Os quatro pontos cardeais

Começo me repetindo e ecoando o que muitos outros também já disseram, de diferentes maneiras, em tantas oportunidades: a existência da psicanálise, a sua sobrevivência, depende de um trabalho de transmissão. Um, entre outros, como é o caso deste fórum a que nos propomos hoje. Há muito tomo posição, a qual considero sem retorno até chegar à parada final da minha jornada, quanto à aposta nesta premissa que tem um desdobramento fundamental: um analista é ao menos dois no caminho moebiano que percorre constantemente da intensão à extensão.  Báscula necessária e também contingente a uma ética, é o que nos ensinou Freud e Lacan. Eles não estavam construindo castelos teóricos a serem habitados pelos futuros analistas. Levaram uma vida toda demonstrando que o saber extraído da prática deve ser formalizado, teorizado e, em alguma medida, transmitido.

Repito, insisto neste ponto, portanto, por se tratar de uma questão vital, não há sobrevida da psicanálise, não há um analista sem o esforço e o desafio da transmissão, portanto, não há um sem dois. Sabemos que a insistência da repetição, mola mestra indispensável ao trabalho analítico, é um fato de estrutura cujo motor é o gozo. Também sabemos que Lacan nos ensinou que o final de análise é só o começo. O final é um ato de abertura a partir do processo de análise como experiência do inconsciente, a análise deixa algo em aberto. Uma abertura pela qual se prolonga a experiência com o inconsciente através de um devir, um encaminhamento pulsional que torna possível operar o desejo (de saber). E, no caso daqueles que decidem colocar em ato o exercício da função analista, o desejo (de saber) vai em consonância com o desejo do analista. Este é um fundamento possível para a formulação ao menos dois para um analista.

Se a experiência com o inconsciente se prolonga para além de uma análise, se o final de análise é só o começo e se a repetição (sendo fato de estrutura) persiste, podemos pensar a consonância entre desejo (de saber) e desejo do analista como um devir pulsional com destino de sublimação. Porge (2019) propõe esse devir como um equivalente da sublimação, um devir da pulsão sem recalcamento. Assim, entendemos o que fundamenta um analista como poeta o suficiente (poète assez/pot assez), tendo o vazio do pote e o ato criativo como elementos para a direção da cura. Bem como, mais uma vez, o que fundamenta o dois deste um analista, o dois que teoriza, escritura, reinventa (cria) a psicanálise para sua transmissão. Reinvenção permanente e indissociável destes dois campos (intensão e extensão) como eco sublimatório.

Alguns dos anos do trabalho lacaniano de reinvenção da psicanálise foram dedicados a estabelecer uma especificidade para o que denominou discurso do psicanalista. Entendo que esse trabalho de formalização começou (ao menos mais diretamente) no seminário sobre o Ato analítico, ganhou suas coordenadas ao longo de Um Outro ao outro, foi escriturado em O avesso da psicanálise e adquiriu novos contornos em Um discurso que não seria do semblante. Curioso: quatro seminários, quatro lugares e quatro elementos que os ocupam na estrutura dos discursos que também são quatro. Há outros “quatro” para Lacan, mas, esses interessam para o trabalho de hoje. Também é curioso termos trabalhado, no estudo da sexuação no ano passado, o último seminário desta série que enunciei e, ao final do percurso, definimos para este ano o tema O discurso do psicanalista, hoje. Curioso, pois, de alguma forma, partimos para o tema atual desde o seu “ponto de chegada” na série que enunciei e, portanto, teremos que fazer alguns giros de retorno (levogiros) para trabalhá-lo. Giros (de retorno, no caso) para irmos adiante, algo que também faz parte da estrutura e operatória do conceito de discurso.

Para Lacan, os laços entre os seres falantes são sempre laços de discurso que provém de uma determinada configuração desses quatro termos ligados à estrutura da linguagem: S1, S2, $, a. A partir disso, ele escreveu o discurso do psicanalista como um entre quatro que têm em comum uma estrutura composta por quatro lugares (ou casas) que são sempre ocupados pelos quatro termos já indicados, em diferentes posições, sendo que o movimento destes termos se dá sempre em um quarto de giro em duas direções possíveis (direita ou dextrogiro/esquerda ou levogiro), possibilitando a passagem de um discurso ao outro. Chamo a atenção para o fato de que ele se propõe a escrever o discurso do psicanalista (“meu desbravamento”), interessa-lhe a especificidade deste discurso (assim como para nós, a sua especificidade hoje) e, para tanto, escreve quatro. São quatro discursos a partir de quatro tarefas impossíveis, quatro fracassos: governar, educar, curar e fazer desejar. Com isso, temos de entrada uma especificidade do discurso do psicanalista: ele é escrito em referência a outros impossíveis e se precipita do movimento de um quarto de giro a partir do discurso universitário ou do discurso da histérica.

Ainda sobre uma especificidade, diferentemente dos outros três cuja referência é o que o discurso pretende dominar (amestrar), o discurso do psicanalista tendo a no lugar do semblante não pretende amestrar (dominar, curar) o impossível da relação sexual ou o real[1]. Ao contrário, coloca o impossível como causa e visa sustentá-lo como tal e não vivenciá-lo como mera impotência. É o que pode haver de mais subversivo em um discurso, não pretender nenhuma solução. Palavras em Estou falando com as paredes: “um saber que não pode fazer nada, o saber da impotência, é esse que o psicanalista poderia veicular” (Lacan, 2011, p.38). Observem, todos os discursos têm o impossível como cerne, o impossível da realização plena da tarefa, o que se relaciona com a impotência da produção em revelar a verdade. A diferença no discurso do psicanalista é que ele parte do impossível como causa, não almejando driblar essa estrutura fracassada per se através de seu referente/agente.

Assim, a psicanálise proposta por Freud é escrita por Lacan como um novo discurso fundado na prática da análise, onde o saber do psicanalista tem como referência o lugar em que é preciso estar para poder sustentá-lo (Lacan, 2011). Em que lugar é preciso estar o saber do psicanalista para poder sustentar o discurso do psicanalista, trata-se de uma questão de lugar. O saber da impotência de revelar a verdade para a cura, como um saber que um analista pode veicular, está no lugar da verdade no discurso do psicanalista. É ali que ele precisa estar para sustentar a no lugar de semblante, a impotência (o saber da impotência) sustenta o impossível (de curar o sujeito de seu gozo) como agente no lugar de semblante, o saber da impotência em suturar o impossível, o efeito desse saber como verdade permite a operar como semblante. O lugar da verdade ocupado por esse saber também traz mais uma especificidade importante para o discurso do psicanalista: não veicular um amor à verdade, pois Lacan nos alertou que ela é irmã da impotência. Buscar uma verdade, ser amante da verdade leva à paralisia, nos retém na impotência.

Tomo mais um trecho de Estou falando com as paredes (Lacan, 2011), onde encontrei o título de hoje:

As paredes, antes de ganharem estatuto, de ganharem forma, é aí, logicamente, que as reconstruo. Esse S barrado, esses S1, S2 e esse a com que brinquei com vocês durante alguns meses são exatamente isso, a parede atrás da qual vocês podem pôr o sentido do que nos concerne, daquilo que acreditamos saber o que querem dizer a verdade, o semblante, o gozo, o mais-de-gozar. É em relação àquilo que não precisa de paredes para ser escrito, esses termos como quatro pontos cardeais, é em relação a eles que vocês têm que situar o que são (p.97).

 

Paredes lógicas na estrutura do discurso, portanto, que dão contorno ao lugar que nos concerne como analistas em função. Os quatro termos desta estrutura linguageira ordenados na lógica do discurso funcionam como paredes atrás das quais colocamos o sentido da verdade, do semblante, do gozo, do mais de gozar. Que o sentido do que nos concerne fique esquecido atrás dos quatro termos da estrutura linguageira que fazem paredes lógicas, barreira ao sentido, assim nos situaremos. É um discurso sem fala, onde esses termos operam como pontos cardeais para a produção de um dizer.

Os quatro pontos cardeais não precisam de paredes para serem escritos, para nos orientarmos na superfície da Terra pelos pontos cardeais, precisamos de um referente e da boa posição de nosso corpo em relação a ele. Se for o Sol, apontamos nosso braço direito para o lado onde ele nasce e temos o leste, por consequência, o oeste está na direção do braço esquerdo, o norte à nossa frente e o sul atrás de nós. No que tange ao conceito de discurso, podemos pensar que o referente é a própria configuração dos quatro termos ligados à estrutura da linguagem (S1, S2, $, a – paredes lógicas) que determinam os laços de discurso.  E a boa posição de nosso corpo está associada à particular configuração do discurso do psicanalista. Outra leitura possível é pensarmos o referente como o impossível e a boa posição do nosso corpo dada como consequência disso, o que se relaciona com o devir pulsional no final de análise, articulando o desejo (de saber) com o desejo do analista como encaminhamento sublimatório e fundamenta o fato de o analista fazer parte da estrutura que se funda em transferência, ele participa do inconsciente e do sintoma do analisante.

A partir desta contextualização, para começarmos a pensar as particularidades atuais do discurso do psicanalista, identifico três pontos fundamentais que se entrelaçam e que acredito estarem relacionados ao movimento de colocar atrás das paredes lógicas o que se acredita saber sobre a verdade, o semblante, o gozo e o mais-de-gozar para que os pontos cardeais possam nos situar:

 

  1. o que uma análise deixa em aberto, permitindo que o operador do desejo do analista consone com o desejo (de saber), o que aponta para o processo de produção de um analista a partir do final de análise;
  2. a situação atual da psicanálise, pois, como refere Lacan em 56, isso é o determinante do que se pode esperar de um psicanalista;
  3. a própria operatória da estrutura linguageira que sofre efeitos do tempo e do espaço em que se encontra, uma vez que nosso humano é falasser, humus da linguagem.

 

Minha intenção em elencar esses pontos é, sobretudo, indicar que acredito que devemos estar sempre atentos e empenhados em trabalhá-los e quero frisar que estão articulados, a separação tem um cunho didático.

Destaco o quão importante é analisar a situação da psicanálise no tempo em que vivemos, seguindo o conselho dado por Lacan logo no início de seu ensino. Assim, para pensarmos o discurso do psicanalista, hoje, é imprescindível tal análise crítica. Abro perguntas que, ao meu ver, devem ser sustentadas. A quantas andam os operadores éticos fundamentais de nosso campo, a saber: a aposta no conceito de inconsciente e o impossível como causa que agencia o discurso do psicanalista e o diferencia radicalmente dos demais discursos? Como estão esses conceitos fundamentais nessa era tão marketeira, de aspiração à cientificidade e a especialidades? Quais as consequências do enfraquecimento desses fundamentos éticos no processo de produção de um analista? Enfim, arregacemos as mangas, porque o trabalho não é pouco.

Sobre o primeiro ponto, comecei o texto por ele, desenvolvi o que foi possível para os limites deste trabalho e me interessa pensá-lo na direção de um encaminhamento sublimatório associado ao operador do desejo do analista. Vamos ver onde isso vai dar, provavelmente na Jornada darei notícias. Por ora, apenas acrescento algumas pequenas observações. A primeira é uma definição que Lacan (2016) dá para a sublimação no seminário O desejo e sua interpretação: “é aquilo que possibilita que desejo e letra se equivalham” (p.517). Uma segunda pontuação está no seminário A ética da psicanálise (Lacan, 2008, p.137): “a sublimação revela a natureza própria da pulsão”. Na sequência, duas passagens próximas que estão no final do seminário Os quatro conceitos fundamentais para a psicanálise (Lacan, 1988): “depois do referenciamento do sujeito em relação a ao a, a experiência da fantasia devém pulsão” (p,258) e

O desejo do analista não é um desejo puro. É o desejo de obter a diferença absoluta: aquela que advém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito entra, pela primeira vez, em posição de se assujeitar a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite porque ele está fora dos limites da lei onde somente ele pode viver. (p.260)

 

Por fim, lemos em Mais, ainda (Lacan, 1988, p.23): “os discursos visam sempre à menor besteira, à besteira sublime, pois sublime quer dizer o ponto mais elevado do que está embaixo”.

São apontamentos, entendo, que podem ser desenvolvidos como sustentação do argumento da relação entre sublimação e desejo do analista e/ou do que um final de análise deixa em aberto e está implicado no processo de produção do um analista que só se faz no dois. Portanto, elementos de trabalho para uma especificidade do discurso do psicanalista. Observem que o desejo do analista, embora comporte renúncia de satisfação, não é um desejo puro no sentido do sacrifício ao desejo do Outro que está no cerne do desejo, mas do reconhecimento do impossível como causa, de que o objeto está perdido desde a origem e que é no vazio da Coisa, no furo que é possível algum tipo de reencontro (e esse é o mote da sublimação e da especificidade do discurso do psicanalista).

O terceiro ponto trabalhei mais extensamente em um artigo que vocês podem ler na última edição da Revista Topos (Torezan, 2024), pinço alguns elementos, partindo de uma citação do seminário O avesso da psicanálise (Lacan, 1992):

 

Tal saber é meio de gozo. E quando ele trabalha, repito, o que produz é entropia. Essa entropia, esse ponto de perda, é o único ponto, o único ponto regular por onde temos acesso ao que está em jogo no gozo…. Isto tem a ver com a estrutura, que se aparelha. O ser humano, que sem dúvida é assim chamado porque nada mais é que o húmus da linguagem, só tem que se emparelhar, digo, se apalavrar com esse aparelho…. A partir daí começa o trabalho. (14/01/70, p.53)

 

É com a entropia, com o ponto de perda, que temos acesso ao que está em jogo no gozo. Entropia que se produz com o saber a trabalho através do emparelhamento/apalavramento de linguagem que é o que gera o nosso humano como húmus da linguagem. A partir daí começa o trabalho, disse Lacan. (“A marcação do corpo pelo significante primordial produz efeito de perda de gozo, de que o objeto a devém suporte. Daí seu nome equívoco de (já) mais-de-gozar” Porge, p.101).

Humus em latim significa terra, chão, solo. Uma etimologia possível para humano, definido como um ser terrestre em contraposição aos seres divinos. Mas, a expressão de Lacan também me leva à definição de húmus em nossa língua: substrato formado na camada superior do solo como produto da matéria orgânica que se decompõe, através da ação de microrganismos. Assim, na falta de material orgânico ou dos elementos necessários para o processo de decomposição na constituição do húmus, temos um húmus ralo, pouco rico. Estaria nosso falasser (húmus da linguagem) enfraquecido pela falta de material e/ou dos elementos necessários para a (de)composição e operatividade do sistema de lalíngua, tal qual um húmus ralo ou um solo (corpo) infértil? Penso nisso, em especial, a partir de maiores impasses para a entrada e sustentação do dispositivo analítico (indefinição da demanda, dificuldades com a associação livre, com o divã, com a frequência das sessões, com as ondas e ressonâncias da polifonia e da homofonia a partir do que fica esquecido atrás do que se diz no que se ouve) e de uma fenomenologia marcada pela apatia e ausência de desejo, pelo entorpecimento acompanhado da necessidade de grandes emoções para sentir-se vivo e por um corpo exausto, pesado e doloroso.

Nesta direção, Chemama (2023), amparado em formulações de Safouan, fala de subequipagem da linguagem, de uma espécie de redução da linguagem à comunicação. Nesses casos o corpo como substância gozante parece estar em curto-circuito em conjunto com uma circularidade aprisionante no nível da demanda, sem alçar o desejo. Esfericizado neste curto-circuito, o corpo parece resistir à letra, às grafias, às cifras que poderiam ser geradas a partir do ponto de perda com o saber a trabalho. Literal que resiste aos efeitos de verdade da letra como furo no saber, por uma certa carência no sistema de lalíngua como invariante da estrutura do falasser? Afinal, a estrutura é do sujeito e ela se apanha ali onde o simbólico toma corpo, onde a inscrição de uma marca ligada ao sistema de lalígua condiciona as apresentações do sintoma e os diferentes modos de escriturar a falta implicam a singularidade do gozo. (Cruglak, 2021).

Enfim, aposto no trabalho sobre estes três pontos, de forma enodada, para que o referente e a boa posição possam operar e possamos nos situar, nos dias de hoje, ainda com nossos pontos cardeais, pois os referentes fundamentais e a boa posição são condições essenciais à uma ética.

Zeila Torezan, 29 de abril de 2024.

 

Chemama, Roland (2023). Introduction. In: Chemama, R; Hoffman, C. Que nous apprennent les cas-limites? Version PDF © Éditions érès 2023.

CruglaK, Clara (2021). Lo real a la huella. En la experiencia psicoanalítica. Buenos Aires: EFBA.

Lacan, Jacques (1988). Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-64). Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, Jacques (1988). Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, Jacques (1992). Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, Jacques (2008). Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, Jacques (2011). Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Saint-Anne. Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, Jacques (2016). Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (1958-59). Rio de Janeiro: Zahar.

Porge, Érik (2019). A sublimação, uma erótica para a psicanálise. São Paulo: Aller.

Torezan, Zeila F. Onde está o ponto de perda? In: Revista Topos, V. 19, 2024. Disponível em: https://8f36b8d1-1f23-4116-88b1-d1a6d819f08e.filesusr.com/ugd/3a2ce3_c9fab0a4160c447cb5c42977e7cc372d.pdf

 

 

 

Post scriptum: alguns acréscimos a partir das colocações de Mônica Silva como debatedora deste trabalho na data de sua apresentação.

 

Registro meus agradecimentos à Mônica Silva, na função de debatedora deste fórum, pela leitura cuidadosa que me relançou ao trabalho, inclusive com a redação deste acréscimo ao texto inaugural.

 O primeiro ponto assinalado foi sobre a afirmação de que intensão e extensão se articulam moebianamente, propondo um enlace desta premissa com a relação entre o público e o privado (a partir de um ponto discutido no fórum de abertura deste ano) que marca a noção de discurso para Lacan. Fico feliz que ela possa ter lido assim, pois era mesmo para tal dizer que lancei meu dito. Quando digo que este funcionamento moebiano sustenta uma possibilidade de transmissão a partir da extração de um saber da prática que possa passar como sustentação de uma ética, me refiro, exatamente, à relação entre o público e o privado. Por isso comecei o texto afirmando que a sobrevida da psicanálise em um determinado tempo, em uma cultura, depende da transmissão: que o saber desta prática singular de um a um passe ao público. Isso também se refere, em cheio, à noção de Escola e, portanto, à produção de um analista que só é possível no um entre outros. Sem agrupamento, mais um a um, entre outros. Assim se vai fazendo Escola, assim se vai fazendo psicanálise, assim se vai fazendo um analista.

Como desdobramento deste ponto inicial, Mônica lança uma questão: “Mas seria então a transmissão também de um buraco? De uma perda?” A este respeito, fiz referência no debate a outro texto meu (“A transmissão a-live?”, disponível neste mesmo site) e retomo dele um pequeno trecho: “o intransmissível está no coração do desejo de transmitir, não como inefável perdido nas areias do deserto, mas como soleira para a invenção” (Porge, 2009, p.15). É o intransmissível que opera na transmissão  como motor para a invenção e sobrevivência da psicanálise”. Não diria que a transmissão seja de um buraco, mas é o buraco que aí opera para a transmissão que trabalha para a reinvenção constante da psicanálise. A transmissão é da ordem do real, portanto, de um impossível e isso produz um efeito de buraco (como ela disse que meu texto lhe produziu) em torno do qual algo pode ser construído.

Também achei muito interessante a maneira como foi comentado o que trabalhei no texto a respeito do ponto de perda, com o qual temos acesso ao que está em jogo no gozo. Uma entropia que se produz com o saber a trabalho através do emparelhamento/apalavramento de linguagem que é o que gera o nosso humano como húmus da linguagem. Mais uma vez, Mônica leu o que procurei escrever e, como assinalei no debate, o que encontramos muito claramente em Porge (2019, p.101): “A marcação do corpo pelo significante primordial produz efeito de perda de gozo, de que o objeto a devém suporte. Daí seu nome equívoco de (já) mais-de-gozar”. Entretanto, gostaria de acrescentar que a partir deste fundamento, digamos, que nos remete à origem, que gera nosso falasser, vislumbramos a operatória da clínica psicanalítica: é com o saber a trabalho em transferência que teremos acesso ao que está em jogo no gozo, na organização fantasmática em causa.

A respeito dos comentários feitos por Mônica sobre os pontos cardeais, sim, nossas coordenadas sempre estarão naquilo que fundamenta uma ética e nos operadores de leitura que construímos a partir daí. E, acrescento, no caso específico desta estrutura que é o discurso do psicanalista, penso que a passagem de Lacan que referi indica que os pontos cardeais são os operadores que definem os lugares da estrutura discursiva: a verdade, o semblante, o gozo e o mais-de-gozar. E, os quatro elementos linguageiros (S1, S2, $ e a), bem como a maneira particular com que ocupam as casas no discurso do psicanalista são as paredes lógicas referidas por Lacan. Paredes lógicas (pois se trata de uma escritura lógica) atrás das quais o sentido de cada um dos operadores fica esquecido, só assim eles operam, tornam-se operadores que nos servem como orientação. Por isso, trata-se, como disse antes, de um discurso sem fala, onde esses termos operam como pontos cardeais para a produção de um dizer.

Nesta mesma direção, sobre a boa posição do nosso corpo, retomo os elementos que se referem ao final de análise ser apenas o começo da produção de um analista. A boa posição é possível de começar a ser sustentada a partir do referencial mínimo, necessário, mas não suficiente que é o final de análise, aquele que deixa em aberto, prolonga a experiência do inconsciente e habilita o operadores desejo do analista e presença do analista. Assim, com esse referencial mínimo e com o que continua a trabalhar pelo que ficou em aberto dessa experiência com o inconsciente, ao ser colocado em transferência no lugar de semblante de a será possível sustentar essa boa posição que implica tomar parte da estrutura que aí se arma: o analista participa do conceito de inconsciente, é metade do sintoma do analisante.

Mais uma questão interessante lançada pela Mônica: “O que você pensa ser esse material orgânico, que seria o elemento necessário para o processo de constituição do humus?” Não tivemos muito tempo para desenvolver essa questão no debate, mas ela é essencial e pede que sigamos trabalhando. Acho que, mais uma vez, alguns elementos devem se enodar para uma boa resposta. Talvez o que abordamos no dia do evento seja aquele que atua como um fator fundamental do qual os demais se desdobram. Refiro-me à cultura, pois como elenquei como terceiro ponto: a operatória da estrutura da linguagem sofre efeitos do tempo e do espaço em que se encontra e, portanto, o sistema de lalíngua, que se inscreve e origina nosso humus da linguagem, será afetado por isso. Além disso, elementos da cultura repercutem em conceitos fundamentais que também compõe a origem do nosso falasser: as funções materna e paterna, a sexuação, os nomes-do-pai, a inscrição da castração, etc…

E este enlace com a cultura se articula à última observação feita por Mônica (que não chegou a falar no dia do fórum, devido ao tempo): o discurso do capitalista atrelado ao que Chemama denomina de uma redução da linguagem à comunicação. Novamente, convergimos em nossas ideias, tinha pensado em abordar o discurso do capitalista no desenvolvimento do ponto três, declinei pela extensão e densidade que o texto já havia alcançado. Em seu argumento, Mônica toma particularmente a presença do discurso do capitalista invadindo as universidades e diz: “me assusta ver essa invasão em um ambiente em que deveria ser o espaço de um pensamento crítico. E me parece que as universidades estão indo por um caminho de “emburrecimento”, e isso me parece assustador.” Absolutamente de acordo com esta triste formulação e lembro que Dany-Robert Dufour desenvolve essa questão de forma magistral em “A arte de reduzir as cabeças” e “O divino mercado”, apontando que o sujeito crítico Kantiano e o sujeito neurótico freudiano se encontram em declínio em função do predomínio do discurso da ciência e do discurso do capitalista.

O discurso do capitalista não mantém a estrutura fundamental do conceito de discurso, por isso não é contado como um discurso radical. Não seguindo a regra de movimento e da direção dos vetores da estrutura discursiva, tal discurso permite um acesso direto à verdade (assim ela seria toda conhecida), rompe com o impossível da tarefa e permite um acesso ao objeto sem a intermediação do outro. Assim, não mais temos uma estrutura que caracteriza um laço de discurso, o objeto ganha concretude e o gozo seria sem limites. Não há outra coisa a se esperar dessa estrutura a não ser violência, rompimento de vínculos e emburrecimento.

Por isso, infelizmente, o emburrecimento não tem sido apenas nas universidades, é algo assustadoramente generalizado em nossos tempos e, diretamente associada ao que vai se passando com a estrutura da linguagem. A este respeito, reproduzo um pequeno trecho de um texto recente de Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista da Folha de São Paulo, onde ele aborda a violência e burrice nas redes socias através da repercussão de uma charge de Jean Galvão sobre a tragédia do Rio Grande do Sul:

 

“É possível, claro, achar que a charge de Galvão não é tão rica assim em significados. Entendo os amigos que a consideraram de mau gosto. No entanto, que tanta gente embarque na tese de que o artista zombou da desgraça alheia me parece um sinal claro de que estamos vivendo tempos perigosamente hostis à inteligência. Não se trata de uma burrice individual, particularizável, mas coletiva –o pior tipo, pois afeta até pessoas inegavelmente inteligentes. Afeta todo mundo, inclusive quem percebe o que está acontecendo, mas se vê impotente como a família no telhado. O problema é de linguagem. Como sociedade, estamos perdendo na vertigem cacofônica das redes a capacidade de lidar com sutilezas. Espera-se da arte que seja prescritiva e construtiva, que suas mensagens tenham a clareza de cartilhas e manifestos, unívocas e mobilizadoras.”

 

É isso, se a linguagem se reduz à comunicação, perde sua estrutura essencial de buraco, de perda, de equivocidade e, com isso, lá se vai embora a criação, a possibilidade sublimatória e nosso humus da linguagem. Tempos nefastos, sigamos tentando alguma subversão.

Muito obrigada, Mônica e demais leitores deste texto.

 

Zeila Torezan, 11 de maio de 2024.

 

 

 

Porge, E. (2009). Transmitir a clínica psicanalítica: Freud, Lacan, hoje. Campinas: Editora da Unicamp.

 

Rodrigues, Sérgio. Onda de ódio provocada por charge acende sinal de alerta. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2024/05/onda-de-odio-provocada-por-charge-acende-sinal-de  alerta.shtml?utm_source=sharenativo&utm_medium=social&utm_campaign=sharenativo

[1] “Não há medida comum entre, de um lado, o Um de uma suposta união dos gozos sexuais entre homem e mulher; e, de outro, a perda do objeto a, causa do desejo ou mais- de-gozar. Tampouco há medida comum entre esse Um e o falo, que separa os sexos em sua relação com ele mais do que os complementa.” (Porge, 2019, p.87)