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As Operações de Causação do Sujeito e a Interpretação Psicanalítica

O título proposto sugere duas vias de trabalho. Primeiro apresentar o que Lacan propôs, no seminário XI, como as operações de causação do sujeito. E a segunda via diz respeito a especificar qual a possível relação entre a interpretação psicanalítica e as operações de causação do sujeito.

Antes de nos introduzirmos nestas questões, penso ser válido apresentar quais foram meus interesses pela escolha do tema. A prática clínica me gera inúmeras questões, dentre elas uma tem tomado corpo durante esses anos de trabalho: qual é a lógica que rege uma interpretação psicanalítica? Como e a partir do que devemos intervir? O que orienta uma escuta psicanalítica?

Nos últimos capítulos deste seminário Lacan trará as operações de alienação e separação para trabalhar a constituição do sujeito. Trata-se, efetivamente, de como se produz um sujeito. Esses processos entre o sujeito e o Outro são circulares, mas não de reciprocidade.

Lacan nos mostrará que o sujeito somente se constituirá como tal pelo assujeitamento ao campo do Outro, lugar onde se situa a cadeia de significantes que ordenará aquilo que se fará presente no sujeito. Lacan (1998) nos diz: ¨Tudo surge da estrutura do significante¨ (p. 196). Rabinovich (2000) lembrará que para Lacan ¨o sujeito é causado, nunca é causa de si¨(p. 90).

Lacan explicará a alienação a partir de uma lógica da reunião, dizendo que é diferente adicionar coleções ou reuní-las. No primeiro caso a somatória de elementos seria muito maior, pois contaria aqueles já repetidos, já na reunião não se trata de uma somatória, pois os elementos não poderiam ser contados em dobro. Por essa lógica propõe um vel particular para dar conta desta operação: o vel da alienação.

Primeiro traz que há dois tipos de vel: o exclusivo e o inclusivo. No vel exclusivo ou escolho uma opção ou outra, sem a possibilidade de fazer as duas coisas: ou vou ao cinema ou ao teatro. No vel inclusivo opera uma lógica do tanto faz: ou vou ao teatro ou ao cinema, tanto faz. Já no vel da alienação a lógica da reunião opera por uma via do nem um, nem outro: não vou nem ao cinema, nem ao teatro.

O exemplo mais claro é proposto por Lacan pela seguinte questão: A bolsa ou a vida? Diz que se escolhermos a bolsa, ficaremos sem a vida. Mas se escolhemos a vida, também não teremos a mesma vida, pois ela ficará, de certa forma, decepada, sem a bolsa. Tal exemplo sustenta a ideia de que há uma escolha forçada, na qual o sujeito não tem opção. Na verdade, não tem escolha.

Este significante, produzido no campo do Outro, diz Lacan, faz surgir o sujeito de sua significação, mas no mesmo movimento que o significante o convida a falar, a funcionar, também o petrifica. Harari(1990) esclarece que ¨ao mesmo tempo em que o sujeito nasce na cultura por meio da ação do significante outorgando-lhe a única vida possível para um falante, também lhe presentifica a morte…O sujeito aparece ao preço de uma desaparição¨(p. 238) Rabinovich (2000) esclarece que a primeira falta é a falta de sujeito, pois colado ao S1, não pode aceder a palavra pois para tal é necessário no mínimo dois significantes. Assim, fará um apelo ao segundo significante no Outro.

A primeira falta do sujeito originada pela alienação se deve ao fato de que no momento em que o sujeito se identifica com um significante, ele é representado por um significante para outro significante. Laurent (1997) nos traz um exemplo: um ¨menino mau¨ é representado como menino mau em relação ao ideal de sua mãe. Assim, menino mau, que se caracteriza como um significante-mestre, o será como uma linha mestra pelo resto da vida, definindo-o e, provavelmente, comportando-se como tal. Aqui está a petrificação da qual falamos antes. Para Laurent (1997): ¨É definido como se estivesse morto, ou como se lhe faltasse a parte viva de seu ser que contém seu gozo¨(p.38) Desse modo quando é definido como um menino mau, uma parte do sujeito é deixada de fora, já que ele não é apenas um menino mau. Lacan dirá que estas identificações básicas não tem sentido nenhum, apenas são. Laurent (1997) diz que se pode explorar o sentido que elas tomam, mas, no final das contas, se verá que elas não fazem sentido. Esta identificação primária com um significante mestre vai mais além, pois ele tentará se identificar com aquilo que ele foi no desejo do Outro, não apenas no nível simbólico do desejo, mas como substância real envolvida no gozo. Aqui o sujeito tenta criar uma representação do gozo no interior do Outro através de sua fantasia, criando uma outra falta: de que o gozo é sempre parcial. E fará a tentativa de recuperação pela cadeia significante.

Assim o sujeito é capturado pelo significante, fica aniquilado, desaparecido. Lacan irá propor duas circunferências com uma parte em comum. Em uma delas Lacan inscreve o ser, na outra circunferência, que se refere ao Outro, o sentido. O primeiro significante, S1, designa o ser, mas não lhe dá sentido nenhum. O segundo significante, S2, lhe atribui sentido, mas ao fazê-lo apaga seu ser, produzindo a afânise. O Outro é o produtor de sentidos, que de alguma maneira, são sempre inconclusos, incompletos. Na intersecção destas duas conferências que é justamente a zona de relação entre o ser e o Outro Lacan inscreve o sem-sentido. Segundo Harari (1990):

Quando de algum modo o sentido se realiza em um sujeito em virtude da ação do
Outro deixa caído no caminho uma região de sem sentido. Esta região é
justamente, a daquilo que é inconsciente. Desse modo aquilo que é inconsciente é
um resto da operação da constituição do sujeito no campo do Outro (p.241).

Rabinovich (2000) afirma que o inconsciente é o produto da união destes dois campos, mas que ele ficará situado no campo do Outro, já que o inconsciente é o discurso do Outro. A alienação, longe de se tratar apenas de uma fusão, segundo Lacan (1998), instala uma divisão no sujeito, isto é, ele apenas aparecerá nesta divisão entre, de um lado o sentido, e de outro a afanise. Esta divisão e a operação lógica da reunião explicitada acima, nem um nem outro assinala uma falta. A partir do momento que tal falta é instalada, o sujeito colocará a falta em relação ao Outro: irá busca-la, induzí-la, como salienta Harari (1990). Lacan (1998) nos traz os porquês infantis, afirmando que tal exercício, longe de ser procura pura de conhecimento, é uma busca pela falta do Outro. Na intimação que lhe faz o Outro por seu discurso, o sujeito procurará a falta do Outro nos intervalos deste discurso, naquilo que o Outro não disse, nos tropeços, nos gemidos, o que pode ser expresso na frase proposta por Lacan: Ele me diz isso, mas o que ele quer?

É nesse intervalo que Lacan (1998) situará a metonímia, e consequentemente o desejo. Diz Lacan (1998): ¨É de lá que se inclina, é lá que desliza, é lá que foge como o furão, o que chamamos desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro¨(p. 203).

Subordinado pelo significante, a alienação o faz ser, mas ao preço de uma falta-em-ser. Na operação de alienação este Outro é não barrado, provocando o eclipsamento do sujeito.

Frente a esta operação revela-se como saída a segunda operação: a separação. É a reação do sujeito ante o ficar afanizado. Vejamos uma citação de Lacan (1998):

O efeito de linguagem está o tempo todo misturado com o fato, que é o fundo da
experiência analítica, de que o sujeito só é sujeito por seu assujeitamento ao campo
do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do
Outro. É por isso que ele precisa sair disso, tirar-se disso, no fim, ele saberá que o
Outro real tem, tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disso. É mesmo aí
que se impõe a necessidade de boa fé, fundada na certeza de que a mesma
implicação da dificuldade em relação às vias do desejo existe também no Outro
(p.178).

Percebe-se aí que o sujeito, de alguma forma, pode jogar. Entra, então, o que Lacan dirá a respeito da função da liberdade. Esta é limitada e trabalha a partir da falta. É a esta pequena liberdade em relação aos significantes do Outro que o sujeito terá para jogar. Rabinovich (2000) salienta que esta função da liberdade não diz respeito a identificar-se inteiramente com o S1 do ser, mas de se liberar do sentido. Complementa que a Psicanálise encontra-se justamente frente a questão de como conciliar o determinismo com uma margem de liberdade, pois se essa não houvesse, não haveria psicanálise.

Lacan (1998) dirá que a alienação é ligada essencialmente a dupla de significantes. Diz que é preciso que haja dois e não três, porque um significante é o que representa o sujeito para outro significante. Harari (1990) esclarece que no momento em que acontece a articulação S1-S2, o sujeito cai como um efeito dela. A separação consiste justamente em se fazer um ataque a cadeia de significantes, entre os dois significantes, aí está o lugar do sujeito na separação. Harari (1990) salienta que não implica ficar fora da cadeia, mas fazer um lugar nela. Rabinovich (2000) esclarece que a falta primeira da alienação, falta produzida pela perda do S1, é recuperada com a falta do sujeito como objeto para o Outro. Já na separação esta falta primeira remete à perda do sujeito como objeto causa do desejo do Outro, ficando este descompletado. Assim o sujeito, na separação, joga com o efeito desta perda no Outro, o que é exemplificado por Lacan com a frase: Podes me perder? Este jogo com a perda tem a finalidade de situar seu lugar de causa. Rabinovich( 2000) aponta que a perda, para Lacan, tem uma função instrumental, é um instrumento com o qual se faz algo. Lacan (1998) diz que a perda não acontece, que ela é buscada. Assim ¨perder-se para o Outro implica que o luto fica do lado do Outro, o buraco fica do lado do Outro…O seio cai do lado da criança e a mãe fica com o buraco¨(Rabinovich, 2000, p.125), por isso Lacan usa a expressão eu te mutilo, no seminário X. Não se trata de um luto do objeto, pois o luto é do Outro, mas uma prova do quanto o outro me deseja, o quanto sou
causa para ele.

Quando Lacan se refere a separação usa o termo torção que diz respeito a reversão das estruturas topológicas, pois além da separação fechar a alienação também se associa com o momento do fantasma, da cena fantasmática. Aí se dá uma topologia que se fecha neste instante e que produz um não saber acerca da determinação do sujeito pelo desejo do Outro. Esta torção topológica própria da separação fixa o S ao objeto a, o que nos dá a fórmula do fantasma, que tem como consequência a ocultação do desejo do Outro e o objeto que o sujeito foi para esse desejo. (RABINOVICH, 2000) Esta autora pontua: ¨a consequência da separação é a passagem da alienação entre ser e sentido para a estrutura do desejo como desejo do Outro¨ (p. 110).

Do mesmo modo procede o analista, com sua interpretação, realizando um ataque ao par significante no ponto débil do intervalo, onde, diz Harari (1990), jaz o desejo do Outro. Para Lacan (1998) ¨o inconsciente é o discurso do Outro, ele não está do lado de dentro, mas do lado de fora. É ele que, pela boca do analista, apela a reabertura do postigo¨.(?)

A afirmação lacaniana: ¨o desejo é o desejo do Outro¨ nos encaminha para a ideia que o desejo é sua interpretação. Não que haja um desejo pré-existente ao discurso do analista, mas a interpretação analítica põe em ato uma dimensão a mercê da qual o sujeito é constituído. Assim quando o analista interpreta o desejo se faz presente. Lacan (1998) define o desejo como o ponto nodal onde se ligam a pulsação do inconsciente e a realidade sexual. Nas palavras de Lacan: ¨A interpretação do analista não faz mais do que recobrir o fato de que o inconsciente já procedeu por interpretação. O Outro já está lá, em toda sua abertura, por mais fugida que seja.¨(p.?)

A ética do analista implica trabalhar com estas operações, suportando a alienação nos significantes, e dentro do movimento de retorno torcional, ir para a separação. Lacan (1998) diz ¨¨A interpretação não se dobra a todos os sentidos. Ela só designa uma única serie de significantes. Mas o sujeito pode com efeito ocupar diversos lugares, conforme se o ponha sob um ou outro desses significantes.¨ (p. 198)

Dessa forma não é qualquer coisa que serve para uma interpretação: não basta apenas criar um efeito de sentido ou ir experimentando diversas interpretações para verificar qual seria a mais adequada a um analisante em específico ou mesmo explicar detalhadamente sobre o que pode ser analisado sobre o sujeito.

Laurent (1997) diz que a interpretação deve referir-se ao verdadeiro sentido daquilo que o analisando diz em sua cadeia significante e este verdadeiro sentido é o resto do primeiro encontro do sujeito com o Outro, o resto do gozo.

É preciso, em análise, rastrear todas as significações em que o significante-mestre aparece, encontrar essa cadeia sem sentido de significantes, que, encadeados de uma certa forma, definem a fantasia do sujeito. Isso é conduzir o analisante aos seus modos de gozo, segundo Laurent, as maneiras pelas quais ele transforma o outro que ama num objeto. Então para Lacan a interpretação deve visar ao objeto, mas não comentá-lo diretamente, através de interpretações explicativas, pois o efeito seria uma fixação nesse gozo, levando-o a atuação. É preciso utilizar as entrelinhas, utilizando a cadeia de significantes do sujeito e a equivocação, de acordo com Laurent. Rabinovich (2000) diz que a formulação que faz Lacan sobre a interpretação é determinada pela liberdade do sem-sentido, ou seja, ir além do problema da significação. Ainda a autora nos fala que Lacan comparou este S1 que corresponde ao sujeito com um número de loteria, ou seja, ninguém o tira, ele simplesmente sai. Isso nos esclarece esta ideia do não sentido do S1 e nos aponta a possibilidade de trabalho em Psicanálise, pois a nossa causação, como fomos causados não é da ordem do determinismo absoluto e imutável. Rabinovich (2000) nos alerta que a psicanálise opera sobre o desejo e não sobre o sem-sentido, pois o sem sentido no final de análise não se relaciona com a ausência de desejo, encontrada hoje em alguns sujeitos.

Vou relatar a vocês um pequeno trecho clínico sobre o qual penso podermos ver estas operações de alienação e separação e sua relação com a interpretação.

P. chegou ao meu consultório com a seguinte queixa: dizia se irritar demais com as pessoas e mudar seu humor de repente, sem que nada provocasse isso. Perguntou-me se isso o que tinha era o Transtorno Bipolar e contou-me o quanto ficava afetada com sua falta de controle sobre o que sentia. Usava, desde as primeiras entrevistas, a seguinte expressão: ¨Eu viro¨. Pergunto: vira o que? Diz que vira outra pessoa, que parecia que tinha até dupla personalidade, pois não se reconhecia quando virava. Queria apenas se isolar em seu quarto, ficar ¨quietinha¨, como dizia. Segundo P. ao virar, sentia crises de angústia com sintomas físicos de sufocamento e falta de ar e muita ansiedade, descontando nos alimentos, principalmente em doces, o que a fazia se sentir feia e culpada. Este significante virar insistia ao longo das sessões.

Certa sessão lhe indico o divã e assim que deita começa a dizer que não está confortável ali, sente como se a sala estivesse muito estreita e pequena, sente-se sozinha, sem ar e acha que não está passando bem. Ofereço-lhe a volta para a poltrona e lhe convido a falar destas sensações. Descreve estas sensações como muito semelhantes ao que sente em suas crises de angústia e diz que ao virar de costas para mim, sentiu-se abandonada. Aponto que ela também ali estava virada. Ao longo da sessão volta a falar de sua mãe, a qual descreve como ausente em sua criação, localizando a função materna em sua avó materna. Conta que apanhou inúmeras vezes da mãe, sem motivos que julgasse plausíveis. A última surra se deu aos 16 anos, no meio de uma praça, em frente às pessoas. Conta que sua mãe não lhe deixava sair de casa e que sempre lhe fez dormir no mesmo quarto dela, mesmo havendo quartos de sobra na casa. Aos 18 anos começa a namorar virtualmente e sai da casa da mãe para novamente morar com a avó. A mãe não aceitava o namoro e as duas ficam dois anos sem se falar. Após um rompimento trágico, o qual define como possível causador de seus sintomas, volta a morar com a mãe a pedido desta, mas com a condição que cada uma tenha seu espaço. Reclama da ¨folga¨ da mãe, pois geralmente todo o serviço da casa fica por conta dela. Diz não sentir que a mãe a ama. Relata um dia das mães no qual ouviu uma música e todos os presentes se emocionaram, mas ela não conseguia, pois não sentia um amor verdadeiro de sua mãe. Lembra que sua avó sempre a pegava na escola e seu maior sonho era que sua mãe fosse buscá-la. A mãe promete certo dia que irá pegá-la e quem a leva para casa é o vigia da escola. Jurou, após este dia, que a mãe não a deixaria esperando. Nessa mesma sessão da ida ao divã, estava falando de sua mãe, quando diz: ¨Porque ela sempre me disse: ¨se vira¨.

P. que tinha um nome composto, mas sem aparente conexão entre eles, diz que um nome foi escolhido pela tia, irmã da mãe, e o outro pelo pai, que desparecera no dia do casamento. Em outra sessão também relaciona a virada e a dupla personalidade com estes dois nomes, como se ora fosse tal nome, vindo da mãe, e ora o outro nome, vindo do pai.

P. fica petrificada por este significante que a divide, controla e lhe gera esta sensação do sem-sentido, do desconhecimento de sua condição.

Voltando a função do analista, se a perda é um instrumento para dar lugar a causa do desejo, o analista, segundo Rabinovich (2000) se deixará usar como objeto, objeto causa de desejo e não como objeto de gozo, posição perversa. Pois diz a autora: ¨Operar em termos de gozo é operar em termos de recuperação; operar em termos de desejo é operar em termos de perda¨ (Rabinovich, 2000, p.118). Dessa forma não há gozo no exercício da função do analista.

Também se pode afirmar que a operação de separação tem sua relação com a definição proposta por Lacan de desejo do analista. Este seria uma busca pela pura diferença, não um desejo puro, pois o analista deve se situar no lugar do intervalo, do entre-dois, desejando produzir um espaço, espaço onde se situa o objeto a, lugar em que renuncia uma posição amorosa.

O caminho deste trabalho me levou então a pensar a articulação entre desejo, amor e gozo na função do analista. Assim, esta função exige um esvaziamento de gozo, um para-além do amor e uma direção ao desejo.

Autor: Marina P. de Paula.

 

Referências Bibliográficas

HARARI, R. Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan. Campinas, SP: Papirus, 1990.

LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

LAURENT, E. Alienação e separação I e II. In: Feldstein, R., FINK, B.,JANNUS, M.,(Orgs). Para ler o seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro; 1997.

RABINOVICH, D. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2000.

A Insistência do Gozo e a Prática da Letra

Primeiro, gostaria de dizer que estar aqui nesta posição de transmitir minha experiência é algo que cada vez mais ganha sentido no meu percurso. Portanto, é nessa direção, de transmitir minha experiência, que vou tentar leva-los hoje. Antes de prosseguir, gostaria, também, de fazer uma ressalva sobre meu título. Quando pensei nele estava planejando seguir por outro caminho. Estava pensando em falar da clínica apresentando um caso clínico e trabalhando a temática do gozo e da versão do pai. Mas… para quem já se aventura nas leituras de Lacan sabe que a cada encontro com seus textos surge sempre algo novo, algo que nos surpreende, nos arrebata e que é capaz de bagunçar nossos pensamentos e nos fazer mudar o caminho daquilo que havíamos planejado. Pois foi exatamente isso o que aconteceu.

Pois bem, se antes estava pensando em falar da clínica dessa maneira, num dado momento, que não sei precisar bem, este tema deixou de me convocar e com isso a vontade de escrever sobre ele passou. O problema é que, inicialmente, não veio outro tema para substituí-lo. Então tinha ficado absolutamente sem tema. Mas com o tempo fui percebendo que outras questões iam sendo tocadas na medida em que eu ia trabalhando o Seminário 20. Estas outras questões atingiam em cheio as interrogações e inquietações que eu tinha acerca do meu trabalho com a psicanálise (atividades da Associação, função da análise de controle, a posição do analista,
a direção do tratamento, etc.). Quando percebo a forma como o texto do cartel estava me afetando, resolvo escrever sobre isso. Mas na hora, quase instantaneamente, surgiu outra dúvida que me fez hesitar: como articular todas essas questões que estavam sendo tocadas pelo trabalho de cartel com a clínica e com o tema de nossa Jornada?

Depois de um tempo de trabalho em torno do texto de cartel, curiosamente chego a evidente conclusão:

  • Que todos os elementos devem ser tomados como se constitui a própria cadeia borromeana, onde se uma se soltar as demais também se soltam perdendo suas funções. Portanto, a prática clínica, a participação nos fóruns (escutar atenciosamente os textos dos colegas, comentar seus textos, apresentar textos e ouvir e considerar as questões), a participação nos seminários do Aurélio e de outros analistas, coordenar grupo de estudos, fazer análise e análise de controle,
    tudo isto não deveria ser tomado como elementos separados, disjuntos, ou hierarquizados, tal como: a prática é a mais importante, a supervisão a segunda mais importante, o estudo teórico a terceira, e assim por diante.

Como disse, para que elas possam produzir efeitos devem ser consideradas como encadeadas borromeanamente; e se possuem a mesma estrutura da cadeia, não há valor que as diferenciem. Elas produzem efeitos nos mais diferentes lugares em função da estrutura de cadeia. Penso que seja por isso que um trabalho de cartel ou a participação dos fóruns podem produzir efeitos nos mais diversos aspectos e localidades. Por isso que falar dessa experiência é, a meu ver, também falar da forma como faço a clínica. Acredito que este encadeamento borromeano dos dispositivos citados (atendimentos, cartel, fórum, análise, análise de controle, grupos de
estudos, seminários, etc.) sempre apontam para um ponto específico na estrutura: a posição do analista. É como se a posição do analista ocupasse o coração da cadeia, no lugar onde está o ‘a’; portanto todos os efeitos de alguma forma tocam nisso.

E poder circular nesses dispositivos não é fazer nenhuma revolução, como disse Lacan, mas é fazer com que o discurso analítico circule e, com isto, possa exercer sua função. No Seminário 20 Lacan recupera uma ideia que trabalhou numa das conferências que deu em SaintAnne, conferências que coincidiram com o momento em que proferia o Seminário 19, e que ele fala sobre essa ideia de fazer circular o discurso analítico e afirma que circular não implica fazer nenhuma revolução, pois a circularidade sempre leva ao mesmo lugar, ao mesmo ponto. Lacan utiliza a palavra “circular” de forma bastante precisa. Circular, para ele, é circular através dos discursos (discurso do mestre, do histérico, do analista e da universidade).

Um exemplo simples que pode ilustrar isso que estou tentando transmitir. Entramos no discurso do mestre tentando sustentar uma certa completude no saber, camuflando nossa divisão ($) sob a barra, mas os textos, o convívio com os colegas de associação, a análise, tudo faz experimentarmos que não há suposta completude, que sempre seremos sujeitos divididos ($) com relação ao saber. Podemos, então, a partir dessa incompletude do saber, circular para o discurso
histérico e, dessa forma, produzirmos um saber, singular, de nossa responsabilidade, de nossa autoria, que poderá ser compartilhado nos fóruns, nos grupos de estudos, nos comentários que fazemos sobre os trabalhos dos colegas, nas Jornadas, etc. O discurso analítico, pela lógica que Lacan nos apresenta na teoria dos discursos, só pode ser alcançado por meio desse movimento circular.

Para podermos fazer semblante de ‘a’, que é a estrutura do discurso analítico, temos de ter circulado, pois os discursos são interdependentes. Lembrando que em todos os discursos, exceto no discurso analítico, há produção de gozo. Dessa maneira, ao gozarmos nas posições discursivas que precedem ao discurso analítico, chegamos neste discurso suportando renunciar qualquer gozo; condição fundamental para exercer a função de analista. Constato, mais uma vez, que é impossível pensar de forma separada os dispositivos da psicanálise. Para mim, neste sentido, ficou bem mais claro o lugar que a Associação e os dispositivos ocupam no meu
percurso de produção de um analista. Este é o sinthoma que pude produzir com os trabalhos deste ano e colher seus efeitos. Relembro-lhes, então, uma passagem no Seminário 23 que Lacan afirma que ser psicanalista é um sinthoma. Isto é, uma produção singular em que vamos achando respostas e argumentos que sustentem nossa decisão de trabalhar com esse negócio esquisito e maluco que é a psicanálise.

Agora gostaria de falar um pouco desses efeitos que pude colher neste ano e argumentar teoricamente a forma como tento sustentar minha prática clínica, o meu fazer clínico. Percebo em mim que a psicanálise ficou mais leve, mais sustentável. De uns anos para cá percebo mudanças. Passei a ver a psicanálise como uma prática muito respeitosa e acolhedora. Mas tais características não excluem o fato de que é uma experiência muito difícil e dolorosa. Constato isso quando estou no divã. Antigamente via a psicanálise como uma prática que deveria ser feita com sofisticação. Por exemplo: achava que temas deveriam ser priorizados. Nos relatos deveriam estar o mito edípico, os sofrimentos amorosos, as demandas, a vida sexual, e por aí vai. Só que não percebia que nessa lógica de dar prioridades a certos temas acabava ficando completamente surdo para o que de fato interessa num tratamento: as “bobagens” que os analisantes dizem.

No Seminário 20, que foi o texto trabalhado em cartel neste ano, Lacan diz algo muito simples mas muito importante que me permitiu recuperar, repensar e avançar o trabalho que fiz no ano passado sobre o Seminário 23 que apresentei na Jornada. Bom, Lacan, no Seminário 20, diz que a análise se faz de bobagens, nada mais. Isto é, nos adverte que não devemos nos  preocupar em priorizar temas ou assuntos, mas que devemos fazer com que o analisante fale e produza nos seus ditos bobagens. Ao falar bobagens num dispositivo analítico, sustentado pelo discurso analítico, o analista é capaz de tirar consequências dessas bobagens. É capaz, a partir dos significantes do analisante, que são da ordem da escuta, portanto do som, deixar que algo se escreva: a letra.

Dos significantes que vão aparecendo nos ditos do analisante vão se escrevendo letras que denunciam suas relações de gozo que estão impressas em seu corpo (que não é o organismo) e que o analista, apenas se exercer sua função, é capaz de ler. A partir dos significantes produzidos pelos ditos temos de ler a letra. Neste sentido Lacan, no Seminário 20, deixa bem definido a distância que a linguisteria tem da linguística. Na linguística o significante tem um significado, mesmo que este significado seja definido a partir de um contexto. Contudo, na linguisteria os significantes são elementos sonoros destituídos de qualquer significado. São esses significantes que compõem a estrutura de alíngua (lalangue) e fazem as marcas no corpo (encorps) do falasser registrando as letras que representam as pegadas do Outro nesse deserto de gozo que é o corpo do falasser. As letras são partículas, moléculas, átomos, dos significantes da estrutura de alíngua que registram as formas como o falasser foi supostamente gozado pelo Outro enquanto objeto1.

Na linguisteria o significado é de responsabilidade do analisante e diz respeito à escrita, portanto está articulado à letra; ao passo que o significante está relacionado ao som. Mas, afinal, do que se trata ler a letra a partir da sonoridade significante? Penso que é justamente provocar dissonâncias nesse corpo recortado pelos significantes da estrutura de alíngua. É colocar em cena, através da manobra analítica, a inexistência da relação sexual, pois a única relação que o falasser estabelece é com os objetos pulsionais do seu próprio corpo recortado pelo significante. Para Lacan, no Seminário 20, a relação possível é auto-erótica – com pedaços do próprio corpo – e por isso que não há possibilidade de encaixe perfeito entre sujeito e objeto; o que sustenta a ideia de que a relação sexual não existe. É nesse sentido que o amor vem em suplência a não existência a relação sexual, pois veste esse objeto pulsional de uma forma idealizada e, como diz o Aurélio, de forma kantiana, fazendo com que se crie uma miragem de bom encaixe, miragem de que a relação sexual pode existir. O amor vem justamente tentar cobrir o fato de que o falasser goza do corpo. Bom, mas antes de continuar, esta expressão deve ser aclarada. Temos, para aclarar este termo, de considerar esta expressão “gozo do corpo” no genitivo objetivo e no genitivo subjetivo2; isto é, de que se goza do corpo e de que o corpo é que goza. Considerar esta expressão no genitivo objetivo e subjetivo implica considerar que para que o falasser possa gozar dos pedaços do corpo deve-se ter de forma mítica e fix-ctícia um momento em que esse corpo foi gozado, foi feito de objeto de gozo do Outro.

É em função dessa via de mão dupla do gozo que ele sempre conduz ao pior. Ser gozado pelo Outro, ser reduzido a um objeto pulsional, é se tornar um objeto merdificado, mastigado, escopicizado/perseguido, ensurdecido, ruidoso, mijado, vomitado, arrotado, fedido, dentre outros. Estes são os objetos demandados pelo Outro e que servem exclusivamente para ser gozados. A relação sexual não existe, pois a relação não acontece entre dois corpos, dois seres, e sim do falasser com seus próprios objetos pulsionais. Por isso o gozo é auto-erótico. O sintoma, por sua vez, é uma forma de gozar que maquia o gozar do corpo (pelo Outro) por meio do amor e do ideal narcísico. É uma resposta sofrida a não existência da relação sexual, mas que satisfaz e evita o encontro com essa ordem do pulsional; que seria muito mais devastador se não for feito de forma calculada.

Neste Seminário Lacan insiste na dificuldade de o falasser se a ver com isso que é da ordem do gozo. Diz que preferem levar sua vida dormindo. Permito-me brincar com a linguisteria e faço desse significante letra e digo “dor-indo”. Ao estar ignorante, ao não querer saber de nada disso, como diz Lacan no Seminário 20, levam uma vida com dor e vão indo numa deriva de gozo em que se traça como destino certo os sofrimentos e fracassos que insistem em aparecer. Por sua vez, ler a letra é recuperar isso que é da ordem do gozo do corpo e fazer com que o falasser possa escrever e dar um significado produzindo um saber sobre o seu gozo. Somente assim pode dar outras repostas para a não existência da relação sexual e com isso escrever um sinthoma.

No entanto, a escrita de um sinthoma é lenta e dolorosa, pois parte dessa recuperação da condição de objeto gozado que o falasser foi colocado em sua hystória, em sua novela, em sua fix-cção. Lacan diz nas conferências de Saint-Anne que a interpretação aponta sempre para o gozo. Algumas semanas depois dessa formulação ele complementa, no Seminário 19, que na realidade quem interpreta é o analisante. O analista apenas cria condições favoráveis para isso. Mas mesmo que a interpretação seja de responsabilidade do analisante, a intervenção do analista precisa ser feita com muito cuidado, tolerância e respeito para não rasgarmos a roupa narcísica e amorosa deixando pelado o objeto pulsional. O resultado disso pode ser devastador (aumento de angústia e até passagem a ato = suicídio). Esta posição tolerante e respeitosa Aurélio não se cansa de nos advertir em seus seminários. Digo que hoje posso experimentar essa advertência de uma outra forma que não seja pela via da compreensão. Hoje não compreendo, mas leio, escrevo e explico3. Ao explicar, isso se singulariza e passa a ser de minha responsabilidade, de minha
autoria e por isso faz eco em meu corpo.

Para finalizar, gostaria de dizer que esta lógica clínica que discuti hoje com vocês é muito presente nos pacientes que pude acompanhar no meu percurso. Quantos relatos existem com a mesma estrutura semântica dizendo: “Quando as coisas começam a mudar, eu coloco tudo a perder”; “Quando conquisto algo, nem dá tempo de comemorar”; “Quando encontro um curso que amo sou internado e tenho de parar”; “Quando a minha filha retorna e tudo parecia bem eu a deixo morrer”. São algumas falas de pacientes que pude acompanhar e que apontam para isso que é da ordem de uma insistência (uma desgraça que insiste) e que são, inicialmente, tomadas como fatos externos, uma obra de um destino cruel, um puro acaso. A psicanálise pode fazer com que esse destino, sentido como injusto e devastador, possa ser reescrito e mudado. Para tal, o preço que o falasser paga, para além do dinheiro, é de se dar conta que há uma satisfação em jogo nessas situações, pois tais destinos talvez apontem para esse lugar de objeto gozado pelo Outro. A psicanálise proposta por Lacan pode, portanto, interromper a série desse suposto destino cruel que sempre insiste pedindo mais, mais, Mais, ainda… (encore, encore, encore…)

 

Autor: Edinei Suzuki

 

1 Utilizo o termo “supostamente gozado” porque o Outro não existe, mas o falasser constrói uma fix-cção sobre o Outro.

2 Genitivo objetivo: eu gozo do corpo. Genitivo subjetivo: o corpo é que goza.

3 Explicar em sua raíz etimológica alude ao sentido de desenrolar uma espécie de barra em tecido.