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Textos Jornadas ALPL

Por uma política da incompletude

por Natália Delatim Ortiz

A minha apresentação hoje, partindo do título “Por uma política da incompletude”, foi toda estruturada e inspirada pelo artigo do Psicanalista e Professor Leonardo Danziato, intitulado Psicanálise e Política: por uma prática da incompletude, de 2019. Alguns trechos e ideias discutidas no trabalho do autor aparecerão em todo o meu texto, costuradas com colocações e direcionamentos que eu fui entrelaçando, de outras leituras e da minha prática. Entretanto, sugiro fortemente que vocês tenham acesso ao texto de Danziato, que é muito interessante e completo para discussão que se propõe.

            O título do meu trabalho é um recorte que busca, portanto, fazer menção ao referido artigo, que trata questões referentes à política e à psicanálise, ao mesmo tempo que soa (propositalmente) como um manifesto de defesa: a psicanálise e seu lugar social fundamental na contemporaneidade, tanto como campo discursivo teórico, quanto por sua prática clínica, de tratamento do sofrimento humano. Proponho, todavia, uma defesa atenta ao lugar particular da psicanálise nessas duas esferas – como campo de saber e práxis  –, considerando suas especificidades éticas e técnicas. Mesmo que, aqui, eu faça algumas discussões de base mais ontológica, vale lembrar, como pontua Danziato (2019), que: “(...) tal como o inconsciente, a psicanálise não é ôntica, mas ética.” (p. 7), e inclui, sempre, o falta-a-ser do qual todos nós padecemos como seu eixo fundamental.

            Começando pelo artigo proposto, Danziato (2019) parte da ideia de que as relações entre psicanálise e política incluem, inevitavelmente, uma hiância, que, de forma lógica, encontra um paradoxo, tal como o que existe entre o universal e o particular, ou entre o sujeito e o grande Outro. Sendo assim, a relação entre esses dois campos é sempre marcada por um desencontro, do qual resta um Real; desencontro, entretanto, que o autor considera como o ponto que sempre volta a reanimar a discussão entre esses dois lugares. Esse debate se dá, para ele, como uma tentativa de lidar com o mal-estar que os dois campos tratam, mal-estar esse relativo ao “sexo, a violência, a dominação, a servidão, a segregação, o horror, e, portanto, (a)o campo do gozo.” (p. 2). E, ao falar das questões do gozo, habitamos o campo lacaniano. Lacan, em seu seminário 17 intitulado O Avesso da Psicanálise, chega a dizer que já almejou que o campo do gozo fosse chamado, justamente, de o campo lacaniano, afirmando: “E vemos a que ponto isto nos interessa, a nós, analistas, porque se há algo a ser feito na análise é a instituição desse outro campo energético, que necessitaria outras estruturas que não as da física, que é o campo do gozo.” (Lacan, 1992, p.85). De qualquer forma, vale ressaltar que o debate entre os campos da política e da psicanálise não visa, aqui, a busca de um ponto em comum, mas parte, portanto, de um ponto de desencontro.

Sabemos que muitos impasses são encontrados nas discussões entre as duas áreas, sendo um deles se configurando da seguinte forma: de um lado, a política demandando da psicanálise um ato de comprometimento ativo em suas causas, e, de outro, a psicanálise reagindo, como pontua Danziato (2019), com um ceticismo radical no que diz respeito às principais utopias políticas. Sim, nem Freud nem Lacan estiveram filiados a projetos políticos significativos de suas épocas, considerando muitos deles como processos ilusórios ou que culminam no discurso do mestre. Ainda assim, Freud possui mais de uma obra em que se propõe a discutir o mal-estar gerado por questões sociopolíticas de seu tempo, e Lacan se debruça nos efeitos da instalação do discurso da ciência e do capitalismo para o sujeito (Danziato, 2019).

Me pergunto, aqui, junto com Danziato, se negar os efeitos das questões sócio-políticas no sofrimento dos sujeitos, e afirmar que não há nada de político nas produções de Freud e Lacan, não seria confinar a psicanálise a um lugar de um discurso que se pretende apolítico e, consequentemente, a uma prática que seja reacionária? Também não seria virar as costas para a proposição do próprio Lacan, de que o psicanalista que não puder perceber a conjuntura subjetiva de sua época deve renunciar ao seu ofício? Com essas questões em vista, trabalharei aqui algumas percepções de Lacan a respeito das relações entre saber, ciência e capitalismo, que parecem mais atuais do que nunca e tocam em outros motes políticos de nosso tempo.

            Para isso, proponho começarmos tentando localizar as questões sociopolíticas que lidamos na atualidade, em nosso contexto. Danziato (2019) parte sua análise considerando uma realidade política atual na qual a instalação do saber e seus efeitos atuam como um operador político central, inclusive na concepção de indivíduo da modernidade até a contemporaneidade. Esse saber tange, principalmente, o saber científico, e nos interessa chamar a atenção para a mudança discursiva de mestre na cultura que Lacan propõe no Seminário 17, em que o mestre antigo e soberano perde sua condição de agente e é substituído pelo saber universitário e pelo mais-de-gozar capitalista.

            Lacan trabalha essa cumplicidade entre o saber científico e o capitalismo não só no seminário 17, mas em vários pontos de sua obra, entendendo os efeitos políticos de segregação que essa “absolutização do saber” poderia gerar, pensando, inclusive, na lógica dos campos de concentração como funcionando sobre essa base. Em seu texto Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, Lacan afirma:

Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles [pensadores que conceberam os campos de concentração], para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação. (Lacan, 2003, p.263)

            Trata-se, portanto, de um período histórico e político em que se promove uma espécie de atamento entre o saber e a verdade, e, como efeito, uma crença totalitária e universitária da possibilidade de um “tudo saber”. Lembrei aqui de algumas evidências de nosso contexto que podem exemplificar, a meu ver, um pouco desse atamento, com efeitos no campo da ciência, da política e da clínica: a proposição da lei do Ato Médico no Brasil, realizada em 2013, em que, além de regulamentar o exercício da medicina, continha uma proposta de que somente a classe médica poderia diagnosticar doenças e prescrever tratamentos. Dessa forma, todos os outros campos da saúde, seus diagnósticos e suas terapêuticas diversas, dependeriam do diagnóstico e encaminhamento médico para poderem exercer suas práticas com os pacientes (essa proposta foi vetada, com muito custo, mas até hoje, volta e meia, é levantada como proposta política). A segunda lembrança foi referente aos casos de duas analisandas minhas, que, ao irem em consultas médicas, uma num psiquiatra e a outra numa ginecologista, foram sugeridas de deixar o processo analítico e encaminhadas para terapia cognitivo-comportamental, porque seria mais “eficiente” para seus casos.

            Indo além desssa universitarização do saber, Danziato (2019) desenvolve também o conceito foucaultiano de biopolítica, interpretando esse termo como a intervenção desses saberes no real do corpo e suas consequências políticas. Dessa forma, essa radicalização entre o saber e a verdade visaria dar conta do real do laço social e do corpo, prometendo uma resolução completa do mal-estar. Citando Danziato:

A biopolítica (...) tem um efeito ideológico de despolitização assim como de dessubjetivação do sujeito. Tratando questões políticas ou estruturais do sujeito como sendo do âmbito da espécie ou do cérebro – como faz atualmente –, despolitiza completamente questões cruciais, tanto para a interrogação da lógica dominante, como para uma condição ética do sujeito, através de uma transcedentalização do discurso médico e biopolítico. Se o problema é cerebral ou bioquímico, as relações estruturais de poder e de gozo do sujeito permanecem intocadas.” (Danziato, 2019, p. 10)

            Danziato (2019) avança na discussão, trazendo o neoliberalismo – formato atualizado do capitalismo – e suas consequências no sofrimento psíquico: o tratamento do sofrimento psíquico é tomado por uma ideia empresarial de que tudo se corrige com uma boa gestão do corpo e de suas patologias, na busca de uma alta performance. O filósofo e estudioso da psicanálise Vladimir Safatle (2024) trabalha também nessa direção, conceitualizando o que ele denomina de “empreendedores de si”. Nesse novo modelo que expande a racionalidade econômica para a gestão privada do sofrimento psíquico, o Eu fica responsável por se autogerir, individualizando e também despolitizando a questão do sofrimento do sujeito e de sua divisão imposta pelo próprio pacto social. Discutimos bastante nos encontros da ALPL esse ano justamente a chegada de pacientes buscando análise como uma espécie de ferramenta a mais de bem-estar e autocuidado, mas com dificuldades de alçar um discurso analítico e de narrativizar e contextualizar seus sintomas, suas inibições e suas angústias. Me parece que é esse o ponto em que devemos estar atentos, como clínicos e psicanalistas, na atualidade.

            Falando em clínica, uma aposta de Danziato (2019), com a qual eu me identifico, é a de que o dispositivo clínico psicanalítico, e eu acrescentaria, o discurso do psicanalista, seria um operador do nosso campo que possibilitaria esse furo justamente nessa tentativa de universalização hegemônica do sujeito e de sua singularidade: nessa inflação da patologização de sofrimentos sempre referenciada a uma espécie de “normalidade” que não inclui ninguém e pode empobrecer a narrativa de quem sofre. Desde seus primeiros seminários, como nessa passagem do seminário 2, Lacan (1985, p. 64) nos adverte que “fracassará toda intervenção que se inspirar numa reconstituição pré-fabricada, forjada a partir de nossa ideia de desenvolvimento normal do indivíduo, e visando à sua normalização (...)”. Isso significa que a clínica e a psicanálise lacaniana devem ir ao caminho oposto da busca de adaptação e normalização do indivíduo.  

            Lembrei aqui de um recorte de um caso da minha clínica, que exemplifica como o dispositivo analítico pode funcionar frente a esse aparato discursivo de transtorno versus normalidade. Uma analisanda, que segue em processo analítico comigo há alguns anos, realizou uma avaliação neuropsicológica a pedido de sua psiquiatra, por estar vivenciando um episódio depressivo importante. Acompanho, por seus relatos, todo o processo de avaliação e resultado, que ela me conta dessa forma em sessão: “Deu que eu tenho transtorno de personalidade de esquiva. Não sei se você sabe o que é...”. E eu questiono: “Esquiva?” E ela segue: “Sim, achei curioso o nome! Na verdade, me lembrou um golpe da capoeira, de defesa, já te contei que fiz capoeira na infância.” E eu pergunto: “Que mais você lembrou?” Ela segue: “Lembrei de toda a infância terrível que eu tive com a minha mãe, e entendi que talvez eu tenha desenvolvido essa personalidade porque precisei me esquivar das agressões dela a vida inteira. Mas não foi ruim essa percepção, viu? Porque me parece que é uma estratégia de luta por minha sobrevivência - que funcionou. Tô aqui.”

            Gostaria de trazer aqui uma citação do Safatle, de seu livro Alfabeto das Colisões (2024), que discorre sobre a experiência analítica e parece conversar com essa colocação de minha paciente sobre seu diagnóstico:

(...) existe um tempo da análise no qual se trata não apenas de levar sujeitos a reconhecerem as singularidades que atravessam suas formas de desejar, de se mover, de agir e de utilizar a linguagem. Trata-se, sobretudo, de defender tais singularidades, sendo que a segunda parte talvez seja a mais difícil. Isso passa por vários níveis. Um deles consiste exatamente em livrar tais singularidades de suas “determinações patológicas”. Determinações essas que, muitas vezes, foram produzidas e reforçadas pelo próprio discurso clínico. (...) Trata-se de levar os sujeitos a tomarem para si sua própria doença, fazer dela uma arma, a expressão ativa de uma recusa social. (Safatle, 2024, p. 42)

            Lacan (1985, p.121-122) complementa, sobre a finalidade da experiência de análise:

O que será que análise desvenda – se não é a discordância fundamental, radical, das condutas essenciais para o homem, com relação a tudo que ele vive? A dimensão descoberta pela análise é o contrário de algo que progrida por adaptação, por aproximação, por aperfeiçoamento.

Busca-se, portanto, a produção – e a defesa – de um saber singular a respeito do sofrimento de cada um. 

Chego aqui à última parte de meu trabalho, recolocando a seguinte questão: É possível pensar em uma posição política da psicanálise lacaniana, que fuja desses dois lugares que eu pontuei no começo da minha fala? Da militância por uma ideologia política na clínica, mas também de um de lugar de apoliticismo ou despolitização? Voltando ao raciocínio de Danziato (2019), é possível, se pensarmos numa espécie de prática da incompletude, com a qual a psicanálise e sua clínica operam.

 Para a psicanálise, o sujeito sofre uma perda ao adentrar no campo social e cultural, ou, como frisa Lacan, no campo da linguagem. Sendo assim, o sujeito precisa se haver com uma não totalidade e uma complementariedade falha, perdendo, portanto, “todas as versões ontológicas da universalidade” (Danziato, 2019, p. 4). A partir daí, o sujeito consegue alçar apenas suplências insatisfatórias.

Condenado à insatisfação e ao impossível da completude, ele se vê barrado também de um encontro absoluto com o outro – fato que, paradoxalmente, o leva justamente a buscar o outro. São esses mesmos buracos que nos movimentam ao outro, e Danziato (2019) chega a falar que “o buraco é a condição social do sujeito” (p. 4). Portanto, quando falamos de sujeito em psicanálise, também falamos do pequeno outro, do grande Outro e do social.

            Entretanto, em nossa cultura, algumas narrativas simbólicas emergem tentando recompor essa universalidade perdida a partir do buraco: a religião, a moral, a magia, a ciência, algumas ideologias políticas, tentam suturar essa falta que se forma pela existência do buraco, e, mesmo não alcançando êxito nessa tarefa, produzem uma ressonância no sujeito, que se alastra nele como uma ilusão de consistência de seu ser. A política da psicanálise vai por um outro caminho, propondo o que Danziato (2019) chama de “uma política do buraco, do vazio, da falta de um significante no grande Outro – S (A barrado)”, e coloca em xeque as garantias ontológicas do sujeito que essas práticas defendem.

            Danziato (2019) nos lembra que a noção lacaniana de sujeito barrado implica essa delicada e radical impossibilidade de completude que o discurso psicanalítico defende. O sujeito analítico foge, assim, de uma definição antropológica ou sociológica de seu ser: mesmo que seja fruto de uma estrutura de linguagem e dependa dela para se constituir como tal, ele vai ser sempre efeito, não da fusão, mas do corte com esse universal do grande Outro.

            Aposto, junto com o autor, que é justamente nesse ponto que reside a principal e mais radical colocação da psicanálise: nessa posição ético-política do sujeito, que precisa responder pulsionamente às suas faltas e desejos frente ao grande Outro. Gosto muito dessa citação do Lacan (1992, p.127), que fala sobre a insubordinação do desejo:

Os desejos, no que se pode chamar de sua permanência transcendental, a saber, seu caráter transgressor que lhes é fundamental, por que, como, não seriam eles nem o efeito, nem a fonte daquilo que constituem? (...) - uma desordem permanente num corpo considerado submisso.

            Voltamos, agora, ao paradoxo que Danziato (2019) nos coloca logo de início: que uma discussão entre política e psicanálise só pode se dar se considerarmos sua impossibilidade. Entendo que é esse impossível que anima a discussão, o mesmo impossível que também movimenta pulsionamente o sujeito em suas trilhas desejantes. Como nos ilustra bem Rita Lee, em sua música Coisas da Vida, a respeito do sujeito e sua incompletude estrutural: “Eu não tenho nada pra dizer, por isso digo; Eu não tenho muito o que perder, por isso jogo; Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho.”

Vou finalizando meu texto lembrando que, para que essa posição ético-política se engendre na psicanálise e na clínica, acredito que o psicanalista precisa estar avisado de toda essa história sociopolítica de jogo de poder, de seu contexto, de sua contemporaneidade. Além disso, precisa se apropriar do fato que também é parte da responsabilidade do analista movimentar o discurso analítico frente às peculiaridades de sua época. Como pontua Colette Soler (2012, p.34-35) em um de seus seminários:

O inconsciente tem seu sítio do lado do analista. (...) É a razão pela qual digo às vezes aos analistas que lamentam por não mais conseguir mobilizar o inconsciente e que incriminam os contemporâneos que, sem saber, eles confessam sua própria carência em sustentar a presença do inconsciente.

E que a psicanálise, como campo discursivo que habita nossa cultura, saiba que seu lugar precisa ser diferente do lugar de um discurso hegemônico que equipara saber e verdade. Relembremos sempre esse lugar pequeno, mas fundamental de seu eixo, como Lacan (1992, p. 73) aponta nessa colocação, mas em diversas outras de sua transmissão: “Não esperem portanto de meu discurso nada de mais subversivo do que não pretender a solução.”

REFERÊNCIAS

 

Danziato, L. B. (2019). Psicanálise e Política: Por uma prática da incompletude.

Psicologia & Sociedade, (31), 1-14.

 

Lacan, J. (1984). O Seminário, Livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da

psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55).

 

Lacan J. (1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

(Trabalho original publicado em 1969-70).

 

Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In

Outro Escritos (pp. 248-264). Rio de Janeiro: Zahar. (trabalho original publicado em 1967).

 

Safatle, V. (2024). Alfabeto das Colisões: Filosofia prática em modo crônico. São Paulo:

Ubu Editora.

 

Safatle, V. (2024). Uma era de crise psíquica. Revista Cult. (311), 16-20.

 

Soler, C. (2012). O Inconsciente: Que é isso? Santos-SP: Annablume.

 

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