito que comporta sua posição frente à falta, há de se considerar o que Lacan nos coloca no final de seu ensino: a estrutura não como uma anterioridade e sim a que se constrói como efeito de linguagem e de forma retroativa. Dessa forma, a estrutura do sujeito não tem nada de palpável, de objetivável, de interioridade. O sujeito não é o objeto da psicanálise, pois a psicanálise não tem objeto. O que interessa ao analista é a aparição do sujeito, que não é objetivada.

            Sendo assim, numa oficina de contação de histórias na instituição pública em que ouço crianças de todas as idades e, por vezes, sujeitos em diferentes tempos, uma criança de onze anos revela ao grupo que sua história favorita era “O Diário de Anne Frank”, em meio a “Chapeuzinhos Vermelhos” e “Procurando Nemo”. Essa mesma criança, apreciadora da história de Anne Frank, conta-me ao pé do ouvido uma situação difícil pela qual passou antes de vir à oficina. Convidada a relatar o ocorrido ao grupo ela se nega, mas pede-me que conte. Com toda licença poética que me permiti, dramatizei seus percalços, dando um tom pessoal a uma história que, a partir de contada, passou a ser minha. Mas minha jovem interlocutora, foi aos poucos se apropriando de sua própria historia, acrescentando detalhes e construindo no grupo algo que lhe era pessoal e intransferível. A história contada despertou no grupo o desejo de contar histórias, de outros ou suas, construídas sempre no momento em que se toma a palavra.

            Entendi que a palavra nos dá âncora, faz ancoragem, permite ao vivente se segurar no mundo. Numa análise, se o texto que o analisante apresenta é um texto construído, então a possibilidade de reconstrução é enorme, dando-nos uma grande liberdade para trabalhar.

            E já que este trabalho se trata de crianças e histórias, terminarei este texto homenageando o saudoso poeta Manoel de Barros, que nos deixou recentemente e que entendia muito de palavra e criança: “A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos.”

Para mim, de forma poética, essa pode ser uma definição do trabalho da análise.

A Angústia e o Duplo

Esse trabalho é fruto do estudo que realizei ao longo desses últimos anos no cartel do seminário 10 de Lacan intitulado a angústia. Nesse seminário, em algumas passagens Lacan volta ao texto “O Estranho” de Freud (1919/1996) para afirmar a sua importância no que diz respeito ao tema da angústia. Nesse texto Freud faz uma análise sobre o conto de Hoffman: O Homem de Areia. Esse é um conto inserido no tipo de literatura denominado de fantástica. O que demarca esse gênero literário é, em suas narrativas, o aparecimento do insólito, do inquietante.

Diferente dos contos de fadas onde o fantástico e a fantasia se apresentam em um mundo totalmente diverso, separado da realidade, na literatura fantástica o acontecimento anormal irrompe no universo familiar, estruturado, hierarquizado (Franzim, 2014). Freud (1919/1996) amparado em Schelling (apud Freud 1919/1996) relaciona esse caráter ao Unheimlich: que é o nome de tudo que deveria ter permanecido secreto oculto, mas veio à luz (Freud 1919/1996 p.242).

É recorrente nos contos fantásticos que a irrupção do insólito se dê pelo aparecimento do duplo. O duplo emerge de forma inquietante, e muitas vezes se apresenta como o estrangeiro, o monstruoso o irreconhecível, que nesses textos são aplicados a elementos como o espelho, o retrato que dão esse estatuto de “refração da imagem humana” do seu lado obscuro que está por trás de cada indivíduo (Ceserani, 2006 p.83, apud Franzim, 2014). Um representante desta forma literária é Edgar Allan Poe, e será sobre um de seus contos que irei tratar aqui dessa relação entre angústia e o duplo. O conto é intitulado William Wilson, que por sinal, já foi material para alguns textos de psicanálise. Mas faço aqui o meu recorte.

O narrador inicia o conto pedindo que seja permitido a ele se chamar nesse momento de William Wilson (o seu nome verdadeiro é objeto de desprezo e de ódio para a sua família). Nesse recorte que faço do texto em questão, convido-os a escutar assim esse nome: Will I am (eu sou o desejo) – Will son (filho do desejo). O que nos leva a pensar que é muito diferente ser o filho de um desejo, desejo dos pais, que remete a esse desejo entre os pais, capaz de gerar um filho, permitindo que ele seja significado falicamente. E estar no lugar desse desejo, com o seu ser, como objeto de gozo, sendo gozado falicamente. É na fronteira entre desejo e gozo que Lacan (2005) localiza a angústia. Lacan (2005) consegue ler nas letras de Freud que a angústia não está relacionada à falta como uma impossibilidade de completude marcada pela castração, mas à ausência desta, ou seja, a possibilidade de que falte a falta. Porém para que ela falte ela deve retroativamente ter estado lá. Sigamos com o conto, em sua origem.

O narrador afirma que vai narrar, sem desejar com isso encerrar, a lembrança do que ele denomina como “meus últimos anos de indizível miséria e crimes imperdoáveis”, e que com esse relato quer “apenas determinar a origem”, como um acaso um acidente único que trouxe a maldição de distanciá-lo da “perversidade comum” (Poe, 1981, p.85). Vejam que o narrador nos convida a retroagir com ele em sua história, mas adverte que não irá conseguir com isso encerra-la, mas tenta persuadir o leitor de que, de certa maneira, foi “escravo de circunstâncias que desafiavam todo o controle humano” e diz: “jamais alguém sucumbiu como eu a essas circunstâncias fatais” (Poe, 1981, p.86).

A origem nos remete a constituição do sujeito, que para a psicanálise é “um sujeito da estrutura que não tem idade, mas tempos” (Fesler, 2012, p.19). Nessa operação de subjetivação, que não é cronológica, mas lógica, os tempos são também de resposta que o sujeito pode dar às fatalidades de sua vida. Em uma das etapas dessa operação o objeto a aparece, na função do lado do Outro como um resto. Nessa etapa Lacan (2005) posiciona a angústia, apontando que é necessário que mais uma etapa seja realizada nessa operação, que é aquela em que uma perda de gozo pode fazer resultar o aparecimento do sujeito dividido do lado do Outro, onde Lacan (2005) posiciona o desejo.

As respostas dadas nunca são completas e nem definitivas, mas definitórias de um tempo que está por vir. Sigamos então nesses tempos vindouros do conto.

O narrador fala de sua origem e diz descender de uma família que possui “um temperamento imaginativo e facilmente impressionável” – desde a primeira infância tem a prova de que “herdou em cheio” esse caráter de sua família, que com o passar da idade se desenvolveu com mais força, tornando-se “voluntarioso” e dado a caprichos “selvagens” e “paixões indomáveis” (Poe; 1981 p.86).

Descreve os pais como de “espírito fraco” e “atormentados pelos mesmos defeitos constitutivos” (p.86) dele, pouco podendo fazer para deter as más tendências que o caracterizavam. Fizeram algumas tentativas que, segundo o narrador, foram fracas, e trouxeram para ele um triunfo completo, e “a sua voz ganhou força de lei doméstica” (p.86). Ainda criança foi abandonado ao seu livre arbítrio senhor de todas as suas ações “exceto de nome” (p.86).

Essa observação nos remete a nominação sobre a qual nada pode o seu livre arbítrio, uma vez que o sujeito é determinado, a sua revelia, pela função simbólica da linguagem, sofrendo em sua constituição os efeitos do discurso que o antecede, construído pelo Outro.

Avancemos um pouco mais. O narrador segue descrevendo o que chama de: “os anos do terceiro lustro de minha vida” (Poe, 1981, p.87) tempo que passou em um colégio interno. Lustro corresponde a um período de cinco anos, assim terceiro lustro: dos 10 aos 15 anos. Afirma que agora pode distinguir como nessa época estavam presentes as “primeiras advertências ambíguas do destino” (p.87). Relata a rigidez do colégio, as regras que deviam ser seguidas, e a figura do diretor da escola que era também o pastor da igreja. Descreve esses anos como tendo pouco para relembrar.

Diz que por sua natureza imperiosa, conseguiu ter ascendência sobre todos que não eram mais velhos do que ele exceto um. Era um aluno que tinha o mesmo nome que o seu, se referindo a ele, na maior parte das vezes, como Wilson. Além do nome, tinha a mesma idade, a mesma altura e entrou no colégio no mesmo dia que ele. Sobre o seu nome diz: “Sempre sentira aversão por meu infeliz nome de família deselegante, e por meu prenome tão vulgar e absolutamente plebeu” (Poe, 1981 p.93). O que lhe perturbava era o fato desse aluno também ter esse nome e por ser também um estranho. Wilson rivalizava com ele e contrariava a sua ditadura. Essa rebeldia de seu homônimo era para ele o maior constrangimento, e fazia um esforço “perpétuo” (p.93) para não ser dominado por essa superioridade que na realidade ele mesmo diz ser uma igualdade, que só era percebida por ele.

Diz que o seu homônimo era desprovido de sua ambição que o único desejo era rivalizar, opor-se a ele e que em seus ultrajes existia certo ar de afetuosidade desagradável. Só conseguia entender essa conduta supondo uma suficiência perfeita nele. Brigavam todos os dias, mas mesmo saindo vitorioso Wilson o fazia sentir que não tinha merecido a vitória. Não conseguia encontrar nele um ponto vulnerável. A única fraqueza era em seu aparelho vocal, a sua voz era baixa, o que o impedia de erguê-la acima de um sussurro, e que apesar de baixa se transformou em um perfeito eco da sua. Afirma: “A que ponto esse curioso retrato (porque não posso chama-lo propriamente uma caricatura) me atormentava, é o que nem ouso tentar dizer” (Poe, 1981, p.94). Intervinha em sua vontade, com conselhos que eram recebidos com repugnância e assevera: “eu seria um homem melhor se não tivesse recusado os conselhos daqueles sussurros significativos” (Poe, 1981,p.95).

Em uma discussão mais violenta o seu homônimo falava e agia de maneira diferente, o que o estremeceu e interessou, pois trouxe a ele visões obscuras de sua infância, lembranças estranhas, confusas, precipitadas. Relata esse episodio para assinalar o encontro seguinte que teria com ele, logo após essa discussão. Vai ao seu quarto à noite para “pregar-lhe uma peça de mau gosto” há muito planejada, mas sempre fracassada. Queria faze-lo sentir “toda a força da maldade de que estava possuído”. (Poe, 1981 p.96). Quando entra no recinto onde Wilson estava dormindo, aproxima uma lâmpada de seu rosto. Sobre o que sente relata:

“Os meus olhos se detiveram sobre a sua fisionomia –fui tomado de um horror intolerável e inexplicável. Seriam mesmo as feições de William Wilson?” (Poe, 1981, p.96). Vê que eram os seus traços, mas tremia imaginando que não o eram. E diz: “Ele não me parecia assim – não me parecia tal nas horas que estava acordado” (Poe, 1981, p.96). Saiu imediatamente não só do quarto, mas da escola para nunca mais voltar. Volta para a casa dos pais. Diante do inquietante, do Unheimlich, volta para o Heimlich, busca o familiar.

O que inquieta o personagem nessa visão? Como ela pode ser sinistra? O sinistro se produz quando surge aquilo que, sendo destinado a permanecer oculto, entretanto se manifesta. O que o sinistro desvela é o sujeito sendo olhado nesse lugar de objeto, momento em que o desejável desponta como desejante (Harari, 1997). É ele mesmo que está ali fazendo a pergunta “como o Outro me quer?”, e respondendo a ela, com o seu ser.

O sujeito se vê ali nesse lugar de objeto, e a angústia o afeta sinalizando que a fronteira entre desejo e gozo pode vacilar, sinal de que o que está em risco de desaparecer é não somente o seu desejo, mas o seu próprio ser. Harari (1997) nos diz que a construção fantasmática opera como fornecedora de uma resposta apaziguadora a essa pergunta pelo desejo do Outro. Retrocedendo na narrativa do personagem alguns elementos podem apontar para os pontos de fracasso da construção fantasmática.

Lacan (2005) trata dos cinco pisos da constituição do objeto a, na operação de subjetivação do sujeito, e posiciona em um deles a voz, que ele relaciona ao protofantasma do romance familiar, a essa construção fantasmática que surge como resposta à pergunta pelas origens e que remete ao próprio surgimento de si. Para William Wilson parece não haver muito espaço para dúvida sobre a sua origem. O que ele herdou preenche em cheio esse espaço de construção de uma resposta sobre o lugar que poderia ter ocupado no desejo dos pais. Os seus pais são fracos, a voz de Willson (o filho do desejo) também o é: um sussurro. O fracasso do fantasma aponta para um vacilo da nominação que opera como corte e compromete o movimento da estrutura onde a presença / ausência do objeto a faz jogo, abrindo a possibilidade do enlaçamento entre a vontade de encontra-lo e a possibilidade de alcança-lo como um mais de gozar, e da amarração e consistência de cada registro na estrutura. (Fesler, 2012 p.27, p.51).

O sujeito tem tempos que estão marcados pelas contingências da vida, momentos em que essa operação lógica deve ser renovada. Voltemos ao tempo do conto, William Wilson se volta para os pais, período de sua adolescência momento em que o desejo dos pais é novamente colocado em jogo, momento em que deve ser possível aos pais renovar a antecipação do lugar do sujeito. As falhas nessa operação nos diz Flesler (2012) podem resultar em que “em lugar do desejo dos pais, ganha estatura um gozo maldito” (Flesler, 2012, p.61). O narrador afirma que esses poucos meses na casa dos pais foram de “ociosidade absoluta” (Poe,1981, p.97), nada acontece. Vai para outro colégio interno e diz que mergulha em um turbilhão de loucura, orgias, anos que desafiam as leis. Nesse período em dois episódios, ele afirma que Wilson aparece e sussurra misteriosamente em sem ouvido “William Wilson”, nessas aparições não pode mais lhe ver o rosto.

Esses episódios produzem nele um efeito de estranhamento muito vívido, mas que logo se esvai. Em um momento em que está no auge de uma dessas orgias, envolvido em um jogo de cartas que leva a total ruína um abastado colega, o duplo volta novamente a aparecer e desmascara os seus truques perante os demais. Novamente não consegue ver o seu rosto, mas ressalta que ele está vestido de uma maneira muito singular como ele. O narrador conta então que é expulso pelos seus colegas e sai em viagem pelo continente “angustiado de horror e vergonha”, “tomado de pânico” e afirma “fugi em vão” (Poe, 1981, p.104) Wilson continua a parecer interferindo em sua vontade e de maneira que ele não pudesse ver seu rosto. Relata: “conselheiro em Eton, destruidor de minha honra em Oxford, aquele que frustrou minha ambição em Roma, minha vingança em Paris, meu amor apaixonado em Nápoles, e o que ele chamava erroneamente, a minha avareza no Egito” (Poe, 1981, p.105).

Narra então a cena descrita por ele como: “a terrível cena final do drama” (Poe, 1981,p.105). Diz ter se submetido até então ao seu domínio, mas nesse dia resolve “libertar-se dessa escravidão” (p.105). Estava em uma festa a fantasia e, “movido por um motivo indigno” (p.105), procurava a jovem e bela esposa do anfitrião. Quando está preste a alcança-la sentiu uma mão em seu ombro e “depois esse inesquecível, profundo e maldito sussurro” (p.106) em seu ouvido. Ele então tomado de cólera ordena-o que o siga. E em uma pequena antecâmara inicia um duelo.

Encurrala-o na parede e desfere a espada em seu peito, golpe após golpe. Nesse momento diz que alguém tenta abrir a porta, apressa-se para evitar a intromissão e
quando se volta para o seu adversário, esse curto instante em que ele se desviou foi suficiente para produzir uma mudança na cena que o espanta e causa horror, e descreve assim:

(…) Um vasto espelho – em minha perturbação pareceu-me assim, a
principio – erguia-se no ponto onde antes nada vira; e, enquanto me
dirigia tomado de horror, para esse espelho, minha própria imagem, mas
com o rosto pálido e manchado de sangue, adiantou-se ao meu encontro,
com um passo fraco e vacilante. (…) Era Wilson, mas Wilson sem mais
sussurrar agora as palavras, tanto que teria sido possível acreditar que eu
próprio falava, quando ele me disse:
Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto…
morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu
existias… e vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como
assassinaste absolutamente a ti mesmo. (Poe, 1981 p.107)

Pobre William Willson supôs que era no desaparecimento de um que o outro existiria, não percebeu que não há céu sem inferno… pobre moço como diria o poeta.

Autora: Mônica Maria Silva
Ppsicóloga clinica CRP 08/14090
Clinica L´espacepsy Psicanálise
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina.

Texto apresentado na II Jornada da Associação Livre Psicanálise em Londrina – 21 e 22 de Novembro de 2014

 

Referência Bibliográfica

FLESLER, A (2012). A psicanálise de crianças e o lugar dos pais. Rio de Janeiro: Zahar.

FRANZIM, M.S (2014). O caráter insólito da escrita Rubiana: diálogos a partir de “Marina a Intangível”. (Dissertação de mestrado, não publicada, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina, Londrina).

FREUD, S. (1996). O estranho. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 17). (J. Salomão. Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1919).

HARARI, R. (1997) O seminário “a angústia” de Lacan: uma introdução. Porto Alegre: Artes e Ofícios.

LACAN, J. (2005) O seminário 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar.

POE, E.A (1981) William Wilson In: Histórias extraordinárias. São Paulo: Abril Culturas, 1981.

O Sinthoma e as Estruturas Clinicas

O estudo do Seminário 23 de Lacan (2007), o sinthoma, foi um convite para pensar o Sujeito e a Estrutura, tema que diz respeito ao eixo que norteou os trabalhos realizados esse ano na Associação. Diante disso teço aqui algumas considerações e pontuações que foi possível fazer a partir desse estudo.

Nesse momento de seu ensino Lacan (2007) trabalha a topologia demonstrando, na forma como constrói e desconstrói o nó borromeu, que não se trata de uma estrutura que busca dar conta de descrever uma configuração totalizante a respeito do sujeito.

Essa estrutura que é configurada pelos registros enodados do Real, do Simbólico e do Imaginário, possui uma propriedade estrita de que: ao se separar um dos registros o nó se desfaz, condição, que como nos lembra Harari (2002), é confirmada no só depois, como uma produção resultante do processo de subjetivação do sujeito. Nesse ponto lembramos que o sujeito da psicanálise é um sujeito de estrutura que se constitui em tempos, em que funções e operações devem acontecer. Em cada etapa da operação, nesses tempos lógicos de subjetivação, Alba Flesler (2012) localiza a predominância de um dos registros. O que essa predominância vem nos indicar não é a prevalência de um registro sobre os demais, Lacan (2007) deixa claro que nenhum dos registros tem maior importância do que os outros. Antes disso essa predominância aponta para os limites que cada registro faz sobre o outro. Harari (2002) lembra que ao utilizar da planificação da topologia do nó, Lacan (2007) torna possível pensar nas invasões, avanços ou imisções de cada um dos registros nos demais, além do objeto a que é posicionado no centro dessa estrutura. Lacan (2007) assinala que essas invasões funcionam como nomeação, assim na nomeação do Imaginário temos a Inibição, na nomeação do Simbólico o Sintoma e na nomeação do Real a Angústia. A nomeação é atributo da função Nome do Pai, que de acordo com Vegh (2009) permite fazer furo no gozo. Cada uma dessas invasões anuncia a necessidade de um gozo a ser perdido, orientando o nó em um bom enlace. Assim bem orientado, cada registro pode fazer-se limite e, portanto, nome do pai aos outros registros. Esse bom enlace não significa, no entanto que não haverá falhas e cada um vai encontrar a sua forma de suplência. A boa orientação da estrutura, como já assinalado, também não significa que nenhum mal estar se produza, mas se não for assim pode ser pior.

Lacan, nesse seminário analisa como Joyce pode através de sua escrita produzir a sua forma de suplência. Harari (2002) faz uma importante observação sobre o trabalho realizado por Lacan (2007) a respeito de Joyce em que “a tarefa reside em pôr o acento na função da obra, implicando o seu autor” (p.47), e aqui podemos entender implicando a sua estrutura. Nesse sentido, a partir de observações realizadas por aqueles que antes dele se dedicaram a estudar Joyce, e também pela leitura atenta de sua obra, Lacan (2007) destaca o caráter autorreferente de sua escrita. Fato que o leva a indicar a falha na função Nome do Pai na estrutura de Joyce. No livro de Joyce, “O Retrato do artista quando jovem”, o pai do protagonista, é inspirado no pai do autor, John Joyce, ele é descrito nesse texto como alguém decadente, ordinário, um pai falido (Bulcão, 2014). Se a função Nome do Pai é fraca o atributo de nomeação também o será, comprometendo o bom enlace da estrutura. Em Joyce Lacan (2007) afirma haver um erro no nó, que fazia com que o imaginário se perdesse. Sobre isso Vegh (2009) destaca, como uma descrição dessa perda do Imaginário, um paragrafo do “Retrato do artista quando jovem” (Joyce, 1986, apud Vegh 2009). Nessa passagem há um relato de quando os companheiros do protagonista, Stephen Dédalus, o castigam batendo nele com uma surra terrível, porque ele se nega a corrigir sua afirmação sobre quem seria o melhor poeta inglês. Sobre essa surra diz: “que o que mais o surpreende é que não consegue sentir ódio, que o ódio se vai como se a pele se desprendesse” (Vegh, 2009, p.70).

Em seu seminário Lacan (2007) deixa-se interrogar sobre as relações formais em jogo na escrita de Joyce, e como ela, como uma criação do autor faz suplência à função nome do pai. Formando um quarto aro que enoda os demais registros para que a estrutura não se desfaça. Funcionando assim como sinthoma.

Pretendo aqui, de forma simples, destacar algumas das características desse enodamento que Lacan (2007) desenvolve ponto a ponto nesse seminário. Começo pela distinção do sintoma, entendido como o que na estrutura se apresenta como efeito do Simbólico no Real, e o sinthoma com th, que em Joyce tem o efeito de suplência. No primeiro o sujeito está implicado quando diz tê-lo e padecer dele, obstruindo o seu impulso e restringindo a sua margem de liberdade (Harari, 2002). Ele se apresenta como uma mensagem que é dirigida ao Outro. Assim nos diz Lacan (2007) ele é transitivo, nele há dois devido a essa referência que se faz ao Outro. Esses são aspectos que não se apresentam na escrita de Joyce. Harari (2002) observa que embora Joyce tenha se preocupado em publicar os seus escritos, ele dá muito mais importância a sua invenção do que a sua circulação. Sobre isso Lacan destaca a autossuficiência de Joyce como uma formação psíquica em hiância com o Outro (Harari, 2002, p.215). Para Lacan (2007) o número do sinthoma é um, pois ele é intransitivo, comporta uma constelação psíquica intransitiva. Não transita entre o sujeito e o Outro, não dirige ao Outro nenhuma mensagem a ser decifrada.

A sua obra é um artificio que ele cria e que torna possível para ele se libertar de uma linguagem adquirida, que nem é criada por ele e nem pode ser usada, um idioma que não faz relação com a função Nome do Pai. Esse artificio que ele cria, com a sua escrita inventiva, é para ele inconsciente, ou seja, ele o faz sem saber. O que faz com que Lacan (2007) afirme ser ele um artista. Uma arte que como aponta Harari (2012) consegue tocar em pedaços do real, fazendo sulcos, em uma prática que ele faz com ardor.

Esse quarto aro que Joyce artificia com a sua escrita é singular, como o que o distingue não o incluindo em um caso geral. Tomando Joyce como paradigma Lacan (2007) nos mostra que diante da demanda do Outro o sujeito pode responder com um “mais isso não”, uma resposta que tem um valor não negociável, não tramitável, onde se assenta a sua singularidade.

Finalizando gostaria de acrescentar que Lacan (2007) nos convida, nesse seminário, à desconstrução. Desfazer para fazer de outra forma e ainda mais uma e quantas forem. Trabalho que alcança a clinica, e que nos leva a sempre considerar o espaço que o sujeito tem para, como artificie, transformar o seu sofrimento em criação, em um “fazer com” se valendo de sua estrutura. 

Autora: Mônica Maria Silva
Psicóloga clinica CRP 08/14090
Clinica L´espacepsy Psicanálise
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina.

Texto apresentado na II Jornada da Associação Livre Psicanálise em Londrina – 21 e 22 de Novembro de 2014

 

Referência Bibliográfica

Bulcão, M.S.M. Sintoma e sinthoma: duas vertentes na arte de James Joyce. Retirado de Harari, R. Como se chama James Joyce?: a partir do seminário Le Sinthome de J.Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002

Flesler, A. A psicanálise de crianças e o lugar dos pais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012

Lacan, J. O seminário 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Vegh, I. A angústia e a orientação do sujeito. Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 60-74, jan./jun. 2009.

Reflexões Sobre o Narcisismo

O interesse sobre o tema do narcisismo surgiu a partir do que se iniciou como um grupo de estudo e se transformou em estudo de cartel, do qual participo desde 2014. Começamos estudando Freud e neste ano iniciamos o estudo dos textos de Lacan com esse fio condutor: estudar o narcisismo em Lacan. Embora sejam reflexões proponho um direcionamento que aponta para a estruturação do sujeito como também para o trabalho com a clinica.

O que trago hoje tem muito mais de Freud e algumas primeiras reflexões sobre a teoria Lacaniana.

Freud trabalha esse tema principalmente no texto de 1914 que leva o narcisismo no título: Narcisismo: uma introdução. Nele ele trata do funcionamento libidinal a partir de três modos sequenciais: autoerotismo, narcisismo e escolha de objeto.

Tendo em mente a concepção do sujeito, como um ser faltante que buscará o reencontro com o objeto suposto de satisfação plena. Podemos entender que Freud vai então dizer que inicialmente o sujeito irá empreender essa busca de uma forma auto erótica, dando como exemplo a tomada do corpo, ou de partes do corpo como fonte de prazer e de satisfação pulsional. Um corpo fragmentado, que produz satisfação em suas diferentes partes. Ele dá como exemplo o bebê que suga o seu dedo buscando reproduzir a satisfação que foi encontrada ao sugar o seio materno.

O narcisismo demarca a saída desse modo de funcionamento libidinal auto erótico. O que seria para Freud o narcisismo? O investimento libidinal no próprio eu. Ou seja, não é mais em partes fragmentadas do corpo, mas em uma unidade – o eu. Assim ele diz que para sair do auto erotismo é preciso que uma ação psíquica aconteça que é a constituição do eu.

Temos que para que o sujeito possa investir em objetos externos é preciso que ele tenha a possibilidade de armazenar um quantum de libido no eu, para que ela possa ser, a partir disso, investida em objetos externos. Concomitante ao narcisismo temos a possibilidade do sujeito em unificar uma imagem corporal.

Lacan traz com a sua formulação sobre o estádio do espelho uma possibilidade de
compreendermos esse processo e o que se passa nessa relação com o outro. Embora se
localize essa fase por volta dos seis meses de idade, e nessa relação com a possibilidade de o
bebê contemplar a sua imagem no espelho, o estádio do espelho não se refere a essa
experiência concreta, mas aos efeitos dela, ou seja, ao tipo de relação da criança com o outro,
uma relação imaginária. Ao procurar a realidade de si, o sujeito – a criança se aliena a essa
parte com a qual ela se identifica e que lhe chega a partir do outro.

Aqui, nessa proposta de refletir sobre o narcisismo, gostaria de marcar essa importância do outro, da presença do outro. É importante para o sujeito que exista esse outro que devolva para ele essa imagem com a qual ele se aliena. Como também é importante que ele possa de forma um pouco mais autônoma investir em objetos externos. Um pouco mais autônoma, mas nunca completamente assim, pois como Freud já afirmava esse investimento em objetos externos é uma tentativa de reencontrar uma ilusão idealizada vivida na fase narcísica.

Uma primeira questão que levanto é: será que podemos pensar essas etapas (autoerotimso, narcisismo e escolha de objeto), não em tempos cronológico, mas em tempos lógicos?

Como um processo, uma operação, inserida nos tempos lógicos de constituição psíquica. Considerando esse sujeito em sua constituição a partir do enodamento dos três registros do Real, Simbólico e Imaginário.

Assim tanto no plano do autoerotismo, do narcisismo e da escolha de objeto estariam implicados também o modo de enodamento nessa estrutura de amor, desejo e gozo. Se não pensamos em cronologia não desconsideramos as possibilidades que o sujeito tem de se valer de sua estrutura para responder as demandas que lhe chegam. Não dá para desconsiderar o estado de dependência que um bebê de seis meses, por exemplo, possui, mas também não devemos desconsiderar as possibilidades que ele já tem de resposta.

Com esse direcionamento penso nas implicações do narcisismo na clinica. Quando recebemos um paciente em analise o trabalho que ele se propõe a fazer ali implica, poderíamos dizer um reposicionamento narcísico. Uma vez que ao se tratar de um tempo lógico, está ai com esse sujeito que, sendo adulto, não está mais as voltas com as primeiras experiências de surpresa e júbilo diante da assunção de sua imagem no espelho, mas são ainda os efeitos disso.

O que me faz pensar nessa relação entre o narcisismo e o percurso de uma análise.

Para me auxiliar nessa reflexão vou me valer de um conto, gosto muito desse estilo literário talvez porque penso que neles o autor construa de uma forma mais livre a história. E gosto do Guimarães Rosa, e tem um conto dele que há dois anos vem sempre a minha lembrança quando penso nesse tema e nessa relação que acabo de propor entre o narcisismo e o percurso de uma análise, uma vez que percebo na empreitada que o narrador faz a semelhança do trabalho feito em uma análise. O conto tem um titulo sugestivo: o espelho.

O narrador trata de uma tarefa que realiza com o proposito de explicar o que é um espelho e convida o leitor a segui-lo. Inicia dizendo sobre como as pessoas passam despercebidas pela importância que tem o espelho. Para explicar essa importância ele se lança em uma experiência que é de analisar a sua própria imagem, em uma tentativa de explicar como ela se constitui, se propondo a um modo de focar a visão de olhar não-vendo, assim diz que pouco a pouco no espelho via reproduzir-se a sua figura de forma lacunar, apareciam os elementos hereditário e exclama: Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto.

Momento de perceber os efeitos que tem para o sujeito o atravessamento da linguagem, desse discurso que o antecede, e que nem mesmo no ovo o pinto está intacto.

O narrador segue relatando a sua empreitada de ir aos poucos se desvencilhando desses aspectos que estão ali na sua imagem, para chegar ao que ele é realmente. Empreitada que poderíamos aproximar a essa busca por encontrar uma resposta que possa dar conta das grandes questões da vida: O que queres de mim? e Podes me perder?

Em um determinado momento ele narra o episódio em que entrando em um lavatório publico avista dois espelhos um de parede e um lateral que estão abertos em um ângulo propício, e assim faziam jogo. Enxerga ali o que descreve como uma figura humana, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo, dava náusea, causava ódio susto. Relata: E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Nesse ponto penso no dispositivo da análise que permite esse encontro com o outro em um ângulo que faz jogo, possibilidade de descristalizar pontos de fixação alienante, que permitem com que o sujeito possa se responsabilizar por essa parte desagradável, repulsiva e hedionda que é ele mesmo. Não é só olhar no espelho e não gostar do que vê, mas perceber a sua implicação nessa estética da qual ele se veste.

O narrador segue em sua empreitada, apagando os contornos até o ponto em que um dia ao olhar no espelho não vê nada, e exclama: Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… desalmado?

Tarefa árdua e difícil, pois a cada contorno apagado é também uma possibilidade de cair no vazio, nessa falta de contornos que sustentem o sujeito.

Penso aqui nesse apagamento dos contornos do que encobre o traço que representa o sujeito, esse traço que o distancia do sentido do Outro, o traço do desejo.

O narrador segue questionando o que é a sua existência, o que ele é? E fala dos sucessos que consegue que são de ordem muito intima, e afirma:

Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação.

A moldura do espelho continua ali, e mesmo os traços, pois os contornos são apagados, mas os traços não. E a partir dele o sujeito pode ir construindo uma outra estética de si, essa própria.

O narrador diz sobre o que muito mais tarde pode distinguir no espelho: um rosto, o seu rosto, um rostinho de menino, de menos-que-menino.

O narrador a todo momento dirige-se ao leitor na busca de um reconhecimento, e não é sem importância que nos trechos finais do texto essa busca se intensifica. E o texto termina em questão, em uma pergunta. Destaco aqui a importância do outro que o reconheça, autonomia, mas não isolamento.

Freud diz que diante do sofrimento o homem pode se proteger no isolamento, mas se não for capaz de amar pode sucumbir. Talvez pudéssemos dizer que se ele não for capaz, de amar, gozar e desejar.

Autora: Mônica Maria Silva

Texto apresentado no Fórum da Associação Livre Psicanálise Londrina em 27/04/2015.

O Percurso de Uma Análise…

O texto que aqui apresento é fruto do trabalho feito a partir do cartel sobre o narcisismo. Estudar sobre o narcisismo foi um convite que chegou no momento que iniciava o mestrado, e me pareceu poder ajudar no desenvolvimento do tema que eu me propus trabalhar na dissertação, que era analisar o trauma a partir de uma vivência de catástrofe.

Em um tempo anterior a este, antes mesmo que tivesse qualquer interesse pela psicanálise quando ficava sabendo sobre situações de catástrofes, essas em que as pessoas perdem tudo, casa, pessoas queridas, documentos, etc uma questão me vinha: como encontrar forças para recomeçar? Como seria sair de uma situação como essa? A partir da psicanalise reformulo então a questão: Quando esta cobertura imaginária desaba na frente do sujeito, o que ele faz? Quando perde as suas referencias, quando elas já não podem mais funcionar, o que o sujeito faz?

Existem vivencias que colocam o sujeito em uma situação como essa, e que são bem fáceis de serem localizadas, como por exemplo, as catástrofes e as guerras. Mas para a psicanálise o sujeito não se equipara ao ser, ao ente, a pessoa. Para a psicanálise o sujeito é esse da estrutura que opera a partir de uma lógica especifica. Assim uma experiência pode ser vivenciada para o sujeito como uma catástrofe sem que isso tenha que ser reconhecido assim no social. Estou tratando aqui deste encontro com o real, com o impossível de ser recoberto pelo imaginário ou significado pelo simbólico.

Quando o real comove o sujeito, ele se abala, há um abalo em sua estrutura, na distribuição, nesta acomodação que ele faz em sua estrutura.

A partir do que tenho estudado nos grupos, seminários e textos lidos, em Lacan e em seus comentadores, penso nesta possibilidade do real poder entrar por qualquer uma das cordas, pois todos os registros estão presentes nos demais. Então para fazer essa relação com o narcisismo, reflito sobre essas vivências que podem ser experimentadas pelo sujeito como uma ferida narcísica. Esta experiência pode leva-lo, por exemplo, a buscar uma análise. Mas uma análise também pode promover, ou alcançar este pedaço do real pela corda do imaginário. É a partir deste ponto que pretendo falar sobre o que dá titulo ao meu trabalho: o percurso de uma análise. Um percurso, porém não o caminho todo. Um recorte talvez.

Para tanto vou me servir de um conto do João Guimarães Rosa, que tem um título sugestivo: O espelho. Este conto chegou até mim há uns dois anos, logo no final de nossa primeira jornada. E o sentimento que tive ao lê-lo é de que ele refletia o percurso de uma análise. E desde então pensei em escrever sobre esta articulação com o narcisismo me servindo dele. Fiz uma apresentação sobre este tema no Fórum este ano, acredito que alguns de vocês estavam presentes e possam se lembrar, agradeço as contribuições dos colegas que lá estavam e que me instigaram a continuar trabalhando. Uma preocupação foi de, ao utilizar o conto, forçar sentidos dentro do texto para que ele coubesse dentro do meu sentimento. Assim não quero forçar, mas apenas dizer de algumas construções teóricas que pude alcançar. E convido vocês a me acompanharem e no final me ajudarem a continuar neste percurso contribuindo com as suas colocações.

No conto de Guimarães Rosa a empreitada que o narrador faz parece assemelhar-se ao trabalho feito em uma análise. O narrador trata de uma tarefa que realiza com o proposito de explicar o que é um espelho e  convida o leitor a segui-lo. Inicia dizendo sobre como as pessoas passam despercebidas pela importância que tem o espelho.

Ele diz sobre uma experiência que o levou a procurar-se, a procurar “o eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio” (Rosa, 2008, p.79).

Essa experiência acontece um dia quando ele entra em um lavatório publico e avista dois espelhos um de parede e um lateral que estando abertos em um ângulo propício, assim faziam jogo. Enxerga ali o que descreve como uma figura humana, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo, dava náusea, causava ódio susto. Relata: “E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?” .(Rosa, 2008, p.79)

Penso nesta como uma experiência em que existe uma falha no que supostamente sustenta o sujeito em uma posição imaginária. Podemos entender isto a partir das operações que se dão na constituição do sujeito e na sua relação com o Outro que Lacan(1998) trabalha na formulação sobre o estádio do espelho que não se refere a uma experiência concreta, mas aos efeitos dela, ou seja, ao tipo de relação da criança com o Outro, uma relação imaginária. Ao procurar a realidade de si, o sujeito – a criança se aliena a essa parte com a qual ela se identifica e que lhe chega a partir do Outro. E que por estar ali nesta experiência com o espelho, além de chegar de forma invertida é também uma imagem virtual.

Ao entendermos que esta é uma experiência psíquica e não concreta, é possível situa-la dentro do que Flesler (2012) denomina de tempos lógicos de constituição do sujeito. Se não pensamos em cronologia não desconsideramos as possibilidades que o sujeito tem de se valer de sua estrutura para responder as demandas que lhe chegam. Não dá para desconsiderar o estado de dependência que um bebê de seis meses, por exemplo, possui, mas também não devemos desconsiderar as possibilidades  que ele já tem de resposta. Com esse direcionamento penso nas implicações do narcisismo na clinica. Quando recebemos um paciente em analise o trabalho que ele se propõe a fazer ali implica, poderíamos dizer um reposicionamento narcísico.

Uma vez que ao se tratar de um tempo lógico, está ai com esse sujeito que sendo adulto não está mais as voltas com as primeiras experiências de surpresa e júbilo diante da assunção de sua imagem no espelho, mas são ainda os efeitos disso.

O espelho não devolve uma imagem fixa, a cada encontro alguma coisa não se encaixa, e quando esta cobertura imaginária falha, vacila, o sujeito pode defrontar-se com esta parte desagradável, repulsiva e hedionda que é ele mesmo. Diante do sofrimento que isto pode causar, o sujeito, assim como o narrador pode querer procurar-se. E procurar-se no espelho.

Quem se olha no espelho, como diz o narrador “o faz partindo de um preconceito afetivo (…) ninguém se acha na verdade feio” , o que se busca, continua ele, é “ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão” (Rosa, 2008, p.79). Existem muitas propostas, não só terapêuticas que oferecem tal solução. O jogo do espelho pode até ser divertido, os parques utilizam-se deles para nos divertir, com as imagens distorcidas e caricaturais de nós mesmos, como lembra o narrador.

Mas na análise se o sujeito busca o espelho, o que encontra é a presença do analista. Assim penso no analista não como um espelho, mas que por sua presença , assim como assina-la Vegh (2001) sustenta uma dimensão imaginária, que não devolve ao sujeito uma imagem com a qual ele tenha que se identificar, e que por não ir por esta via possibilita tornar presente o real que coloca limite no campo do Outro. Esse limite que está ali onde o sentido que vem do Outro falha, que se coloca em cena, por exemplo, no assinalamento do tropeço das palavras ditas, ou na surpresa que faz calar a partir da intervenção que se escuta.

É no encontro sempre faltoso com o Outro, que uma análise propicia, em um ângulo que faz jogo, que o sujeito pode ir pouco a pouco percebendo a sua implicação nessa estética da qual ele se veste e ir se responsabilizando por isso.

O narrador segue em sua experiência de procurar se encontrar no espelho, no modo de focar, na visão: olhar não vendo. E pouco a pouco a sua figura ia se reproduzindo no espelho de forma lacunar, e ele ia percebendo o elemento hereditário “ as parecenças com os pais e avós” , as ideias e sugestões de outrem que se materializavam em sua imagem, e exclama: “Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto”(Rosa, 2008, p.82). Momento de perceber os efeitos que tem para o sujeito o atravessamento da linguagem, desse discurso que o antecede.

O narrador segue relatando a sua empreitada de ir aos poucos se desvencilhando desses aspectos que estão ali na sua imagem, apagando os contornos até o ponto em que um dia ao olhar no espelho não vê nada, e exclama: Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… desalmado? (Rosa, 2008, p.83).

Tarefa árdua e difícil, pois a cada contorno apagado é também uma possibilidade de cair no vazio, na falta de contornos que sustentem o sujeito. Se na análise o analista sustenta a sua presença, possibilita o trabalho de desvencilhamento dosando a angustia que esse caminhar propicia. Angustia antecipatória do encontro com o objeto. Posso faltar como imagem no espelho? Podes me perder?

Se o trabalho continua, é possível pouco a pouco prosseguir, com cautela nesse apagamento dos contornos do que encobre o traço que representa o sujeito, esse traço que o distancia do sentido do Outro, o traço do desejo. Até o momento de virada em que o sujeito contando com sua estrutura (Real/Simbólico/Imaginário), a partir do dispositivo da análise, promove uma movimentação, resignificando, incluindo outras possibilidades em sua existência.

O narrador segue questionando o que é a sua existência, o que ele é? E fala dos sucessos que consegue que são de ordem muito intima, e afirma:
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação. (Rosa, 2008, p.84).

A moldura do espelho continua ali, e mesmo os traços, pois os contornos são apagados, mas os traços não. E a partir dele o sujeito pode ir construindo uma outra estética de si, apropriando-se do seu desejo.

O narrador diz sobre o que muito mais tarde pode distinguir no espelho: um rosto, o seu rosto, um rostinho de menino, de menos-que menino.

Volto ao título do meu trabalho : o percurso de uma análise, para pensar aqui para onde este percurso pode apontar e seguindo Isidoro Vegh penso que uma análise não visa que o sujeito não adoeça mais, mas que ele possa andar pela vida com menos sofrimento. Freud (1914) no texto Narcisismo: uma introdução, fala que se diante do sofrimento o homem não for capaz de armar pode adoecer. A partir de Lacan, se consideramos o sujeito a partir de sua estrutura, que enoda o real, o simbólico e o imaginário, e também amor, desejo e gozo, poderíamos reformular o texto Freudiano e acrescentar se ele não for capaz de amar, desejar e gozar.

Autora: Mônica Maria Silva
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina
www.associacaolivre.com.br
e-mail: monicasilva@associacaolivrepsicanalise.com.br

Texto apresentando na III Jornada da Associação Livre Psicanálise em Londrina – em 21 de novembro de 2015.

 

Referência Bibliográfica

Flesler, A. A psicanálise de crianças e o lugar dos pais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

Freud, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Obras completas de Sigmund Freud (Vol.14, p.81-108). (J.Salomão. Trad.) Rio de Janeiro: Imago. (1996 – Original publicado em 1914)

Lacan, J. O estádio do espelho como formação da função do eu. In: Escritos (p.96 – 103).Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Vegh, I. As intervenções do analista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 2001.

Rosa, J.G. (2008) O espelho. In Rosa, J.G. Primeiras estórias (p.76-85). Rio de Janeiro: Mediafashion.

Saber e Repetição

O estudo sobre a temática da repetição esse ano provocou em mim algumas inquietações e questionamentos que me proponho a compartilhar com vocês.

Estudar um conceito em psicanálise é um trabalho que vai para além dos livros e dos textos, convoca a uma experiência que inclui também a clínica. Para mim, ao menos, é um vai e vem entre textos e reflexões sobre uma prática.

E assim também me propus a escrever este texto que agora apresento a vocês.

Quando pensei no tema a trabalhar aqui, confesso que não foi fácil, pois todo ano é assim, temos que em um determinado momento fazer essa escolha para que a organização dessa Jornada possa caminhar, distribuição das mesas, confecção dos materiais, e tudo mais. Então o que precipitou naquele momento de escolha foi o saber e a repetição. Poderia ter sido tantas outras coisas, mas foi essa.

Pensando na clínica, como o saber se relaciona com a repetição? Bom um paciente pode procurar por uma análise porque acredita, ou se incomoda com algumas repetições em sua vida. E quer saber porque isso acontece com ele. Mas outras vezes um paciente pode também chegar na análise querendo saber como resolver alguma questão em sua vida, alguma situação nova que tem que enfrentar, por exemplo. Nessas duas situações que acabo de descrever existe a referência a um saber, e a uma situação que faz com que as coisas não andem bem.

Mas que coisas são essas? Seguindo Lacan ao escutar este sujeito estamos advertidos de que ele ao dizer sobre o que lhe incomoda, não sabe o que diz. É um sujeito dividido entre o que diz e o que sabe (dividido entre saber e verdade). Chega nos dizendo que a maneira como ele ajeitou as coisas na sua vida até aqui não está funcionando, chegou em um ponto em que algo está tão incomodo que ele resolveu buscar uma ajuda.

Não é só um trabalho de análise que se pode procurar em situações assim. Alguns recorrem por exemplo aos textos, a livros, a um saber também. Existem livros que estampam esta promessa em suas capas, e em títulos chamativos. O que o sujeito busca? Uma referência, busca em algum lugar uma espécie de saber que possa ensinar como ele pode continuar caminhando pela vida de preferência sem sofrer. Procura por uma saída, uma mudança.

É interessante que uma categoria de livros assim receba o nome de autoajuda. Pensando em autoajuda como uma ajuda que o sujeito consegue por ele mesmo. Ele mesmo consegue se autoajudar. O que parece é existir um engodo, porque se assim fosse ele não precisaria do livro. Penso que aí também existe uma tentativa de encobrir a impossibilidade de existir um saber que de conta da verdade. Ou seja, um saber que possa dizer tudo.

Essa não possibilidade de existência de um saber que de conta da verdade está articulada com a própria constituição do sujeito. Ao sermos seres falantes somos afetados pela linguagem, com a linguagem já não fazemos relação direta com as coisas, não existe encaixe perfeito. Sempre irá existir uma falta que nunca poderá ser completada. Contudo a experiência de satisfação inscreve no psiquismo a existência de uma completude possível, miticamente experimentada, porém nunca mais encontrada.

Ao ser falado o sujeito, para existir, se aliena a essa fala respondendo com o seu ser (com sua própria falta) a uma falta que localiza no Outro. O bebê chora e a mãe diz tem fome, o bebê responde a essa demanda do Outro e se aliena a um significante vindo dele. Para existir como sujeito será necessária uma outra operação, a de separação, o sujeito se separando da alienação significante e nesta operação destacando um significante que o represente, se separando do Outro, se dividindo, marcando uma falta em ser um significante que completa o Outro.

A partir de Freud entendemos que a falta é estrutural, não temos como nos livrarmos dela. Esta impossibilidade de completude como um vício estrutural (a falta no Outro e no sujeito) é o que põe o desejo em movimento. No primeiro encontro com o desejo este se inscreve para o sujeito como desejo do desejo do Outro.

Porém existe aí também a tentativa de recuperação de um gozo, pois temos duas condições do objeto de causa do desejo, a partir da ausência, e de objeto de gozo, a partir da presença. O desejo inscrito para o sujeito como desejo do desejo do Outro, na operação de alienação, comporta um efeito de gozo, por uma suposição de assim completar a falta no Outro.

Na operação de separação o desejo estaria relacionado à tentativa de reencontrar um objeto suposto de satisfação plena, um objeto ausente que causa o desejo.

O sujeito chega a análise adoecido por um gozo que o retem, em uma condição de existência como desejo do desejo do Outro.

Qual o trabalho a ser feito? O que uma análise pode produzir e como isto tem relação com a repetição?

Será que o sujeito chega repetindo um sofrimento? A partir da leitura que Lacan faz dessa temática em Freud e principalmente pelas modificações que este introduz no texto Mais além do princípio do prazer, onde Freud vai vincular a repetição à pulsão de morte, ou seja, a um desligamento em oposição a ligação promovida pela pulsão de vida. Temos a repetição atrelada a inscrição da diferença, pois para haver diferença um desligamento, um efeito de rompimento se produz. E a partir daí uma possibilidade de mudança. De uma mudança de posicionamento em relação a falta.

A partir do que Freud vai desenvolvendo neste texto temos a repetição atrelada a um fato de estrutura, ou seja, não é algo que deve ser superado, faz parte da estrutura, acontece uma única vez e a partir de então se torna necessária.

Necessária para que? Para marcar uma diferença, para que uma mudança possa se produzir. A partir destas reflexões, e ao escrever este texto pensei se a repetição como fato de estrutura não estaria relacionada com a operação de separação. Penso que não é a toa que os nomes são diferentes, se a operação de separação e a repetição fossem a mesma coisa não teriam nomes diferentes. Então uma não se subsumi na outra. Porém o que me fez pensar nesta aproximação foi que tanto em uma como em outra temos como produto um significante que representa o sujeito.

O sujeito chega na análise dizendo sobre isto que se reproduz em sua vida, se não da mesma forma com os mesmos efeitos para ele. Repete/reproduz como tentativa de sair da mão do Outro, da prisão em um gozo que o adoece.

Na análise o trabalho é de suspender aquilo que se acredita saber. Penso em uma dupla suspensão de saber, do analista pela via do operador desejo do analista e do analisando pela via da quebra de sentido. Interrogando-se sobre o que mais pode ter aí? Vetorizando sua dúvida não por aquilo que ele chega afirmando que carece de sentido, mas para o que está construído para ele como uma verdade inquestionável. Uma abertura para que até mesmo tempo e espaço possam perder uma certa estabilidade que monta a consistência histórica desse sujeito.

Pela via da transferência, em um trabalho de análise, é possível alcançar a repetição, como uma operação produtora de diferença / corte por onde um novo significante pode ser produzido pelo sujeito. Um significante que o represente para outro significante. Então como se pode alcançar a repetição pela transferência? Desconstruindo, descristalizando sentidos, escavando, fazendo buraco para que algum encontro com o sem sentido possa tocar um pedaço do real. É pela via da busca de saber em um sujeito suposto a possui-lo que o analisando pode chegar mais próximo da verdade de seu desejo do saber inconsciente que o determina. Para ter desejo temos que marcar uma falha, uma abertura para desejar.

Podemos pensar que ele encontra o que ele não procurou. Procurou por um saber, mas algo retorna para ele, do que ele mesmo traz e que causa surpresa, que abala o sentido que até então ele tinha encontrado. Neste trabalho de escavar os sentidos é que o analista, sustentando a sua função, pode acessar a repetição, pela via da transferência.

Porque eu coloquei sustentando a sua função? Porque pode ser que em algum momento ele não sustente. E por mais que o paciente retorne, repita um caminho, volte a cada seção, se ele não encontra o analista, não há transferência que possa levar a repetição no sentido de acessa-la. O “tratamento” pode continuar, e um pode fingir que não morreu e o outro que vai vivendo, em um trabalho que embora possa parecer que produza algo diferente resulta na continuidade de uma modalidade de gozo.

De que mudança estamos falando? Na análise de uma mudança de posicionamento. Isso não quer dizer que grandes mudanças na realidade desse sujeito aconteçam que possam servir como atestado de que houve repetição. Essa mudança de posicionamento talvez possa enganar quem está de fora e  busca pistas de se houve ou não houve repetição. Será que mudou? Percebesse que a pessoa está diferente, mas não se sabe muito bem localizar em que.

Mas para o sujeito isso não engana. Embora também não consiga precisar quando ou o que necessariamente mudou, sabe, porque sente de maneira diferente, as coisas da realidade que passam a afeta-lo de outra forma. Não porque elas mudaram, mas por uma modificação em sua estrutura, por um efeito de sentido.

Eu gosto de pensar em formas de ilustrar as formulações que vou fazendo, isso me ajuda a dar mais concretude as coisas que me parecem tão abstratas. Em textos anteriores usei para isso contos que retirei da literatura. Esse ano não me surgiu nenhum o que me possibilitou fazer diferente inventar um, bem simples, não é um conto, mas uma estorinha bem simples que não deixa de ter referência as estórias que escutamos em nossas clinicas.

É como se o paciente que chegasse para a análise se encontrasse em um barco no meio do oceano. Para ele, até então, tudo estava bem em viver assim, mas algo pode estar se passando que faz com que essa tranquilidade fique ameaçada. Ele chega querendo saber como continuar tranquilo ali. No decorrer do trabalho, a partir do seu dizer, outros elementos podem ser incluídos nesta cena, elementos que se precipitam e são assinalados pelo analista. Existe um céu, sol, estrelas, elementos que vão propiciando uma modificação na posição do sujeito em relação a essa cena que ele constrói. Tem um trapiche, pode sair do barco, caminhar, dirigir um carro, voar de avião. Penso que não é o fato de que novos significantes possam ser incluídos na cena que produz uma diferença, mas o posicionamento do sujeito em relação a eles. Reposicionar o movimento como causa de seu desejo e partir desse ponto poder decidir até mesmo ficar parado apreciando a paisagem com maior tranquilidade, ou voltar para o barco, aquele em que ele chegou em sua análise.

O atravessamento da linguagem faz buraco e o fantasma é uma construção que o sujeito faz para dar conta dos efeitos que isso tem para ele. Essa construção fantasmática comporta para o sujeito uma impotência imaginária, na maneira como ela dá sustentação a existência desse sujeito, como aquele que deve garantir a falta no Outro.

Na estrutura isso que é da ordem do que não pode ser recoberto pelo imaginário ou significado pelo simbólico diz respeito ao Real [ao que não cessa de não se inscrever]. Lembrando que todos os três registros têm igual importância, tanto o Real, quanto o simbólico, quanto o imaginário, fazem parte da estrutura. A forma como estão acomodados é que pode ter uma relação com este efeito de sofrimento para o sujeito.

A análise permite transformar essa impotência imaginária em encontro possível com o Real. Com a impossibilidade de garantir a falta no Outro, e poder continuar existindo como causa de desejo. E como se faz isso? É dizendo para o sujeito que as coisas são assim? Talvez para alguns de nós isso, essa busca por um saber referencial na psicanálise faça parte da contingência que monta essa relação do saber com a falta.

E quando vamos buscar explicação nos textos de Lacan o que ele nos convoca? A um trabalho, a muito trabalho. A um trabalho que produz logo de cara um abalo os sentidos cristalizados, na lógica que estamos acostumados em um pensamento de causa e efeito.

Precisamos dar muitas voltas no texto, repetidas voltas, para poder ir escrevendo com mais tranquilidade um texto que seja próprio. Enquanto ainda não podemos, nos servimos das letras daqueles que nos antecederam nesse trabalho de ir além.

Autora: 

Texto apresentado na IV Jornada da Associação Livre Psicanálise em Londrina – Novembro/2016.

Efeitos do Desejo

Queixas X Demanda X Desejo dos Pais

Pedro chega com quase 5 anos e é caracterizado desde pequeno como uma criança que não dava trabalho, era quietinha, dormia o dia todo, nunca chorava, “era bem bonzinho”. A queixa da mãe é a de que Pedro não interage com os as outras crianças, não pede o que quer, não acompanha os amiguinhos na escola. Recolhidas as queixas iniciais, a direção do trabalho foi a de diferenciar a demanda dos pais da possibilidade de uma questão analítica referida à criança. Este trabalho requer o atendimento paralelo dos pais, para possibilitar a elaboração de um luto, pela perda da ilusão de que uma criança real poderia corresponder à imagem da criança narcísica do desejo. (ZORNIG, 2006).

A partir disso, foi possível delimitar o quanto as demandas eram diferentes, por parte dos pais e da criança. As queixas do pai com relação ao filho tinham muito a ver com sua própria história. O pai tem muita preocupação de que o filho não apareça, não pode brincar, se sujar e fazer malcriações, por assim parecer um filho mal cuidado. A mãe queria uma menina, branca e Pedro passou da hora do parto, nasceu escuro. Logo de saída Pedro chega ao mundo desencontrado do filho esperado, sendo que tal identificação é necessária para a entrada na filiação. Os pais vieram pedindo uma reparação, que lhes devolvessem um filho de acordo com seu ideal.

Por outro lado, nota-se que eles não reconheciam as manifestações da criança diante da separação, relatam que Pedro não manifestava reação. Porém Pedro traz personagens para os atendimentos, falando de feridas e mortes, atestando registrar a separação de pessoas importantes, da entrada na escola. Ao mesmo tempo, os cuidados eram muito no sentido de invadir o corpo da criança, tomado apenas pelo aspecto biológico, não era dado um sentido aos atos dela, nem atribuídas sensações que lhe dessem notícia de um corpo. Segundo (Lacan, 1969), para o devir de um sujeito, é necessário um desejo “que não seja anônimo”. Esse desejo tem a função de nomear, de transformar o grito em apelo, cuja conseqüência é a de “dar” lugar na rede significante. Há, então, a busca incessante de significantes pelo infans que o possam representar. Esse movimento se estabelece na tentativa de ocupar um lugar no desejo do Outro. (ZORNIG, 2006).

Os pais tomam Pedro num lugar de alguém que não pode saber. Ao supor o filho nessa posição, acabam impedindo-lhe o acesso ao saber. Não o deixam participar de atividades fora da família com a escola. Tais atividades possibilitam uma vivência prática do que os alunos aprenderam, possibilitando uma atribuição de sentido ao que se aprendeu. E é isso que possibilita o aprendizado.

Os pais de Pedro têm bastante medo de deixar os filhos experimentarem isso que eles consideram “estranho”. O estranhamento com relação ao social pode dizer do estranhamento sentido por eles com relação a esse filho, que é reatualizado frente ao olhar de estranhamento do outro. Não conseguem admitir nenhuma produção de Pedro como um saber, sempre as toma como “bagunça” ou “frescura”, algo sem sentido, que não visa uma construção. A ferida que não cicatrizou faz a filiação ser pela via do que fracassa, do que fica como débil, incapaz, que não entende as coisas.

(…) Fica marcado um impossível no real, que fica ali e não pode modificar –
se.(…)? algo próprio o que se destruiu. Aquilo que se busca realizar num
filho.(…)O narcisismo e a trasmissão em outra geração.(…)Não se pode
reconhecer – se nele. Então, não se tem onde situá – lo. E o primeiro lugar pode
ser o de um refugo. (TKACH, p.194 ).

É possível verificar então o quanto a queixa dos pais, de que Pedro não aprende tem a ver com seu próprio desejo. Isso ocorre pela própria estruturação do sujeito humano. Para Lacan (1967 apud Zornig, 2006) o infans vem ocupar um lugar marcado pelo desejo do Outro, se alienando a ele. A criança humana, ao nascer, por sua própria imaturidade biológica, não tem como se ver inteira; é o olhar do Outro que vai lhe dar uma imagem antecipada de uma unidade que não corresponde ao que ela vivencia (um corpo despedaçado). Dessa forma, a criança é capturada por este olhar que funda uma imagem, com o qual ela se identifica, ficando alienada a ela. Mas ali o sujeito se escraviza. Necessita encontrar o intervalo no discurso do Outro para constituir o seu próprio desejo, reencontrando sua própria falta.

Sintomas

Do lado de Pedro, é possível verificar o quanto essa dimensão do imaginário falhou: ele não dava conta de ver sua própria imagem no espelho, nem de ver suas fotos de pequeno. Depois, passou a não se olhar mais no espelho, e recobria sua própria imagem e fazia o mesmo com as figuras das revistas. Pedro também não tinha noção de seu próprio corpo, do espaço que ele ocupava. Não falava, babava o tempo todo e enfiava objetos na boca. Também tinha frequentes dores de garganta, vômitos, diarréias, e não comia. O não falar dele pode ser efeito de que não se falava com ele, nem era escutado, ele não era tomado num lugar de falante. O Outro sabia dele sem ele precisar dizer.

Por outro lado situava-se num conflito: se correspondia ao desejo de seus pais, colocando-se na posição de débil, por outro lado, recusava-se a corresponder totalmente a esse fantasma. Fazia sintomas de recusa (alimentar a princípio), adoecia, se entristecia, denunciando que algo não ia bem. Os sintomas infantis são uma maneira da criança denunciar sua não conformidade ao ideal, demonstrando sua própria subjetividade. A maneira pela qual o sujeito interpretará o desejo do Outro sempre o levará para um impasse. Temos então, o infans situado na condição ativa, participativa, na construção de sua subjetividade. Porém, sua escolha não é fácil, aparece como duas possibilidades: ser devorado ou abandonado. O sujeito fica sem saída. (Zornig, 2006 & Whitaker, 2003).

Para sair desse impasse, é necessária a entrada de um terceiro nessa relação, que possibilite a Pedro a existência em um outro lugar, menos mortífero. Neste sentido, a entrada na escola foi importante nesse processo. A professora vem com uma nova demanda, a de que fale, é tomado por ela no lugar de alguém que está na linguagem, e a partir disso, ele começa a falar. E lhe dá um lugar, faz parte de um grupo, tem que respeitar regras, cumprir tarefas. Ou seja, tem que considerar a existência do outro, respeitar o espaço dele e delimitar um espaço para si. Seu sintoma aparece quando a demanda da professora entra em conflito com a dos pais: ela lhe pede que aprenda, e ele se inibe, recua diante do saber.

Desejo do Analista e Efeitos do Tabalho

No início de seu atendimento, Pedro só entrava junto com um dos pais, ficava no colo, se escondia atrás deles. Não me olhava, não me respondia, parecia-lhe extremamente penoso estar ali. Em seguida, quando começou a interagir, era somente a eles que se dirigia, ficando de costas para mim. Os pais demandavam que ele falasse comigo e faziam tentativas, porém, era visível que ele mesmo não tinha recursos. Quando Pedro pôde se engajar com os objetos, imediatamente, os pais se retiram. Depois de pouco tempo, Pedro vai até eles e os dois se engajam nessa atividade, me excluindo. De qualquer forma, ficavam sempre entre dois, não havia possibilidade de um terceiro. A escolha dos brinquedos de Pedro e dos pais testemunhavam a relação que se estabelecia entre eles: eram sempre brinquedos “devoradores”. Quando Pedro começa a falar, dizia palavras soltas, que necessitavam sempre da tradução dos pais. Além disso, sua fala era um eco do que eles contavam, era difícil diferenciar o que era dele e o que era do pai (discursos colados).

Diante disso, a direção de tratamento foi a de promover uma separação, barrar esse gozo devorador, possibilitando a Pedro se perceber amado sem ter que se pôr de objeto de completude desses pais. Lacan (1967) indica que a função do analista é a de se opor a que o corpo da criança responda como objeto parcial da fantasia parental. (ZORNIG, 2006). Porém, verificou-se o quanto essa relação estava frágil, foi necessário primeiro restabelecer o que falhou na alienação para depois promover uma separação. Pedro, apesar da presença física constante do pai, não a tinha no psiquismo, não tinha a palavra do Outro para poder representá-lo em sua ausência e dar conta de descolar-se dele.

A partir do olhar diferenciado propiciado pela situação de análise, Pedro começa a responder de maneira diferente, reagindo diante da invasão do pai. Reclama quando este lhe tolhe os movimentos em suas brincadeiras, faz manha. Pedro começa a brincar com tinta. Os pais o repreendem por “fazer bagunça” e ele então passa a repeti-la, direcionando a “bagunça” a eles. Também usa personagens ferozes para falar desse enfrentamento. Os movimentos de agressivização por parte de Pedro talvez possam ser interpretados como tentativas de sair dessa relação com o outro. Antes, não sentia-se invadido, agora já sente. Tem que aprender até onde vai ele e onde começa o outro para não se perder. Por outro lado, vive o conflito de amar esse pai e não poder dispensá-lo, e ter medo de perder esse amor. Ele então, passa a pintar-se e limpar em seguida, e chega a, por um tempo, parar de mexer com as tintas.

Com o tempo, começou a haver divergências entre o que Pedro queria dizer e o que os pais entendiam, denotando um espaço entre as duas subjetividades. Geralmente eram coisas que o pai não dava conta de escutar. Depois eles próprios puderam admitir para o filho que ele precisava falar para poder ser entendido.

Pedro começa a falar para os pais não entrarem, porém ainda não consegue entrar sozinho, e isso se repete por muitas sessões. Com o tempo, a partir de uma autorização e uma sustentação do pai, consegue fazê-lo. Na primeira vez, fica bravo e brinca de lavar a sessão inteira, respeitando a palavra dos pais. Ao terminar a sessão, pela primeira vez perguntou se eu ia embora também. Começa a solicitar os pais de forma mais elaborada (mostrar suas produções).

Nas sessões seguintes, começa a simbolizar uma ausência, chamar quando fica sozinho e notar a ausência das pessoas, perguntando por elas. Também começa a nomear as coisas que quer: ir fazer xixi, ir embora, ir com o pai. Benhaim (2006) diz que a criança, por meio do pensamento, tem acesso a um primeiro grau de independência, a um primeiro apaziguamento de seu desamparo. Segundo Freud (1920), toda simbolização implica um objeto ausente e, por isso ele valorizou a alternância ausência-presença da mãe, nos primeiros tempos de vida do sujeito, que coloca para ele o enigma do desejo.

A relação com o pai muda, para o sentido de uma identificação: pega uma carteira, e diz “trabaiá”. Por outro lado, suas brincadeiras que sempre se repetem dizem respeito aos serviços domésticos: lavar a louça, passar pano, passar o rodo, cozinhar.

O olhar diferente por parte do analista, possibilitou também ao pai uma mudança de olhar para seu filho. Passa a reconhecer o quanto Pedro está mais esperto e este responde a isso, localizando e nomeando figuras nas revistas. Os pais já dizem para ele contar, não diz mais tudo a respeito de Pedro. Em uma sessão, coloca uma questão de se as crianças entendem o que se fala para elas. Pedro então, a partir disso, começa a brincar com “hominhos”, que serão um companheiro constante nos atendimentos a partir de então. Troca o bicho, um animal primitivo, que se comunica por mímica (que era o que ele fazia), por um homem, que fala. Também brincou de faz de conta, pela primeira vez armando uma cena mais longa e com diversos elementos.

Pedro começa a tomar a iniciativa de falar de suas coisas: ao falar do machucado do bicho, fala de uma “pancada”, que o pai toma como um discurso e mostra que realmente ele chegou machucado da creche. Pedro contou que um menino o empurrou,  e o pai diz ser o primeiro lugar em que ele falou sobre isso. Também começa a se fazer ver: bate na porta antes de entrar, chuta a parede, abre a porta e espia. Começa a brincar de olhar pelo olho mágico. Em seguida, olha e tampa o buraco, impedindo-me de olhá-lo, e isso se repete por muitas sessões. Posteriormente, vai sozinho ao banheiro e fecha a porta. Pode-se pensar em um brincar de esconder-se, de já poder se furtar ao olhar do outro sem deixar de existir. Busca de uma privacidade, delimitação de um espaço íntimo. Também começa a brincar de esburacar esse corpo (enfiar papel nos buracos, ver água ir embora pelo ralo da pia, do tanque, da descarga). As coisas começam a ter uma descontinuidade.

Nos atendimentos, ao brincar, Pedro fala o tempo todo do impasse no qual se encontra. Os animais que mordem e dão medo, mas que também podem ser jogados, pisados e postos de castigo; a sujeira com a tinta lavada em seguida, os cachorros que brincam com água, mas apanham por causa da bagunça, os machucados do animal e que falam de um corte. Ao ir contando sua história, as perdas vividas, o lugar no qual veio ao mundo, a posição que tomou diante dele, vai vivenciando essa dificuldade de cair desse lugar para poder asceder a em lugar de sujeito.

É como objeto a do desejo, como isto que ele foi para o Outro em sua ereção de
vivente, como o wanted ou I’unwanted de sua vinda ao mundo que o sujeito é
chamado a renascer para saber se ele quer o que deseja. (LACAN, apud
SAURET, 1997)

Autora: Mônica Fujimura Leite
Mestre em Educação Escolar pela UEL
Especialista em Transtornos Globais do Desenvolvimento na Infância e Adolescência pelo Centro Lydia Coriat e UNIFEV
Especialista em Psicanálise pelo IMBRAPE e UNIDERP
Psicóloga pela UEL
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina
Atualmente atua no CREAS de Ibiporã e atende em clínica particular em Londrina.

 

Referência Bibliográfica

Benhaim, M. & Jano, I.B. (Trad.) A Intimidade Materna: A contribuição da psicanálise na pesquisa sobre os bebês. In: Estilos da Clínica, v.11 n.20. São Paulo, jun.2006.

Freud, S. Além do Princípio do Prazer (1920). In: FREUD, S. Obras Completas. vol.XVIII, Imago, 1976, cap. 3 e 4.

Sauret, M.J. Sminário Internacional – Textos Selecionados. Sessão Paraná, Escola Brasileira de Psicanálise. Curitiba, Set. 1997.

Tkach, Reflexões sobre nossa prática terapêutica. In: JERUSALINSKY, A. e Cols. Psicanálise e Desenvolvimento Infantil: um enfoque interdisciplinar.____:Artes Médicas, ____.

Whitaker, C. O Sintoma da Criança como Efeito do Gozo Materno: entrevistas preliminares. In: Estilos da Clínica, v.8, n.15. São Paulo, jun.2003.

Zornig, S.A. Da Criança Sintoma (dos pais) ao Sintoma da Criança. In: Revista do Departamento de Psicologia da PUC – SP. São Paulo, 2006.