Sintoma da Criança e Inconsciente Parental

IDENTIFICAÇÃO, AMOR, DESEJO E GOZO

O sintoma da criança está imbricado a algo do inconsciente parental (Lacan, 1969), uma vez que ela ocupa os lugares de objeto de amor, desejo ou gozo de seus pais (Flesler, 2007, p. 197). O mais saudável é que ela alterne entre essas posições, de modo que uma faça barra à outra. Quando uma criança faz sintoma então, penso que ela esteja situada em algum lugar dentro dessa estrutura deste casal em que não deveria. Algo ficou desarranjado, a típica cena da criança na cama do casal. Partindo desse pressuposto, gostaria de discorrer neste trabalho acerca das intervenções com os pais nos atendimentos das crianças que tomo em tratamento. Pergunto-me até que ponto posso intervir na mudança de lugar da criança dentro dessa tríade (amor, desejo e gozo). E a partir de onde isso deve ser tratado em uma análise pessoal desses pais?

 Ao longo desse ano estudamos o Seminário 9, sobre a Identificação, que me deu alguns elementos para pensar estas questões, articulando como se dão as inscrições significantes no infans a partir da intervenção desses dois personagens, mãe e pai. Partindo então na alternância de lugares entre essas três instâncias: amor, desejo e gozo, tentarei pensar como isso funciona e de que forma a criança responde sintomaticamente, a partir da idéia de que se constitui alienando-se a esses lugares propostos a ela por este casal.

Neste seminário Lacan afirma que “O amor é a fonte de todos os males (…) o amor de mãe é a causa de tudo” (p. 158). Por outro lado, ele nos diz também que do amor só se pode ser objeto, para ser sujeito, há que se desejar. Assim, se uma criança necessita, por um lado, ser alocada nesse lugar de objeto de amor, para dar entrada na existência, por outro, precisa negá-lo, para apropriar-se desta. Para que se constitua enquanto desejante, o sujeito precisa perder o objeto que supostamente o completaria (objeto na verdade nunca existido, a não ser na cena de completude que ele arma), encontrando-se, neste momento, com a frustração. E, a partir dessa cena inaugural, ele está condenado a, eternamente, desencontrar-se, ao buscar reencontrar-se com esse objeto (Lacan, 1962, p. 199-200). Essa primeira posição é possibilitada pelo significante Desejo Materno. Segundo Jerusalinsky (2001, p. 147), uma mãe coloca seu filho enquanto objeto de satisfação, atravessada pelo interdito da lei paterna, que atrela o gozo dela à lei simbólica. É consequência da forma como isso está inscrito pra ela, que seu filho será situado nas posições de objeto de desejo, amor ou gozo.

Flesler (2007, p. 197) traz que, para que essa alternância de lugares da criança opere é necessário que o desejo dos pais funcione entre eles, para além da criança. Ou seja, existe uma cena da qual ela está necessariamente excluída. Aqui posso começar a pensar nos casais que chegam a minha clínica, trazendo seus filhos com sintomas. Parece-me que esse desejo do casal não está colocado. Vejo mulheres que não reconhecem em seu marido o objeto de sua satisfação, cumprem as etapas do namoro, matrimônio e maternidade como um protocolo a ser seguido; outras mães que depois que têm o filho, ficam completas, deixam de desejar enquanto mulher; outras que posicionam-se no casamento de maneira infantil, colocando o marido no lugar do pai.

Quando aceito tomar uma criança em tratamento, objetivo possibilitar a ela sair deste lugar objetal. Segundo Laurent (apud Prado 2008) que seu corpo deixe de corresponder ao objeto a, objeto de gozo da mãe. Penso que, enquanto clínicos, além de realizar uma construção com a criança, seja necessário intervir também do lado dos pais, para abrir o espaço necessário que possibilite à criança se reposicionar, uma vez que a criança só vai até onde eles a autorizam. Este fato é inerente à condição do infans, que inaugura sua existência no mundo a partir das inscrições significantes oriundas da rede parental.

Lacan (1961, p. 136) coloca no Seminário 9 que para que o significante se inscreva são necessários três tempos: o primeiro de inscrição da marca, o segundo de apagamento e o terceiro de cerceamento de onde estaria a marca. É o apagamento do traço que possibilita o advento do significante, deste modo, ele não está colado a um significado positivado, este significado advirá somente a partir da articulação com outros significantes. Lacan diz que “o significante não presentifica um objeto” (…) mas “representa o sujeito para um outro significante” (p. 65), colocando-o numa disposição metonímica. Podemos perceber então que essa dinâmica caracteriza-se por uma alternância, num movimento de presença-ausência.

A inscrição da marca seria o traço unário, proveniente, como dissemos, do Desejo Materno. De acordo com Lacan (1961, p. 63), o traço unário é “um manifestante da diferença”. É a partir dessa diferença que o sujeito pode constituir o seu Ideal de eu, ou seja, sua primeira identificação à imagem que a mãe projeta sobre ele, a partir do desejo materno1. Por outro lado, para que prossiga a inscrição significante, conforme dissemos, o traço unário precisa ser apagado. Isso é realizado pelo significante Nome-do –Pai , que tem para o sujeito uma função de ancoragem, nominação, possibilitando a ele defender-se de permanecer objeto da mãe (Lacan, 1961, p. 62). Nas palavras de Lacan (1961, p. 82) “o acento do nome próprio do sujeito é depositado sobre sua função dedistinção, ou seja, não o cola a um significado unívoco”. Assim, o pai permite à criança desidentificar-se do que o significante do Desejo materno impõe a ela, permitindo-lhe abrir a cadeia significante. Lacan (1961, p. 145) diz que a criança, nesse processo deidentificação, coloca o objeto a em uma situação de alternância (presença-ausência) Esse objeto a é o que representa, quando presentificado, o falo. Ou seja, podemos pensar que é o lugar que a criança ocupa para a mãe, e que para não sucumbir a ele, precisa fazer esse fort-da.

Quando uma criança faz sintoma, algo desse processo não está acontecendo a contento. Seu sintoma é uma manifestação de seu particular modo de realizar esse enlace ao seu Outro. Estando engajada aos regimes de amor, desejo e gozo dos pais, penso que eles também têm que ser postos a falar, porém, este espaço de fala é diferente do oferecido num convite à análise. Flesler (2007) nos lembra que os pais devem ser convocados pelo analista da criança em momentos pontuais, quando se configurem enquanto resistência para o tratamento. São pontos de intervenção onde seja necessário “reinstaurar a falta onde ela falta, ou seja, onde encontramos uma falha na estrutura” (p. 196). Ela retoma Freud pra dizer que algo do gozo infantil dos pais está ancorado no filho, e que a resistência ocorre quando “na direção do tratamento de uma criança, se alcança um marco não balizado (…) na história específica do transcorrer estrutural próprio dessa criança e de seus pais” (p. 202). 

Ainda de acordo com a autora, o influxo analítico sobre os pais se dá em um ato que opera na “redistribuição e reenlaçamento de gozo que não são redutíveis à interpretação” (p. 201). Conforme dissemos, uma criança não pode prescindir desse lugar de objeto para seus pais, porém importa que ele seja de uma alternância, ou seja, de uma “extração renovada de gozo fora do corpo da criança” (p 199). Para isso, me parece necessário então, entrar na história dos pais, a fim de entender em que posição situam-se com relação à parentalidade e em que lugar esse filho entra na relação do casal. A partir daí, intervir no sentido de, por exemplo, restituir a presença do pai na cena da mãe com a criança, dar validade à palavra dele; ou autorizar a mãe a faltar, não saber, declarar-se cansada, pedir ajuda, arranhando a imagem ideal da mãe – toda. Provocar pequenas hiâncias entre o saber inabalável dela sobre seu filho, dando lugar aos maus entendidos inerentes a qualquer relação; questionar sua insubstituicionabilidade na manutenção da dinâmica familiar; fazer barra às intervenções invasivas no corpo, na palavra e ações da criança; autorizar os pais a darem vazão a sentimentos e agirem a partir deles pra fazer corte ao filho, interditá-lo quando necessário; não adivinhar tudo o que seu filho quer sem que ele precise dizer.

Penso que em todos esses exemplos vamos na direção de pôr em funcionamento a inscrição significante trazida por Lacan neste seminário, a partir do atravessamento da lei paterna sobre o desejo materno, promovendo a alternância presença-ausência no lugar da criança. Deste modo, intervindo na relação dos pais com a criança, de modo a fazer barra à fixação da criança nesses lugares de amor, desejo ou gozo, possamos abrir um buraco. Apostamos então que esse lugar vazio possa ser ocupado pelo casal, a partir de uma redistribuição da libido. Essa segunda etapa só será abordada pelo analista da criança se os pais o autorizarem, e talvez, esse momento, dependendo do caso, seja propício a um encaminhamento para uma análise pessoal dos pais.

 

Autora: Mônica Fujimura Leite

1“É a partir dessa pequena diferença, enquanto é a mesma coisa que o grande I, O Ideal de eu, que se pode acomodar todo o propósito narcísico; o sujeito se constitui ou não como portador desse traço unário” (Lacan, 1961, p. 171)

 

Referência Bibliográficas

Flesler, A. A Psicanálise de Crianças e o Lugar dos Pais. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Jerusalinsky, J. A Criação da Criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê. Bahia: Ágalma, 2011.

Lacan, J. A Identificação: Seminário 1961-62. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.

Lacan, J. (1969). Duas notas sobre a criança (S. Sobreira, trad.). Revista do Campo Freudiano, nº 37, 1986

Prado, A.C.A.L. Clínica Psicanalítica com Crianças: Especificidades. CLaP – Aula de 17 de junho de 2008.

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