A
minha apresentação hoje, partindo do título “Por uma política da incompletude”,
foi toda estruturada e inspirada pelo artigo do Psicanalista e Professor
Leonardo Danziato, intitulado Psicanálise e Política: por uma prática da
incompletude, de 2019. Alguns trechos e ideias discutidas no trabalho do
autor aparecerão em todo o meu texto, costuradas com colocações e
direcionamentos que eu fui entrelaçando, de outras leituras e da minha prática.
Entretanto, sugiro fortemente que vocês tenham acesso ao texto de Danziato, que
é muito interessante e completo para discussão que se propõe.
O título do meu trabalho é um
recorte que busca, portanto, fazer menção ao referido artigo, que trata
questões referentes à política e à psicanálise, ao mesmo tempo que soa
(propositalmente) como um manifesto de defesa: a psicanálise e seu lugar social
fundamental na contemporaneidade, tanto como campo discursivo teórico, quanto por
sua prática clínica, de tratamento do sofrimento humano. Proponho, todavia, uma
defesa atenta ao lugar particular da psicanálise nessas duas esferas – como
campo de saber e práxis –, considerando
suas especificidades éticas e técnicas. Mesmo que, aqui, eu faça algumas
discussões de base mais ontológica, vale lembrar, como pontua Danziato (2019),
que: “(...) tal como o inconsciente, a psicanálise não é ôntica, mas ética.”
(p. 7), e inclui, sempre, o falta-a-ser do qual todos nós padecemos como seu eixo
fundamental.
Começando pelo artigo proposto, Danziato
(2019) parte da ideia de que as relações entre psicanálise e política incluem,
inevitavelmente, uma hiância, que, de forma lógica, encontra um paradoxo, tal
como o que existe entre o universal e o particular, ou entre o sujeito e o
grande Outro. Sendo assim, a relação entre esses dois campos é sempre marcada
por um desencontro, do qual resta um Real; desencontro, entretanto, que o autor
considera como o ponto que sempre volta a reanimar a discussão entre esses dois
lugares. Esse debate se dá, para ele, como uma tentativa de lidar com o
mal-estar que os dois campos tratam, mal-estar esse relativo ao “sexo, a
violência, a dominação, a servidão, a segregação, o horror, e, portanto, (a)o
campo do gozo.” (p. 2). E, ao falar das questões do gozo, habitamos o campo
lacaniano. Lacan, em seu seminário 17 intitulado O Avesso da Psicanálise,
chega a dizer que já almejou que o campo do gozo fosse chamado, justamente, de
o campo lacaniano, afirmando: “E vemos a que ponto isto nos interessa, a nós, analistas,
porque se há algo a ser feito na análise é a instituição desse outro campo
energético, que necessitaria outras estruturas que não as da física, que é o
campo do gozo.” (Lacan, 1992, p.85). De qualquer forma, vale ressaltar que o
debate entre os campos da política e da psicanálise não visa, aqui, a busca de
um ponto em comum, mas parte, portanto, de um ponto de desencontro.
Sabemos que muitos impasses são
encontrados nas discussões entre as duas áreas, sendo um deles se configurando da
seguinte forma: de um lado, a política demandando da psicanálise um ato de
comprometimento ativo em suas causas, e, de outro, a psicanálise reagindo, como
pontua Danziato (2019), com um ceticismo radical no que diz respeito às
principais utopias políticas. Sim, nem Freud nem Lacan estiveram filiados a
projetos políticos significativos de suas épocas, considerando muitos deles
como processos ilusórios ou que culminam no discurso do mestre. Ainda assim,
Freud possui mais de uma obra em que se propõe a discutir o mal-estar gerado
por questões sociopolíticas de seu tempo, e Lacan se debruça nos efeitos da
instalação do discurso da ciência e do capitalismo para o sujeito (Danziato,
2019).
Me pergunto, aqui, junto com Danziato, se
negar os efeitos das questões sócio-políticas no sofrimento dos sujeitos, e
afirmar que não há nada de político nas produções de Freud e Lacan, não seria
confinar a psicanálise a um lugar de um discurso que se pretende apolítico e,
consequentemente, a uma prática que seja reacionária? Também não seria virar as
costas para a proposição do próprio Lacan, de que o psicanalista que não puder
perceber a conjuntura subjetiva de sua época deve renunciar ao seu ofício? Com
essas questões em vista, trabalharei aqui algumas percepções de Lacan a
respeito das relações entre saber, ciência e capitalismo, que parecem mais
atuais do que nunca e tocam em outros motes políticos de nosso tempo.
Para isso, proponho começarmos
tentando localizar as questões sociopolíticas que lidamos na atualidade, em
nosso contexto. Danziato (2019) parte sua análise considerando uma realidade
política atual na qual a instalação do saber e seus efeitos atuam como um
operador político central, inclusive na concepção de indivíduo da modernidade até
a contemporaneidade. Esse saber tange, principalmente, o saber científico, e nos
interessa chamar a atenção para a mudança discursiva de mestre na cultura que
Lacan propõe no Seminário 17, em que o mestre antigo e soberano perde sua
condição de agente e é substituído pelo saber universitário e pelo
mais-de-gozar capitalista.
Lacan trabalha essa cumplicidade
entre o saber científico e o capitalismo não só no seminário 17, mas em vários
pontos de sua obra, entendendo os efeitos políticos de segregação que essa
“absolutização do saber” poderia gerar, pensando, inclusive, na lógica dos
campos de concentração como funcionando sobre essa base. Em seu texto Proposição
de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, Lacan afirma:
Abreviemos dizendo
que o que vimos emergir deles [pensadores que conceberam os campos de
concentração], para nosso horror, representou a reação de precursores em
relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos
grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali
introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa
ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação. (Lacan, 2003, p.263)
Trata-se, portanto, de um período
histórico e político em que se promove uma espécie de atamento entre o saber e
a verdade, e, como efeito, uma crença totalitária e universitária da
possibilidade de um “tudo saber”. Lembrei aqui de algumas evidências de nosso
contexto que podem exemplificar, a meu ver, um pouco desse atamento, com
efeitos no campo da ciência, da política e da clínica: a proposição da lei do
Ato Médico no Brasil, realizada em 2013, em que, além de regulamentar o
exercício da medicina, continha uma proposta de que somente a classe médica
poderia diagnosticar doenças e prescrever tratamentos. Dessa forma, todos os
outros campos da saúde, seus diagnósticos e suas terapêuticas diversas,
dependeriam do diagnóstico e encaminhamento médico para poderem exercer suas
práticas com os pacientes (essa proposta foi vetada, com muito custo, mas até
hoje, volta e meia, é levantada como proposta política). A segunda lembrança
foi referente aos casos de duas analisandas minhas, que, ao irem em consultas
médicas, uma num psiquiatra e a outra numa ginecologista, foram sugeridas de
deixar o processo analítico e encaminhadas para terapia cognitivo-comportamental,
porque seria mais “eficiente” para seus casos.
Indo além desssa universitarização
do saber, Danziato (2019) desenvolve também o conceito foucaultiano de
biopolítica, interpretando esse termo como a intervenção desses saberes no real
do corpo e suas consequências políticas. Dessa forma, essa radicalização entre
o saber e a verdade visaria dar conta do real do laço social e do corpo,
prometendo uma resolução completa do mal-estar. Citando Danziato:
A biopolítica
(...) tem um efeito ideológico de despolitização assim como de dessubjetivação
do sujeito. Tratando questões políticas ou estruturais do sujeito como sendo do
âmbito da espécie ou do cérebro – como faz atualmente –, despolitiza
completamente questões cruciais, tanto para a interrogação da lógica dominante,
como para uma condição ética do sujeito, através de uma transcedentalização do
discurso médico e biopolítico. Se o problema é cerebral ou bioquímico, as
relações estruturais de poder e de gozo do sujeito permanecem intocadas.” (Danziato,
2019, p. 10)
Danziato (2019) avança na discussão,
trazendo o neoliberalismo – formato atualizado do capitalismo – e suas
consequências no sofrimento psíquico: o tratamento do sofrimento psíquico é
tomado por uma ideia empresarial de que tudo se corrige com uma boa gestão do
corpo e de suas patologias, na busca de uma alta performance. O filósofo e estudioso
da psicanálise Vladimir Safatle (2024) trabalha também nessa direção,
conceitualizando o que ele denomina de “empreendedores de si”. Nesse novo
modelo que expande a racionalidade econômica para a gestão privada do
sofrimento psíquico, o Eu fica responsável por se autogerir, individualizando e
também despolitizando a questão do sofrimento do sujeito e de sua divisão
imposta pelo próprio pacto social. Discutimos bastante nos encontros da ALPL
esse ano justamente a chegada de pacientes buscando análise como uma espécie de
ferramenta a mais de bem-estar e autocuidado, mas com dificuldades de alçar um
discurso analítico e de narrativizar e contextualizar seus sintomas, suas
inibições e suas angústias. Me parece que é esse o ponto em que devemos estar
atentos, como clínicos e psicanalistas, na atualidade.
Falando
em clínica, uma aposta de Danziato (2019), com a qual eu me identifico, é a de
que o dispositivo clínico psicanalítico, e eu acrescentaria, o discurso do
psicanalista, seria um operador do nosso campo que possibilitaria esse furo justamente
nessa tentativa de universalização hegemônica do sujeito e de sua
singularidade: nessa inflação da patologização de sofrimentos sempre referenciada
a uma espécie de “normalidade” que não inclui ninguém e pode empobrecer a
narrativa de quem sofre. Desde seus primeiros seminários, como nessa passagem do
seminário 2, Lacan (1985, p. 64) nos adverte que “fracassará toda intervenção
que se inspirar numa reconstituição pré-fabricada, forjada a partir de nossa
ideia de desenvolvimento normal do indivíduo, e visando à sua normalização
(...)”. Isso significa que a clínica e a psicanálise lacaniana devem ir ao
caminho oposto da busca de adaptação e normalização do indivíduo.
Lembrei aqui de um recorte de um
caso da minha clínica, que exemplifica como o dispositivo analítico pode funcionar
frente a esse aparato discursivo de transtorno versus normalidade. Uma analisanda,
que segue em processo analítico comigo há alguns anos, realizou uma avaliação
neuropsicológica a pedido de sua psiquiatra, por estar vivenciando um episódio
depressivo importante. Acompanho, por seus relatos, todo o processo de
avaliação e resultado, que ela me conta dessa forma em sessão: “Deu que eu
tenho transtorno de personalidade de esquiva. Não sei se você sabe o que é...”.
E eu questiono: “Esquiva?” E ela segue: “Sim, achei curioso o nome! Na verdade,
me lembrou um golpe da capoeira, de defesa, já te contei que fiz capoeira na
infância.” E eu pergunto: “Que mais você lembrou?” Ela segue: “Lembrei de toda
a infância terrível que eu tive com a minha mãe, e entendi que talvez eu tenha
desenvolvido essa personalidade porque precisei me esquivar das agressões dela
a vida inteira. Mas não foi ruim essa percepção, viu? Porque me parece que é
uma estratégia de luta por minha sobrevivência - que funcionou. Tô aqui.”
Gostaria de trazer aqui uma citação
do Safatle, de seu livro Alfabeto das Colisões (2024), que discorre sobre a
experiência analítica e parece conversar com essa colocação de minha paciente
sobre seu diagnóstico:
(...) existe um
tempo da análise no qual se trata não apenas de levar sujeitos a reconhecerem
as singularidades que atravessam suas formas de desejar, de se mover, de agir e
de utilizar a linguagem. Trata-se, sobretudo, de defender tais singularidades,
sendo que a segunda parte talvez seja a mais difícil. Isso passa por vários
níveis. Um deles consiste exatamente em livrar tais singularidades de suas
“determinações patológicas”. Determinações essas que, muitas vezes, foram
produzidas e reforçadas pelo próprio discurso clínico. (...) Trata-se de levar
os sujeitos a tomarem para si sua própria doença, fazer dela uma arma, a
expressão ativa de uma recusa social. (Safatle, 2024, p. 42)
Lacan (1985, p.121-122) complementa,
sobre a finalidade da experiência de análise:
O que será que análise
desvenda – se não é a discordância fundamental, radical, das condutas
essenciais para o homem, com relação a tudo que ele vive? A dimensão descoberta
pela análise é o contrário de algo que progrida por adaptação, por aproximação,
por aperfeiçoamento.
Busca-se, portanto, a produção – e a
defesa – de um saber singular a respeito do sofrimento de cada um.
Chego aqui à última parte de meu trabalho,
recolocando a seguinte questão: É possível pensar em uma posição política da
psicanálise lacaniana, que fuja desses dois lugares que eu pontuei no começo da
minha fala? Da militância por uma ideologia política na clínica, mas também de
um de lugar de apoliticismo ou despolitização? Voltando ao raciocínio de
Danziato (2019), é possível, se pensarmos numa espécie de prática da
incompletude, com a qual a psicanálise e sua clínica operam.
Para
a psicanálise, o sujeito sofre uma perda ao adentrar no campo social e
cultural, ou, como frisa Lacan, no campo da linguagem. Sendo assim, o sujeito
precisa se haver com uma não totalidade e uma complementariedade falha,
perdendo, portanto, “todas as versões ontológicas da universalidade” (Danziato,
2019, p. 4). A partir daí, o sujeito consegue alçar apenas suplências
insatisfatórias.
Condenado à insatisfação e ao impossível
da completude, ele se vê barrado também de um encontro absoluto com o outro –
fato que, paradoxalmente, o leva justamente a buscar o outro. São esses mesmos
buracos que nos movimentam ao outro, e Danziato (2019) chega a falar que “o
buraco é a condição social do sujeito” (p. 4). Portanto, quando falamos de sujeito em
psicanálise, também falamos do pequeno outro, do grande Outro e do social.
Entretanto,
em nossa cultura, algumas narrativas simbólicas emergem tentando recompor essa
universalidade perdida a partir do buraco: a religião, a moral, a magia, a
ciência, algumas ideologias políticas, tentam suturar essa falta que se forma
pela existência do buraco, e, mesmo não alcançando êxito nessa tarefa, produzem
uma ressonância no sujeito, que se alastra nele como uma ilusão de consistência
de seu ser. A política da psicanálise vai por um outro caminho, propondo o que
Danziato (2019) chama de “uma política do buraco, do vazio, da falta de um
significante no grande Outro – S (A barrado)”, e coloca em xeque as garantias
ontológicas do sujeito que essas práticas defendem.
Danziato
(2019) nos lembra que a noção lacaniana de sujeito barrado implica essa
delicada e radical impossibilidade de completude que o discurso psicanalítico
defende. O sujeito analítico foge, assim, de uma definição antropológica ou
sociológica de seu ser: mesmo que seja fruto de uma estrutura de linguagem e
dependa dela para se constituir como tal, ele vai ser sempre efeito, não da
fusão, mas do corte com esse universal do grande Outro.
Aposto,
junto com o autor, que é justamente nesse ponto que reside a principal e mais radical
colocação da psicanálise: nessa posição ético-política do sujeito, que precisa
responder pulsionamente às suas faltas e desejos frente ao grande Outro. Gosto
muito dessa citação do Lacan (1992, p.127), que fala sobre a insubordinação do
desejo:
Os desejos, no que se pode chamar de sua permanência
transcendental, a saber, seu caráter transgressor que lhes é fundamental, por
que, como, não seriam eles nem o efeito, nem a fonte daquilo que constituem?
(...) - uma desordem permanente num corpo considerado submisso.
Voltamos,
agora, ao paradoxo que Danziato (2019) nos coloca logo de início: que uma discussão entre política e
psicanálise só pode se dar se considerarmos sua impossibilidade. Entendo que é
esse impossível que anima a discussão, o mesmo impossível que também movimenta
pulsionamente o sujeito em suas trilhas desejantes. Como nos ilustra bem Rita
Lee, em sua música Coisas da Vida, a respeito do sujeito e sua incompletude
estrutural: “Eu não tenho nada pra dizer, por isso digo; Eu não tenho muito o
que perder, por isso jogo; Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho.”
Vou finalizando meu texto lembrando que, para que essa posição ético-política
se engendre na psicanálise e na clínica, acredito que o psicanalista precisa
estar avisado de toda essa história sociopolítica de jogo de poder, de seu
contexto, de sua contemporaneidade. Além disso, precisa se apropriar do fato
que também é parte da responsabilidade do analista movimentar o discurso
analítico frente às peculiaridades de sua época. Como pontua Colette Soler
(2012, p.34-35) em um de seus seminários:
O inconsciente tem seu sítio do lado do analista. (...) É
a razão pela qual digo às vezes aos analistas que lamentam por não mais
conseguir mobilizar o inconsciente e que incriminam os contemporâneos que, sem
saber, eles confessam sua própria carência em sustentar a presença do
inconsciente.
E que a
psicanálise, como campo discursivo que habita nossa cultura, saiba que seu
lugar precisa ser diferente do lugar de um discurso hegemônico que equipara
saber e verdade. Relembremos sempre esse lugar pequeno, mas fundamental de seu
eixo, como Lacan (1992, p. 73) aponta nessa colocação, mas em diversas outras
de sua transmissão: “Não esperem portanto de meu discurso nada de mais
subversivo do que não pretender a solução.”
REFERÊNCIAS
Danziato,
L. B. (2019). Psicanálise e Política: Por uma prática da incompletude.
Psicologia
& Sociedade, (31),
1-14.
Lacan,
J. (1984). O Seminário, Livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise.
Rio
de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55).
Lacan
J. (1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de
Janeiro: Zahar.
(Trabalho
original publicado em 1969-70).
Lacan,
J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.
In
Outro Escritos (pp. 248-264). Rio
de Janeiro: Zahar. (trabalho original publicado em 1967).
Safatle,
V. (2024). Alfabeto das Colisões: Filosofia prática em modo crônico. São
Paulo:
Ubu
Editora.
Safatle,
V. (2024). Uma era de crise psíquica. Revista Cult. (311), 16-20.
Soler,
C. (2012). O Inconsciente: Que é isso? Santos-SP: Annablume.