O Tacho e a Frigideira

Ao longo deste ano de trabalho, em um dado momento, destacou-separa mim uma colocação do psicanalista Isidoto Vegh, que ouvi na gravação de uma conferência por ele ministrada aqui em Curitiba, algo como: “o analista deve se analisar, e  muito, até o limite do possível, se não, não suporta estar nesta frigideira tantas vezes por dia.”

Acredito que esta metáfora ecoou em meus ouvidos porque o interesse por este cartel sobre o desejo do analista surgiu a partir de algumas inquietações em meu trabalho na enfermaria do Hospital Universitário de Londrina, e este eco produziu uma imagem, daquelas ao estilo das tirinhas da Mafalda, lá estava eu na enfermariam, num grande tacho, imersa em óleo quente.

As inquietações a que me refiro, dizem respeito à constatação de uma intensa, e peculiar, oscilação na minha capacidade e qualidade de trabalho com as pacientes internadas. Percebia claramente momentos em que conduzia entrevistas através de uma escuta analítica, atenta a produção de significantes e à emergência do sujeito inconsciente, e em outros, evidentemente aprisionada ao sentido, tangenciava a postura terapêutica.

Então, necessariamente, passei a me interrogar, não exclusivamente em minha análise, o que gerava esta incômoda e desmotivadora dicotomia, pois entendia que algo também do âmbito teórico deveria estar aí atrelado.

Esta percepção se associou ao fato, provavelmente por todos conhecido, de que no Brasil, em especial na última década, a bandeira da psicanálise no hospital foi içada, mas a impressão que tenho é que não se foi muito além disso. Impressão calcada na escassez de material bibliográfico nesta área, e portanto no pouco avanço teórico e prático aí presente.

Fato que gera estranheza, em virtude de ser essa vertente nitidamente controversa àquela que historicamente inaugurou os trabalhos “psi” em hospitais gerais, e que aí mantém predominância ao longo de meio século, a Psicologia Hospitalar. E esta estranheza agrega, para mim, mais interrogações: porque, a despeito de existirem alguns serviços onde trabalham psicanalistas, não há um desenvolvimento efetivo da Psicanálise nos Hospitais? Porque é praticamente inexistente a produção teórica nesta área?

Retomando, agora dentro do contexto acima, a esfera particular desta questão, as referidas oscilações na sustentação de uma escuta analítica nas enfermarias parecem apontar para, ou refletir, as dificuldades para não recuar ao desejo do analista.

Dificuldades que, ao meu ver, se acentuam muito no trabalho em hospital, pois os elementos que circunscrevem esta prática constituem demandas recorrentes para a promoção de saúde e “bem-estar”, comuns e pertinentes ao ideário médio, apropriadas, talvez, aos propósitos da Psicologia, mas inadequadas ao campo psicanalítico.

Refiro-me ao contexto institucional, partindo de seus objetivos e, consequentemente, refletindo no discurso predominante em toda a equipe de saúde, no qual o paciente é tratado como alguém, ou talvez seja mais adequado dizer algo, para o qual certamente se sabe o que é melhor.

Bem, e pela outra via, o paciente, na maioria das vezes já por sua estrutura, e ainda agravado pela condição de adoecimento, faz parceria neste jogo, se apresentando como este objeto, que entende que demandam, a ser cuidado, na espera de aquisição de saúde e bem-estar.

E o psicanalista, em sua função se posiciona desde o lugar da falta, pois não recuar ao desejo do analista significa suportar a própria castração. Assim, o analista, trabalhando com o conceito de transferência enquanto um fenômeno subjetivo e portanto concernente ao sujeito, estrutural e avesso às relações intersubjetivas, jamais contemplará qualquer tipo de “transmissão de bens”, ao contrário “ele sabe que deve oferecer um lugar vazio, que permite ao analisante articular seu desejo e não pretende poder oferecer o que falta ao outro” (Lebrun et al. 1994: 290).

Ainda temos que considerar que, na grande maioria das vezes, inversamente ao que ocorre no consultório, o analista vai até o paciente oferecer sua escuta, seja pela requisição de um terceiro, ou pela rotina de trabalho do primeiro.

Esta questão, sempre debatida nos colóquios e em alguns textos referentes à Psicanálise no hospital, via de regra evoca a formulação de Lacan de que “a oferta cria a demanda.“. Atualmente, escuto esta formulação não como uma resposta para o impasse citado, e sim como fonte de mais indagações.

Aliás, o mercado é regido por algo muito parecido, a ideia de que a oferta, a propaganda, gera uma “necessidade”. Mas sabemos que depende, e muito, de como e para quem a oferta é feita, e como o mercado não tem como contemplar as diferenças  individuais, aposta naquilo que considera funcionar para a maioria.

Bem, enfocar a individualidade, a particularidade de cada um, é o que há de fundamental, de precioso na escuta analítica, pois como nos coloca Lacan no encerramento do Seminário 11 (1998: 260): “O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele“.

Mas se, para além de não oferecer respostas ou transmitir “bens”, o desejo do analista implica necessariamente em não demandar, me parece muito arriscado que no hospital, considerando os aspectos aqui já mencionados, a oferta acabe por produzir mais força na demanda de demanda que o circuito transferencial analítico contempla.

E esta demanda advinda de uma pessoa fisicamente debilitada, exalando sofrimento físico e muitas vezes estampado a figura da morte, não faz frigir o analista? E o óleo esquenta ainda mais com as convocações da equipe e da instituição para que se faça “alguma coisa”, demandas de eficácia e produtividade.

Sem desconsiderar, de forma alguma, a melhor suportabilidade da fritura por aqueles que estão em análise, e mais ainda por aqueles que nela já avançaram até o limite do possível, ainda assim entendo que nos deparamos aí com elementos significativos, no sentido do seu potencial para afetarem o narcisismo do analista, e portanto para estremecerem o desejo do analista.

Esta formulação tornou-se ainda mais consistente, quando ouvi alguns colegas psicanalistas ou em formação analítica que atuam em hospitais, identificarem uma maior “motivação” para o trabalho no momento em que se deparam com pacientes que enunciam uma demanda de cunho analítico, como se esse enunciado “tirasse” o analista do tacho.

E talvez, de maneira similar, seja alguma espécie de “conforto” que encontram os psicólogos quando, através de um posicionamento terapêutico, acreditam produzir algum tipo de “bem” para o paciente, amenizando os sentimentos de impotência favorecidos no contexto hospitalar.

Pelo que compreendi, a colocação inicialmente citada neste texto, apesar de indicar que de “somos feitos de substancia gozante“, e portando estamos sempre sujeitos à frigideira, refere-se a momentos particulares da clinica psicanalítica, nos quais o analista deve, e pode, suportar o calor e a dor da fritura, porque a despeito desta significar intensos ataques à aspectos importantes para a pessoa do analista, certamente não é como tal (pessoa) que ele aí está.

O que procurei desenvolver neste trabalho, é que no hospital estes momentos não são tão particulares assim, ao contrário, parecem ser extremamente freqüentes. Frequência tal que, por vezes, gere insuportabilidade da unção, a qual pode produzir alguns sintomas, como as referidas oscilações na qualidade do trabalho, desmotivação, paralisia, atuações humanitárias…

Sintomas que traduzem, portando, a impossibilidade da sustentação do desejo do analista, aquele que se mantém como enigma pelo fato de que nunca se satisfaz, e a conseqüente presentificação de uma demanda em seu lugar, aquela para a qual algo se torna objeto.

Lembro-me, auxiliada por meu caderninho de notas, que em uma de nossas reuniões de trabalho identificamos que levar um caso para supervisão é reinvestimento no desejo do analista, pelo reconhecimento da falta de saber.

Bem, hoje considero que minha inserção, pela primeira vez, em um cartel teve este mesmo significado, e que talvez esta se tenha dado, em grande parte, pelo calor excessivo do tacho.

Autora: Zeila Cristina Facci Torezan

Trabalho desenvolvido junto ao Cartel sobre o Desejo do Analista e apresentado na Jornada de Cartéis da Biblioteca Freudiana de Curitiba em Novembro de 2001.

 

Referência Bibliográfica

LACAN J. O seminário – Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 270 p.

LEBRUNT, T., STRYCKMAN, N, BRUGGEN, B., &, C. VANDEVYVER. O conceito de transferência. In: Dorgeuille, C. & Chemama. Dicionário de Psicanálise – Freud & Lacan. Salvador: Ágalma, 1994. P 286 – 305.