“Não fui Eu”

No gramado uma criança de 5 anos brinca de bola. Num, rompante, chuta com força e acerta meu rosto, me machucando. Como uma boa adulta, querendo ensinar – lhe a consideração ao outro, paro o jogo e falo que assim não. Imediatamente, a criança diz: “Não fui eu!” “Foi ele”, apontando para seu pé. E era verdade.

O que essa criança me dizia é que não tem controle sobre o seu próprio corpo. A excitação que a acomete está para além do controle do eu. Numa outra ocasião, deixa cair objetos no meio do caminho. Frente a tal atitude, mais uma vez eu, incomodada com a bagunça e querendo ensinar – lhe as consequências de seus atos, lhe pergunto se não vai pegá – los. Ela manda eu pegar. Frente a essa resposta, eu tinha duas opções: ou impunha minha autoridade, mandando – a pegar à força, ou (e foi o que fiz), reconheci a dificuldade daquela criança em poder se responsabilizar pelo que fazia e me propus a auxiliá – la nesse processo. Ele aceitou a ajuda.

E assim trabalhamos durante esse ano. A queixa da mãe era a de que essa criança fazia coisas que a caracterizariam como uma criança “mal educada, desobediente”: cuspia, soltava puns, arrotava, machucava seus amiguinhos, empurrando – os ou chutando – os e diante do “não”, emburrava ou fazia o contrário do que lhe era solicitado.

Tal criança despertava nos adultos que lidavam com ela, raiva e a atitude de brigar e obrigá – la a obedecer e se submeter ao processo educativo imposto a todas as crianças. Comigo não foi diferente. Me vi defronte então a dois caminhos: podia dar vazão ao meu furor pedagógico ou fazer um esforço para ouvir um sujeito. Admito ser uma escolha difícil e por muitas vezes confundi as duas posições.

A educação vem a auxiliar o processo de recalque do modo de satisfação infantil. O infantil (que independe de idade cronológica) é o incurável da sexualidade humana. Isso porque no homem, a sexualidade não se restringe à genital, a qual possui uma função biológica (de reprodução); mas é constituída de outras zonas erógenas, e as pulsões parciais se caracterizam por uma variabilidade em seus fins e objetos. A criança, na qual ainda não se impôs o recalque, é polimorfa perversa, encontrando poucas resistências a se satisfazer dessas formas.(CIRINO, 2001 e MILLOT, 1987). O trabalho da infância é então o de renunciar a tal modo de satisfação, e ela o faz por amor à mãe ou ou medo do pai.

Que modo de satisfação é esse? Voltemos ao início, na relação mãe – bebê: Toda criança se põe como objeto de completude de sua mãe. E realmente, as crianças não podem dispensar os adultos, dependem deles para sobreviver, no orgânico e psíquico. Se não se fizerem como tal objeto de completude, ao menos um semblante disso, são abandonadas. O que diferencia o modo como vão fazer isso é se passaram por dois operadores lógicos, o Estadio do Espelho (LACAN, 1995) e a castração (Freud).

No estadio do espelho, a criança se vê fora, num espaço que não é o do vivido, uma imagem unificada e completa com a mãe, fundando um ideal e ao mesmo tempo uma falta. A criança então passa a ter recursos para garantir a presença do Outro, oferecendo-se como imagem que visaria completar a falta no Outro. A relação entre a mãe e a criança não é portanto dual, mas mediada pelo falo imaginário. Se a criança tem esse recurso, a fim de colocar – se como o objeto de completude de suas mãe, não necessita ser de fato tal objeto, pode fazer um semblante. Já existe uma diferença entre a criança e o que ela representa para a sua mãe. Ela está num lugar fálico, não objetal. Ou seja, existe um espaço para a falta, para o que poderia ser mas não é. Tal experiência da falta, possibilita à criança um espaço para a dúvida e o desejo:se ao Outro falta, o que deseja? O que posso oferecer a ele para o completar? Então, o que o Outro deseja de mim?

Isso só é possível se mãe e criança tiverem o registro da castração. Isso é realizado pela Função Paterna, a qual impede a criança ao acesso pleno à completude, permitindo a ela transcender essa relação para além do desejo da mãe. É a mãe que faz a entrada do pai, em seu discurso e seu desejo, como algo que está para além dela, uma lei à qual tem que se submeter. O pai põe um basta nesse mais de satisfação, impondo uma lei de interdição. Substitui o significante do desejo da mãe pelo significante Nome do Pai, fazendo metáfora. Restitui o falo ao seu lugar, como objeto de desejo da mãe, distinto da criança e o qual ele é o portador. Esta reposição é uma castração da criança e da mãe. Quando a Metáfora Paterna se realiza, o sujeito conta com a cadeia significante para lidar com a demanda do Outro, de maneiras diferentes, segundo as versões que faz dela, a partir da ordem simbólica. Isso significa recalque; ou seja, as coisas não vão diretamente para o  ato, têm a mediação da palavra, de um julgamento e podem se transformar em outra coisa.

No caso desta criança, a lei estava ligada ao amor à mãe. Esta lhe pedia que fosse obediente cobrando – lhe um pagamento por tudo o que fazia por ela: deixava de fazer coisas para si, mudou o horário de trabalho para poder passar mais tempo com ela, fazia um esforço real para dar a essa criança tudo o que ela lhe pedia: sua presença. E essa criança se esforçava também para ser um bom menino: tentava ser o primeiro da fila na hora de entrar e nas aulas de educação física, não admitia não saber a matéria que a professora passava na escola. Mas, mesmo diante de algo que aparenta uma harmonia de quereres, algo ali caducava: a escola se queixava da criança para a mãe, dizendo de como essa atitude dela atrapalhava as aulas e os amiguinhos, pelo seu excesso de competitividade, agitação e agressividade, demonstrando que não era realmente possível um encaixe perfeito na sexualidade humana, uma satisfação plena não era possível, algo ali se perdera, para sempre. E essa mãe tinha muita raiva disso, e brigava com seu filho do porque não lhe dar o que ela lhe pede, que seja esse algo que a completa, e a criança se constrangia por não poder mais ser tudo para essa mãe.

Ao mesmo tempo, este sintoma mantinha mãe e filho juntos, pois ninguém mais era capacitado para ficar com ele e fazer – lhe obedecer, e também disso a mãe se queixava: “Não entendo, comigo ele é tão bonzinho…”

Até que essa mãe não suporta mais tal discrepância e o que antes eram ameaças (ela dizia que ia mandá – lo para morar com o pai) abandona esse filho, muda o horário do emprego e não tem mais tempo para ele, nem para levá – lo ao tratamento. Por minha insistência, eles retornam, mas agora é o padrasto que o traz. Esta foi inclusive uma exigência da mãe, que cobrava para que este participasse mais dos cuidados e educação da criança. Ela então retorna, mas mais desobediente e agressivo. Foi possível notar então o quanto a manutenção dessa barra estava embasada no amor à mãe. Segundo Millot (1987), as medidas educativas consistem em exigir da criança a tolerância a o desprazer decorrente pela renúncia da satisfação imediata, a fim de obter um outro prazer: o amor. O amor não representa para a criança apenas uma satisfação de ordem libidinal, mas também a garantia de estar protegido contra o mundo externo. Para a criança, a realidade são as demandas do outro, ela é tecida pela palavra. Quando a criança se sujava, ou quebrava algo, se assustava e perguntava: “minha mãe não vai brigar?” Quando esta mãe se retira, a criança já perdeu o que temia, e agora está desamparada frente á excitação vivida em seu corpo. Ao mesmo  tempo, continuavam as cobranças da escola para que essa criança se regrasse segundo a ordem civilizatória.

Segundo Freud, “a dificuldade da infância reside no fato de que, num curto espaço de tempo, uma criança tem de assimilar os resultados de uma evolução cultural que se estende por milhares de anos, incluindo-se aí a aquisição do controle de seus instintos e a adaptação à sociedade — ou, pelo menos, um começo dessas duas coisas(…) Só pode efetuar uma parte dessa modificação através do seu desenvolvimento; muitas coisas devem ser impostas à criança pela educação. Por conseguinte, a educação deve inibir, proibir e suprimir”. Segundo Jerunsalinsky apud Petri (2003), a educação estabiliza o gozo, e é realizada primeiramente pelos pais, os quais, em nome de um desejo próprio, submetem a criança a um ideal.

Diante disso que a acomete, a criança se questiona acerca da sexualidade, em si e nos adultos, e não tem pudor de perguntar. Porém, quando isso ocorre, geralmente é rechaçada, o que acaba por ocasionar um conflito psíquico. Freud diz que aqui se instala o complexo nuclear da neurose. “A origem do recalque não se encontra na proibição imposta ao agir, mas na que é imposta ao dizer. O que não pode ser dito também não pode ser pensado conscientemente – pois para a criança o outro conhece todos os seus pensamentos – e estes se tornam tão culposos e perigosos quanto as palavras ou atos. Mas os pensamentos não se deixam suprimir com facilidade. Continuam substituindo, mesmo sendo banidos do consciente. Assim, o inconsciente seria aquilo que o outro não deve saber. A censura é executada sobre a palavra, ocultando a verdade de que as crianças sabem, fazendo – as se esquecerem. Mas a verdade retorna, como sintoma. (MILLOT, 1987)

É possível perceber então que ao tempo da infância cabe um trabalho, o qual não é fácil e não se dá sem consequências. Freud (1976) diz que “(…) muitas vezes as crianças executam essa tarefa de modo muito imperfeito.Durante esses primeiros anos, muitas delas passam por estados que podem ser equiparados a neuroses”. Quando chega a nós, a criança vem como um sintoma, um corpo que não conseguiu realizar tal aprendizagem, regrá-lo segundo as vias previstas pelo Outro, ou seja, existe algo ali que é ineducável.

Temos então diante de nós um serzinho cujos pais nos pedem que o consertemos. E então, como analistas de crianças segundo o qual nos intitulamos, volto à questão dos dois caminhos: atender à demanda dos pais ou dar um lugar a esse sujeito e  ouvir se ele tem algo a dizer a respeito disso; sendo trazido, se traz uma questão a ser tratada. Nesse encontro da satisfação infantil com o corte da realidade, me questionei entre educação e psicanálise, por quais caminhos eu em particular perambulei com tal criança.

Admito que muitas vezes, como uma boa neurótica e querendo agradar aos pais, quis regrá-la segundo as leis dos homens, ensinar-lhe as convenções sociais e a consideração ao outro, a boa educação e a obediência. Um outro risco que se corre neste mesmo sentido é o de ou sair em defesa desses pais, com o intuito de auxiliá – los nessa difícil tarefa de tentar de suprimir o sintoma dessa criança; ou ainda na crítica deles, dizendo terem falhado em educar seu filho, deixando-o à mercê de suas satisfações “perversas. Mas, tentei ter como norte os pressupostos psicanalíticos, o qual diz que a supressão das pulsões na criança através de coerção por meios externos não conduz nem à desaparição de tais pulsões, nem ao seu domínio, a única repressão eficaz da sexualidade passa pela interiorização das exigências e proibições morais que a educação visa assegurar. (MILLOT, 1987). Ou seja, é necessário que a criança possa subjetivar tais exigências, tanto as pulsionais quanto as dos adultos.

Busquei então seguir pelo outro caminho, o de procurar possibilitar – lhe um espaço para formular as seguintes questões: quem sou eu para o Outro? O que o Outro
quer de mim? Isso só foi possível quando eu contive meu furor pedagógico e fui acompanhando – a em suas elaborações, em suas teorias sexuais, de modo a auxiliá-la a elaborar esse conflito, no encontro da pulsão com a proibição, duas coisas opostas que se impunham sobre ela, imperativas.

Segundo Freud, a palavra é o princípio da cura analítica. Então eu não o impedia de pôr para fora, mas o incitava a fazê-lo com palavras. Conforme ela pôde falar disso, com palavras e brincadeiras, foi podendo simbolizar isso que se passava com ela e dar um encaminhamento a essa excitação. Tentei oferecer a essa criança a possibilidade de dar conta disso que a acomete não impondo um recalque, mas construindo um saber do que se passa com ela.

E ele assim o fez, foi construindo suas teorias ali, à minha frente, brincando de cair, em acidentes de moto, da cadeira, correndo e se jogando no chão. Nessas ocasiões eu era o médico que tratava de suas feridas. Falava através disso, dessa queda, tão necessária, de se deixar cair desse lugar de objeto que supostamente completaria sua mãe, e do corte, da ferida que isso abre.

Falava do medo do pai, que ele dizia gritar com sua mãe bater nele. Também dizia de sua identificação a ele, bebendo cerveja e dirigindo, indo pescar. Comigo, ele brincava de esconder-se e achar-se e salvar-se ao sair do esconderijo antes de eu encontrá-lo. Realizava assim uma separação, ao sumir e reaparecer, elaborava as idas e vindas da mãe. Inaugurava assim um espaço para a privacidade, longe do olhar desse outro. Era possível um resguardo, para elaborar suas teorias sem que o outro saiba o que ele estava pensando. Contou de um corte no pé, e do pesadelo que teve, do medo do bicho que veio pegá-lo à noite, na primeira que passou sem a mãe, num passeio ao sítio com os tios. Ou seja, a angústia provocada por essa separação que estava se processando e mais uma vez, um corte.

Essa criança trabalhou arduamente, com o homem-aranha falou de sua questão de possuir “dois pais”, e punha um no lugar do outro, trocando suas pernas, tornando-os iguais. Com esse mesmo personagem falava de suas investigações acerca da diferença, do que tem embaixo da saia das mulheres, e do que será que um homem faz com uma mulher quando se escondem e não se deixam espiar.

Falava de seu corpo, que se manifestava e o importunava, indo fazer xixi, cocô durante as sessões, soltando puns, arrotando, cuspindo, e numa vez que fez xixi ali, na minha frente. Teve vergonha, um importante sinal de que algo do recalque ali já se impunha. Desenhava e encobria e me perguntava: o que tem dentro do corpo da gente? E queria desenhar uma mulher e apagava, errava, ficando nervoso, dizia não conseguir. Me pedia ajuda para uma pergunta muito séria: “o que essa mulher quer de mim?”

Ela fez um trabalho muito bonito, no sentido da constituição de um sujeito. Porém, em seguida foi embora, os pais arranjaram um outro jeito de lidar com isso que essa criança causava nelas. Aplacaram sua angústia com um diagnóstico (“hiperatividade”) e com a eliminação do sintoma (“Ritalina”). E eu, fiquei sem saber dos efeitos que essa minha decisão por este caminho ocasionou nesse sujeitinho, a se constituir. Freud (1976) já dizia que as resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise — e a análise como tal — muitas vezes corre perigo.

Quanto a mim, aprendi muito com ela, pois ela me permitiu saber um pouco mais a meu respeito frente a esse trabalho. Aprendi que não é possível inquerí-la do porquê  de agir assim, pois ela própria não tinha essa resposta, de onde vem essa excitação que acomete, e se ela agia assim, é porque foi a única resposta possível diante disso, não havia simbolização, era pura pulsão. A resposta era construída ali, à minha frente, na formulação de tais questões, me tomando como testemunha e interlocutora.

Isso foi uma parte do trabalho, a mais importante. Por outro lado, com relação à sua rebeldia, ela me pôs constantemente frente à perda do controle, sobre ela e sobre mim mesma, possibilitando-me verificar o quanto também sou atravessada por isso. E o quanto me angustia por mostrar ali, em ato, o que não é possível de se educar. Me fez deparar com a minha impotência frente a isso que um dia recalquei e esqueci em mim mesma, e procuro, quando me toca, mais uma vez me afastar.

Ou seja, o trabalho com a criança, ao ser permeado por brinquedos e brincadeiras parece muito leve e divertido. Mas isso não é verdade. Trata-se de algo muito sério e difícil, considero que ainda mais que o trabalho com adultos, por se tratar um ser cujo caráter está em formação, e que está muito vulnerável às nossas influências. E por outro lado, nos remete à criança que fomos um dia e cuja uma parte ainda habita em nós, remetendo-nos às nossas próprias questões a respeito de tudo isso que também vivenciamos um dia e que tanto provocou em nós. A prática da supervisão e análise pessoal são muito importantes em tais casos, pois diferente da criança, não podemos retirarmo-nos de cena, dizendo “não fui eu”, temos o dever e a ética de nos responsabilizarmos pelas nossas atitudes frente à condução de um tratamento, e se insistimos em fazer coisas cujo eu não sabe, temos o dever de ir tratá-las para que não corramos o risco de tomarmos partido dos pais ou da criança, de acordo com nossa próprias marcas e das teorias que elaboramos a partir delas.

Autora:  Mônica Fujimura Leite
Mestre em Educação Escolar pela UEL, Especialista em Transtornos Globais do Desenvolvimento na Infância e Adolescência pelo Centro Lydia Coriat e UNIFEV,
Especialista em Psicanálise pelo IMBRAPE e UNIDERP
Psicóloga pela UEL
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina
Atualmente atua no CREAS de Ibiporã e atende em clínica particular em Londrina.

 

Referência Bibliográfica

CIRINO, O. Psicanálise e Psiquiatria com Crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

FREUD, S. Conferência XXXIV: Explicações, aplicações e orientações. In: FREUD, S.

Obras Completas. vol XXII, Imago: 1976.

LACAN, J. O Estadio do espelho como formação da função do eu. In: LACAN, J. O Seminário. Livro 4 – Das Relações de Objeto e as Estruturas Freudianas. Rio de Janeiro: Zahar. 1995, pg.96- 103.

MILLOT, C. Freud Antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1987.

PETRI, R. Psicanálise e Educação no Tratamento da Psicose Infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo: FAPESP, 2003.

Entre a Queixa dos Pais e o Sintoma da Criança: qual era a pergunta?

A clínica sempre me coloca frente a impasses. Na prática, nada mudou, porém, no constante retorno à teoria, ocorrem encontros que, ao acrescentar um novo significante á cadeia, como já dizia Lacan, ressignifica toda a frase. Diante de situações como esta, me pego frente à angústia de que tudo o que sabia até então mudou, e, por um momento me vejo em um vazio, com uma pergunta: que faço eu quando faço o que faço? Qual a minha prática enquanto analista de crianças? E retorno à uma questão tão primordial, que me embaraça frente a uma prática que (mesmo sabendo que nunca está acabada), em meu ideal já deveria estar melhor fundamentada: de que se trata numa análise de crianças? Até pouco tempo atrás, eu já estava bem tranquila, respondendo a esta questão do seguinte modo: ora, se trata da constituição de um sujeito. Não que isso tenha deixado de ser verdade, porém, ultimamente, tem me parecido necessário mudar um pouco o foco do sujeito para o sentido mesmo dessa constituição, e então se faz necessário a inclusão dos pais na elaboração desta questão. Este aspecto me parece agora tão óbvio, e só hoje percebo do quanto estive o tempo todo cercada por isso, porém parece que só agora pude me apropriar desta verdade. Isso me faz pensar do quanto de fato o tempo do sujeito não é cronológico, e a realidade é mesmo psíquica.

Logo de saída, num trabalho clínico com crianças implica em um paradoxo: ao receber uma criança em tratamento, são os pais que escutamos em primeiro lugar. Simplesmente porque são eles que possuem um motivo para nos procurar, queixam – se de um sofrimento, causado por seus filhos. Foi assim no caso de Dudu, um menino de 6 aos agora, em tratamento há 3, que chegou com uma queixa, por parte da mãe, de hiperatividade. Por um outro lado, estava diretamente implicado nisto que sua mãe se queixa dele. Isso porque a subjetividade da criança passa por um processo de constituição, existindo antes de ela nascer, e continua sendo transmitido a ela ao longo de sua vida, a partir da subjetividade dos pais, sendo fundada a partir de um lugar, com o objetivo de cumprir o que os pais não conseguiram. Estes então dirigem – lhe uma demanda de alcançar essa satisfação almejada. (Jerusalinsky, 1996).

A criança tenta se enquadrar nisso que os pais esperam dela, uma vez que no humano não existe o instinto que assegura a maternidade. Porém, ao tratar – se de um ideal, não é possível de ser realizado, e a criança para responder a isso que lhe é pedido, faz um sintoma.

Em “Inibição, sintoma e angústia”(1976), Freud diz que o sintoma é um sinal, um substituto de uma satisfação pulsional que não foi satisfeita, sendo consequência de um processo de recalque. Através dessa substituição, é possível a satisfação pulsional, de uma maneira irreconhecível para o eu, constituindo – se por isso uma formação de compromisso entre as representações recalcadas inconscientes e a consciência. Ou, entre o desejo e o eu. No caso da criança, o sintoma é a leitura e a resposta que dá frente à constatação do desejo do Outro (que aponta sua castração), e a demanda dirigida a ela.

Em determinadas situações, no denominado sintoma clínico, ocorre uma paralização da criança, sendo a única resposta que ela foi capaz de dar frente a essa demanda, fixando – a numa solução parcial, anterior à resolução edípica, obstaculizando – a. No caso de Dudu, era o de um constante movimento sem contexto e uma dificuldade de prestar atenção. “A organização sintomática vem em defesa de um mínimo de subjetividade, oscilando entre se fazer objeto imaginário do gozo do Outro e destituir – se desse lugar através do fracasso dos ideais daqueles que encarnam o Outro.” (Bernardino, p. 59).

O sintoma da criança, por ser uma resposta aos pais, sempre tem a ver com a subjetividade deles, podendo ser do casal ou da mãe, como no caso de Dudu. Sua mãe se queixava porque o sintoma dele tocava em questões que ficaram para ela sem elaborar. Na verdade, demorou um tempo até ela decantar essa queixa para mim, tamanha a dificuldade de ela vislumbrar que pudesse haver algo de subjetivo (quanto mais que tivesse algo a ver com ela) nesse sintoma do filho. A princípio, tratava – se de um problema médico, orgânico, que passaria com a idade e a medicação.

Com um tempo de trabalho com a criança e uma escuta para ela, foi possível a ela ir delimitando algumas questões com relação ao filho, que me ajudaram também a entender seu movimento de levá-lo para inúmeros tratamentos, sempre corroborando sua  ideia de que ele necessitava de muita atenção, e ao mesmo tempo, ela mesma não se implicando em dar sua atenção para aquele filho. Fui podendo entender o quanto de sua queixa (um menino que não fixava sua atenção, movimentando-se o tempo todo) e seus cuidados com ele nesse sentido tinha a ver com a interpretação que ela fez de sua própria história, colocando -se como uma filha que sempre se virou sozinha por não ter a atenção devida da própria mãe. E do quanto isso ficou marcado como uma falta para ela, pois acredita piamente que se seu filho não tiver toda essa atenção, não se desenvolverá bem na vida. Porém, ela mesma não dá conta de prover isso, e delega a outros, essa tarefa. Também é possível observar o quanto ela ficou presa nessa relação com a própria mãe, tendo dificuldades em se autorizar enquanto mãe dessa criança, colocando em sua própria mãe ou em especialistas o saber sobre ele. De acordo com Mannoni, o sintoma da criança vem expressar algo que se interrompeu nessa cadeia significante, acerca do desejo dos pais. O sintoma de Dudu aparece então como resposta quando sua mãe vacila muito nessa transmissão, ao apresentar dificuldades em filiar esta criança, pela via de seu desejo.

Pelo modo como a constituição dessa criança foi se dando, muito ligada à subjetividade da mãe, não houve possibilidade de uma separação, e era impressionante observar em sessão o quanto se transmitia de uma para outra no trabalho. Num dia, enquanto a mãe falava do quanto coloca esse filho num lugar de bebê, não permitindo-o cair para crescer, ele leva um tombo e volta chorando para o colo dela, muito incomodado com a presença de seus terapeutas, não querendo que o víssemos no colo dela. Depois, ao falar disso com ela, a mãe diz que ele nunca agira assim, e falamos do quanto aqui se dava a possibilidade de um outro lugar para a existência dele. Numa outra ocasião, quando sua mãe (que sempre trabalhou muito, fora de casa) parou de trabalhar, Dudu cai, quebra o pé, e tem que ser carregado, lavado e limpo pela mãe, e volta depois para a sessão, brincando de cuidar dos bebês, onde podemos falar dos cuidados de sua mãe em seu corpo, coisa que ele já poderia fazer sozinho mas que a mãe retrocede muitas vezes fazendo por ele. A partir de então ele passa a aplicar castigos nesses bebês e privá – los do que mais querem, porque, segundo sua teoria (que é o que a mãe lhe fala), “desobedeceram”. E o castigo é uma dor física, ser levado ao hospital ou serem deixados sozinhos. E me pede para representar o sofrimento desses bebês, pedindo que o outro lhe mostre o que essa falta de “atenção” de uma mãe causa em um ser tão desamparado. A criança repete a vivência de sua mãe, e este sintoma de uma hiperatividade de Dudu, entre outras coisas, pode por um lado, dizer dessa  falta de atenção do qual se quixa a mãe em sua própria história, e por outro, também uma tentativa dessa criança de chamar a atenção dessa mãe, que chega a nós com uma posição esvaziada, depressiva.

Dudu recebe atualmente, além de atendimentos psicológicos na instituição, um trabalho de visita domiciliar realizado por outra psicóloga, um trabalho fisioterápico na instituição e sua mãe é escutada em grupo por uma outra psicóloga. No início essa escuta era realizada por mim, individualmente, e era um trabalho muito difícil, na medida em que ela não via a necessidade de tantas perguntas acerca de si mesma, ainda mais porque eu a questionava a respeito de algo muito difícil dela se haver: seu próprio desejo com relação ao filho, e no que ela estaria implicada nisso que se queixava dele. De acordo com Bernardino ( ), a escuta dos pais objetiva desvendar onde, na série significante dos pais, esse sintoma da criança entra. Mas a direção do trabalho não é o de tratar o fantasma dos pais, e sim de diferenciar o desejo dos pais com relação àquela criança e a leitura que a criança fez disso. Abrir um espaço para a enunciação do desejo deles, a fim de que eles possam se haver com isso, descolando-o do filho.

A mãe de Dudu teve que se reencontrar com lembranças dolorosas de sua história, que queria esquecer. Era muito angustiante para mim me deparar com essa resistência de alguém que não pediu para ter suas feridas cutucadas. Porém, a partir do momento em que aceitei tomar Dudu em tratamento, e, que esta mãe aceitou se pôr em trabalho comigo, era parte dele instigá – la na direção de desvendar qual é o pedido (ou a pergunta) que ela direciona a ele. Pergunta que pertence ao passado, mas que se reatualiza com o nascimento de um filho, e que ele presentifica em seu sintoma.

Autora: Mônica Fujimura Leite
Mestre em Educação Escolar pela UEL
Especialista em Transtornos Globais do Desenvolvimento na Infância e Adolescência pelo Centro Lydia Coriat e UNIFEV
Especialista em Psicanálise pelo IMBRAPE e UNIDERP, Psicóloga pela UEL
Membro da Associação Livre Psicanálise em Londrina
Atualmente atua no CREAS de Ibiporã e atende em clínica particular em Londrina.

 

Referência Bibliográfica

BERNARDINO, L.F. Sim, toma. In: Proposições Teóricas.____.p. 53 – 63.

FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia (1926). In: FREUD, S. Edição Standard das Obras Completas, vol. XX. Imago: Rio de Janeiro, 1976.

JERUSALINSKY, A. Seminário de Psicanálise com Crianças.____, 1996.

JERUSALINSKY, A. Quando começa a transferência na Infância? In: Seminário I. USP, Instituto de Psicologia, Lugar de Vida. São Paulo, 2002, p. 69 – 87.

MELMAN, C. Sobre a Infância do Sintoma. In: Proposições Teóricas.____.p. 15 – 26.

SAURET, M. O Infantil e a Estrutura. Escola Brasileira de psicanálise: São Paulo, 1997.

“A Psicóloga que Veio da Saúde”

Uma parte da nossa existência está nas almas de
quem se aproxima de nós; por isso, não é humana
a experiência de quem viveu dias nos quais o homem
foi apenas uma coisa ante os olhos de outro
homem (PRIMO LEVI, 1988, p.173).

Foi sob essa denominação que fui recebida há um ano atrás na rede de atendimento da assistência social. Assim denominada, qualquer intervenção que eu propunha era designada desta forma e desprestigiada dentro de um serviço que se propunha a outros objetivos. A demanda institucional dirigida a mim parte de uma negativa: “não se trata de proporcionar um tratamento”, mas “garantir o atendimento às necessidades básicas do indivíduo” (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, BRASIL, 1993). Ou seja: garantia de direitos.

Hoje, olhando o percurso realizado, vejo que eu, enquanto psicanalista, contratada como técnica da assistência social, me instalei na fronteira entre cumprir o que meu papel se propunha o que meu desejo impunha. Desde então, iniciou-se um percurso permeado por muitas questões. A primeira refere-se ao modo como fui nomeada: tratar o que? De que tratamento se trata? O que tenho verificado é que as famílias que chegam para atendimento sofrem e gozam da mesma forma que as da área da saúde. A diferença talvez seja no modo como chegam, o lugar que a instituição ocupa para elas e o lugar no qual a instituição as coloca. E o grande nó se localiza aí.

O próprio Freud (1918/2006) coloca-se a pensar em como poderia se dar a oferta de tratamento psicanalítico em populações em condições de pobreza extrema. Ele, no entanto, alerta para a questão de que a vida dura que os espera após a recuperação da doença as impulsione a permanecer com suas neuroses, que lhes dá direitos à ajuda social. Ele fala então da necessidade de “unir ao socorro psíquico um auxílio material”. Mas, por outro lado, reforça que “a estrutura e a composição desta psicoterapia para o povo” necessitaria continuar fundamentada no rigor da psicanálise.

Porém, em uma instituição que visa garantir lugar para um “Sujeito de Direitos”, onde ficam os “Direitos do Sujeito”? Por mais que as políticas de assistência social tenham evoluído de um assistencialismo puro para a promoção da autonomia do sujeito, o que fui verificando ao longo desse tempo, é que eles continuam sendo colocados na posição de objeto. E isso ocasiona diversos desdobramentos.

1) A não delimitação de uma queixa

Chegam famílias com encaminhamentos que algumas vezes não nomeiam o problema real, em outras vezes não sabem por que vieram e em outras ainda não querem atendimento, vindo por uma imposição de um terceiro (Delegacia, Conselho Tutelar, Ministério Público). Quando se trata de crianças e adolescentes vítimas de violência (física, psicológica, sexual), por conta da investigação que é instaurada a partir da denúncia, eles já tiveram que falar do acontecido inúmeras vezes: ao Conselho Tutelar, à Delegacia, ao técnico do hospital. Já foram submetidos a exames físicos, interrogatórios e intervenções que interferem na dinâmica familiar (afastamento do agressor). São procedimentos padrão. Meu papel tem sido muitas vezes o de ouvir os efeitos que as intervenções dos diferentes serviços provocam. Em alguns casos eles foram buscar ajuda, porém não tinham noção do que viria depois e ouço-os muitas vezes dizer que preferiam que as coisas permanecessem do jeito que estavam. Em outros casos, quem faz a denúncia é alguém de fora, obrigando o sujeito a abrir mão de algo que nem disse que não queria. Essa é uma questão importante de saída, pois Freud colocava que o motor para suportar um tratamento psicanalítico é o sujeito estar sofrendo e querer livrar-se deste sofrimento. Se sequer isso está delimitado, como suportar o que vem de uma escuta do inconsciente?

Como uma adolescente que vem dizer o quanto está brava com os serviços por terem tirado seu padrasto de casa, que mesmo praticando diversas formas de violência contra ela e seus irmãos, era um bom pai, e após ter discorrido diversas vezes acerca da falta que ele faz, admite que preferia que as coisas não tivessem mudado. Este é um caso em que não foi ela a denunciante, e havia um engajamento dela sentir-se desejada enquanto mulher por este homem, vindo um saber de fora lhe dizer que isso não pode. Meu trabalho estava sendo de possibilitar-lhe admitir seu desejo e elaborar isso. Porém,após inúmeros percalços com este caso, a mãe, em seu limite, começa ela também a praticar atos de violência contra os filhos, correndo o risco de perder a guarda deles (em casos de violência, como último recurso a criança é retirada da família e abrigada), e diante disso, eles se unem a ela e contra os serviços que se propõem a protegê-los, inviabilizando o trabalho, pois deixamos de ser oferta de escuta, para sermos investigadores e fiscalizadores.

Não se trata de dizer que a violência não deva ser interrompida ou que não acarrete sofrimento, porém o que ocorre é que se visa um “bem estar do sujeito”, sem perguntar-lhe se para ele isso é um bem, ou se ao menos ele o quer. Conforme Freud (1920/2006) já nos alertara, o sujeito não busca o seu bem (se isso implica em sair da situação que o faz sofrer) ele repete. O que essa política apregoa é que a violência tira  do sujeito a autonomia para considerar-se sendo violado em seus direitos, e, uma vez reconhecendo isso, para conseguir modificar essa situação. Porém desconsidera o fato de que, os serviços vindos de fora e retirando-o, sem lhe perguntar o que ele fazia ali (ou seja, qual sua implicação nisso que o faz sofrer – Freud, 1905 [1901]/2006), o sujeito volta à mesma situação. Retornando ao lugar do qual saiu, seja ele físico, seja armando novamente uma cena para que figure na mesma posição, ou ainda, queixando-se da nova situação. E isso ainda corrobora uma atitude, neurótica por excelência, de que o outro é mesmo o culpado pelo seu sofrimento. Escuto mães dizendo que darão novamente seus filhos para o juiz cuidar, seja porque não o quer, porque não dá conta dele ou porque o Estado não lhe dá dinheiro suficiente para prover suas necessidades.

2) A impossibilidade da associação livre

Freud (1912/2006;1913/2006) enuncia esta enquanto a regra fundamental da análise. Implica em o paciente comunicar tudo o que lhe ocorre, sem deixar de revelar algo que lhe pareça insignificante, vergonhoso ou doloroso, enquanto que ao analista cabe escutar o paciente sem o privilégio, a priori, de qualquer elemento de seu discurso (atenção flutuante).

Na instituição onde trabalho o critério de atendimento é o sofrimento decorrente da situação de violência. Assim, posso acolher atuações, sintomas, inibições, porém a escuta necessita ser direcionada, ou seja, o sujeito só pode sofrer por este motivo. O que tenho tentado enquanto prática é colocar esta delimitação no início do trabalho e a partir daí acolho o que vem, sem direcionar a fala. Minha escuta, porém, sempre tem que estar atenta a que o que o sujeito traga seja relacionado ao evento traumático de violência.

Uma outra questão é quando este evento não se tornou traumático. Crianças pequenas não consideram o abuso sexual enquanto uma experiência traumática, uma vez que estão com suas pulsões polimorfamente organizadas, sem o crivo da censura (Freud, 1905a/2006;1924/2006). Minha intervenção, enquanto garantidora de direitos é o de dar sentido ao evento e instrumentalizar a criança a reconhecer e defender-se de situações futuras (foco do trabalho é a proteção e prevenção da violência). Não há assim possibilidade de elaboração se um sofrimento não se instalou ainda. O que tenho feito é alertar aos pais que com a chegada da adolescência um trauma possa se instalar, a partir da ressignificação da experiência (Freud, 1893-95/2006). Ou mesmo com adolescentes ou mulheres vítimas de violência, que encaram a situação como algo  aceitável eu necessito informá-las do significado da violência pelo qual passaram e seus direitos e meios de defesa.
Assim, nessas ocasiões, é de um outro lugar que falo, assumindo o discurso universitário.

A Psicóloga que Veio da Saúde

No discurso universitário o agente do discurso é o saber (S2), ou seja, há um conhecimento erudito (do Outro) ao qual aquele que o recebe deve se assujeitar. O agente (no caso eu) fala em nome de um saber que não é seu, ou seja, não fala em nome próprio. Assim, a verdade do sujeito é rejeitada e ele é colocado no lugar de objeto ( a ) (QUINET, 1999;PETRI, 2003; ZILIOTTO, 2004).

3) A impossibilidade da imparcialidade e do sigilo

Além disso, quando a proposta é a de ouvir o sujeito, este saber é apropriado e utilizado pelo Estado. É-nos atribuída a função de realizar a oitiva da suposta vítima e enviar relatórios aos órgãos competentes investigadores. A principal subversão que encontrei nesse trabalho foi essa, a de que a técnica da escuta seria usada não para o próprio sujeito, mas para um outro. A fala do sujeito é tomada enquanto valor de prova para a tomada de decisões contra ou a favor dele, de qualquer forma não é para usufruto dele. Que fazer com a neutralidade tão necessária, a relevância dada à realidade psíquica (Freud, 1950 [1892-1899]), se é preciso averiguar a veracidade do relato do sujeito? Não a partir da ótica de seu desejo, mas de verificação de realidade dos fatos? A resposta que consegui dar a isso foi a de, em primeiro lugar falar sobre isso com aquele que chega, e não fazer relatórios conclusivos, apenas reproduzindo a fala do sujeito, sem atribuir-lhe uma interpretação e partindo do princípio de que, se ele falou é porque é verdade. Além disso, abro espaço para que ele possa dizer quais os efeitos da experiência pela qual tem passado, seja decorrente da violência pela qual chegou ali, seja da atuação dos serviços. Geralmente os serviços finalizam seu trabalho após a intervenção e modificação da cena da violência. O meu trabalho começa aí.

4) A manutenção do sintoma

As famílias assistidas pela assistência social posicionam-se enquanto demandantes plenas. São famílias que não têm construída a dimensão da intimidade, não fazem a distinção entre o público e o privado, e suas questões são divulgadas e espalhadas entre os vizinhos, e também entre os serviços. Não possuem timidez, nojo ou receio de falar de suas desgraças, estórias ou particularidades, nem de recontá-las a quem quer que pare para ouvi-los. O serviço, ao fornecer-lhe os benefícios, referenda o quanto são merecedores de compaixão e portanto merecem o título de sofredores, desgraçados, despossuídos e necessitam que o Outro lhe dê: bens materiais, mas principalmente reconhecimento e amor.

O trabalho que tenho sustentado ao longo desse ano é o de que passem a dar a devido valor àquilo que falam, ou seja, de se escutarem, a partir da instalação de um setting; e fazer um corte, não supervalorizando a estória que insistem em desdobrar a cada vez, mas de questionar que parte tem nisso de que se queixam.

5) A não instalação do sujeito suposto saber

Não sei se é possível nomear assim o posicionamento de alguns sujeitos se recusarem veementemente a qualquer intervenção. Não falam, não vêm, não escutam, não querem. Lacan (NÁSIO, 1992) diz que o sujeito suposto saber se instala quando o analista passa a fazer parte do sintoma do analisando, passando a ser o destinatário daquele. Freud (1924/2006) denomina enquanto transferência e define que esta é uma manifestação inconsciente em que protótipos infantis são revividos como se pertencessem à atualidade. O analista é a tela sobre a qual o paciente projeta suas vivências infantis. A partir de Freud, se está apto a ser ouvido pelo outro quando se é colocado em um lugar de determinada importância, passando a partir daí a ter influência sobre o sujeito.

Os casos que chegam a mim são sujeitos cujo Outro já falhou inúmeras vezes e não lhe garantiu resposta satisfatória nos momentos em que mais precisou (experiências reiteradas de frustração e privação). E nós, que nos propomos a garantir direitos, nos vemos inviabilizados de fazê-lo, pois os serviços não funcionam como deveriam, ou até visam garantir algo impossível: como proteger o sujeito dele mesmo?

Essa é a tal da política da “garantia dos direitos”. O que se percebe é que o Estado assume um lugar de ideal, um Outro sem furos que na verdade não existe. Coloca-se como provedor das necessidades do sujeito, como se fosse capaz de suprir o  que ele não consegue prover por conta própria. É como se colocasse essa perspectiva no horizonte, em troca da arbitrariedade de se impor sobre a vida dele e fazê-lo tomar decisões a partir do que impõe sobre sua vida privada. Assim, o Estado dispõe sobre a configuração familiar, quem deve sair de casa, a que distância um senhor deve ficar de sua ex-esposa, de quanto em quanto tempo um pai pode visitar seu filho, que uma mãe é prejudicial a sua filha e esta deve portanto morar com os avós, ou o próprio Estado assume a tutela dos infantes. Mais uma vez impera o discurso universitário.

O problema é que o sujeito não é assim tão obediente e o que se observa é que as famílias seguem essas determinações por um tempo (ou nenhum tempo), e depois voltam a fazer da forma como lhe convêm. Assim, as mulheres que chegam queixando-se da violência do marido, são orientadas a registrar um Boletim de Ocorrência, para que seja instaurado um processo e uma Medida Protetiva de afastamento do agressor. Porém isso não garante que ele se afaste e as notícias de jornal vêm nos dizer que mais um cidadão mata a ex-mulher, mesmo com todos os registros realizados e as medidas protetivas tomadas. Ou mulheres que são ajudadas a sair da vista do parceiro, não conseguem se sustentar, um lugar para morar, ou cuidar dos filhos sozinhas, ou desvincilhar-se do amor por eles e voltam a morar com o agressor. Diante disso me pergunto: existe meios de garantir uma proteção ao sujeito? Garantir uma proteção contra uma escolha que ele mesmo fez? Existe uma Medida Protetiva para o inconsciente?

6) A homogeneização dos sujeitos

Afora essa questão, outra que se verifica é a homogeneização dos sujeitos, no enquadre do trabalho com a família e em grupos, o que achata o sujeito na dimensão da queixa na qual é enquadrado, que muitas vezes nem é ele que delimita, como se o título de “violentados” ou “violentadores” os igualasse a todos numa mesma posição.

Junto com Scarparo (2008) considero importante destacar que considerar a família como um todo é reforçar este lugar de alienação no discurso do Outro, perdendo-se a possibilidade de escuta do sujeito na singularidade do seu sintoma. Pois um filho não está colocado no mesmo lugar que outro na fantasmática parental e um filho faz sintoma para seus pais (Lacan 1969). Assim, é importante delimitar quem pede escuta de seu sofrimento. Cada sujeito é singular e se engaja, dentro dessa mesma categoria, de maneira única, e de formas completamente diversas. Tenho realizado então, atendimentos individuais.

7) A escuta individualizada: uma possibilidade de trabalho?

Scarparo (2008) coloca que é nessa “zona de fronteira” que podemos situar uma escuta do sujeito, orientada pela ética da psicanálise, e que tem no social o seu lugar de enunciação. A partir da idéia subversiva da psicanálise, de que é a oferta que produz a demanda, após garantir algumas condições mínimas de sobrevivência, convido o sujeito a descolar-se do desejo do Outro social, para assumir-se responsável por suas escolhas e as consequências delas em sua vida.

O sujeito, sendo tomado em sua dimensão singular, assumo o discurso do analista, no qual o saber inconsciente surge no lugar da verdade. Não se impõe um ideal, o analista se coloca no lugar do objeto causa de desejo, colocando o outro num lugar de sujeito dividido. Esse funcionamento vai ter como produção os significantes-mestre que assujeitaram o sujeito (PETRI, 2003).

A Psicóloga que Veio da Saúde

Não se trata de uma análise, mas coloca-se a escuta em uma outra dimensão, para além do que é dito. Se o que a psicanálise proporciona é um espaço para o sujeito, abrir a dimensão da escuta proporcionou alguns efeitos.

Como uma garota que pôde elaborar sua condição de enamoramento com o pai e articular seu desejo de separação com o que era permitido por ele. Ou uma mulher, que pôde falar que nunca quis sair do orfanato e ser adotada e como se fez sua vida inteira ser rejeitada a partir de sua escolha de não querer estar ali. Esta paciente mesmo me ensinou muito acerca de meu lugar ali, onde, após sua queixa inicial de violência doméstica, tentamos conseguir um lugar para abrigá-la e verificamos os empecilhos que ela mesma colocava para uma solução prática; e dia a dia eu via o mal estar que ela causava na equipe, por fazer uma demanda impossível de ser cumprida (pois a escuta do sofrimento real da violência nos coloca o imperativo de tirar o sujeito da situação ele implica em risco de vida, real). E o que ela me mostrou, após verificarmos que não tínhamos uma alternativa de saída da situação para ela, quando eu lhe perguntei o que ela vinha buscar comigo, ela nomeou que precisava de “um lugar para se estruturar”. Eu disse que isso poderia oferecer, e ela pôde falar de sua estória e posição na vida, e a partir disso, em seguida ela mesma saiu da situação opressora e foi cuidar da vida, sem precisar que a déssemos a ela.

Um outro caso foi o de uma adolescente que pôde sair de uma posição depressiva importante, falando, através de um personagem de desenho, que começa querendo destruir o mundo para, a partir do encontro com o amor, desejar construir uma família. Ou uma menininha adotada, que foi rejeitada diversas vezes e já se utilizava
disso para despertar pena nas pessoas e conseguir privilégios, seduzindo, ou fazendo-se ser expulsa, ao testar o limite do amor dos adultos. Ela pôde, através da elaboração de sua estória e da posição que assumiu diante dela, reconhecer o lugar que lhe era dado na nova família e conseguir submeter-se a ser a filha esperada por eles e encontrar um lugar para si, menos sofrido. A mãe adotiva, por sua vez, também em escuta individual, pôde elaborar o luto de uma filha idealizada, podendo aceitar a filha real.

Em um outro caso, pude escutar como o sujeito se posiciona diante do horror do encontro com o real da morte, em idade tão precoce, ou experienciar o seu Outro enquanto transgressor de todas as leis, e reconhecer-se no efeito provocado em suas escolhas de vida e na relação atual com a maternidade. Esta mulher, que já esteve sob o risco de perder a guarda do filho por maus tratos e negligência, consegue hoje reconhecer-se nele e falar do prazer em ser mãe.

É possível verificar que, mesmo sob uma mesma denominação, cada caso é singular, e a necessidade de uma especificidade e enquadramento, bem como a direção de um trabalho. Em todos eles foi possível aos sujeitos apropriarem-se do espaço de escuta ofertado e cada um utilizá-lo para o que precisava naquele momento. Alguns deles inclusive se deram alta do serviço, o que atesta a conclusão de um trabalho realizado. Foram intervenções pontuais, com efeitos que talvez possamos situar no nível do terapêutico. Mas que foram viabilizados porque se deixou de lado o “deveria ser” para substituí-lo por “do que você precisa? Ou, “o que veio buscar aqui?” E eu, enquanto psicanalista, pude deixar de lado a demanda institucional e me abrir à demanda do sujeito.

Figueiredo (apud SCARPARO, 2008) coloca o psicanalista neste ponto de fazer funcionar a fala do sujeito, na escuta da singularidade deste, para além do rótulo de “excluídos”, que iguala diferentes, por uma identificação ao discurso social. “Então é preciso indagar pelo desejo diante de olhares paralisados frente ao objeto da necessidade” (p. 15).

Acho que, na medida do possível, em alguns casos, é isso que tenho feito. Dentro de uma política de garantia de direitos, inúmeros embates se configuraram em minha prática, mas especialmente em minha ética. Dia a dia me vejo com o desafio de sustentar um lugar para o sujeito dentro de um espaço que é organizado para um achatamento subjetivo. O preço que pago por isso é suportar esse estranhamento, de alguém meio desconfigurado, inadequado, que não se enquadra e sugere certo mal – estar. Um sujeito meio anti-social, que não ri das mesmas piadas, nem segue a mesma dinâmica do grupo de trabalhadores. Um ser em sua completa condição de extimidade.

Autora: Mônica Fujimura Leite

 

Referência Bibliográfica

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Freud, S. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905 [1901]). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.7.

Freud, S. A sexualidade infantil. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905a). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.7.

Freud, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.12.

Freud S. A dinâmica da transferência (1912a). In: Freud, S. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.12.

Freud, S. Sobre o início do tratamento (1913). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.12.

Freud, S. Linhas de progresso na terapia psicanalítica (1919 [1918]). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.17.

Freud, S. Além do princípio do prazer (1920). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v. 18.

Freud, S. A dissolução do complexo de Édipo (1924). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.19.

LACAN, J. Nota sore a criança (1969). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de janeiro: Zahar, 2003. p. 369-370.

PETRI, R. Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo: FAPESP, 2003. p. 71-75

QUINET, A. (1999) A ciência psiquiátrica nos discursos da contemporaneidade. (Estados Gerais da Psicanálise). Disponível em:www.estadosgerais.org.

SCARPARO, M.L. D. Em busca do sujeito perdido: a psicanálise na assistência social, limites e possibilidades. Dissertação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008.

ZILIOTTO, D. M. A posição do sujeito na fala e deus efeitos: uma reflexão sobre os quatro discursos. Psicologia USP, 2004, 15(1/2), 215-223. disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v15n1-2/a21v1512.pdf.

Resposta Aquém? Resposta a Quem?

O jogo de presenca e ausencia do gozo nao esta apenas nas
maos da crianca, por isso nao se pode esquecer o lugar dos
pais na analise de uma criança (FLESLER, 2007, p. 200)

O percurso de um psicanalista permeado por um equilibrar-se constante, entre atos e suspensões. Frutos estas de um questionar-se acerca de seu fazer, que configura-se num saber-fazer apenas a posteriori. Ha algum tempo atendendo crianças com estruturas psíquicas graves, percebo que junto com o atendimento da criança, o acolhimento das personagens que compõem a cena com ela bastante importante. Ao longo de meu percurso verifiquei que, se por um dado, Freud e Lacan não nos deixaram uma técnica orientativa, por outro os psicanalistas de crianças nos apresentam varias versões de como lidar com essa conjuntura especifica de fatores. Assim, ao longo de um percurso, percebi que eu escolhi um determinado modo de atuação que, se nunca estar finalizado, segue uma certa regularidade. Lacan denominou isso de estilo, sendo este o modo como cada psicanalista implica-se com sua pratica, a partir de uma ética. Goldemberg (2004) coloca que Lacan não falou de uma pratica da Psicanalise, mas de uma eica dos psicanalistas, que se define pela concepção que cada um tem dos meios e fins da psicanalise. Que esta singular, delimitada pela inflexão em que direciona a transferência, a partir dos lugares que ocupa de objeto e Outro na analise que propõe. Se tal pratica consiste num autorizar-se de si mesmo importa ressaltar que não condiz com um laissez-faire. Existe o autorizar-se aos outros configurados nos dispositivos institucionais da analise pessoal, supervisão e estudo teórico, pilares da pratica analítica.

O ponto que me proponho a tratar hoje aqui dessa construção particular, a partir do modo como tenho respondido em especifico aos pais das crianças que tomei em atendimento. Uma criança quando chega ao analista o coloca sempre em questão. Questão de como lidar com esses que fazem um pedido pela criança, que falam por ela, se interpõem o tempo todo em seu tratamento, pagam por ela, reclamam do preço, que não entendem a necessidade de entrevistas intermináveis com eles, e que reaparecem de tempos em tempos para nos lembrar de nossa função.

Os pais, que ligam insistentemente para desmarcar a sessão por causa de febres inexplicáveis, que aparecem na sessão do filho querendo uns minutinhos de nossa atenção, nos perguntam o que fazer quando a criança irrompe com uma má educação, convidam-nos para as festas de aniversario, trazem-nos o álbum do primeiro ano de vida da criança, solicitam cardaarios de alimentação, revelam-nos a nudez familiar de forma explicita das horas do banho, do controle esfinceteriano, do ritual do sono. Trocamos com eles fraldas, chupetas e mamadeiras por um filho grande, ajudamo-los a suportar as perdas inerentes do eterno tornar-se desnecessário enfrentamos cenas de ciumes, rivalidades, onde o analista se pergunta quem é o filho de quem. Somos convidados a participar de forma contundente da intimidade da casa, contam-nos confidencias, do lugar dessa criança em sua cama, em sua casa, em seus desejos.

E por fim, levam a criança embora, seja porque ela melhorou, ou porque não melhorou, porque acabou o dinheiro ou porque cansaram de levar, seja porque descobriram um novo exame de imagem em 3D, uma terapia de florais, ou porque o doutor descobriu um novo medicamento capaz de otimizar os resultados, ou ainda lhes disse que quando crescer sara.

Enquanto aquele que dirige o tratamento, um analista necessita dar uma resposta. Resposta que damos ao nos posicionarmos diante de tantos pedidos e interferencias: mas que coisa, por que não nos deixam trabalhar em paz? Se foram levar o filho, por que não se contentam em ocupar seu devido lugar? Mas que lugar esse? Sera fora da cena terapêutica? Ou sera que ocupar o devido lugar não implica em que essas aparições e interferências sejam material de trabalho com a criança? Da mesma forma que esta, em sua condição de infante, não pode dispensar os progenitores, sera que, por sua condição estrutural, a analise de uma criança não implica em atender aos pais?

Em meu percurso, acredito que sim. A questão que se coloca então de que forma isso deve ser feito? Em primeiro lugar importante lembrar que uma criança chega a nos se seu sintoma se caracterizar enquanto ponto de angustia para seus pais. Ou seja, algo da subjetividade deles esta implicada desde o inicio em seu pedido de ajuda para o filho. Faria (1998) nos lembra que, estando a criança localizada enquanto objeto privilegiado de satisfação dos pais, ela um veiculo de alienação do desejo parental. Nesse quesito também importa lembrar que nem sempre o que eles recortam do filho o mesmo motivo pelo qual uma criança aceita se submeter ao um tratamento. Desde apercebemos o embaraço no qual nos encontramos: realizar por um lado uma distinção de sujeitos e demandas, e por outro trabalhar com o fato de que o sintoma da criança, por sua condição estrutural, esta implicado na dinâmica familiar. Como uma mãe que me procurou por um atraso na fala de sua
filha e qual não foi minha surpresa ao conhece-la, me deparar com uma mocinha com um expressivo atraso global no desenvolvimento, com episódios de agressividade, uma demanda de exclusão importante e ausência de um brincar constituinte. Assim, claramente se evidenciava de saída que algo ali falava, depositado na criança, mas que ia além dela. A criança necessitava sim de intervenção, mas sua mãe também precisava ser escutada.

Para lidar com esse embrolho, na tentativa de responder a essa pergunta, percorri as diversas formas que os psicanalistas de criança se posicionaram ao longo do tempo, tendo encontrado desde profissionais que excluam por completo os pais da cena terapêutica, atos que dispensavam a criança e atendiam apenas os pais. Mannonni (apud FARIA, 1998) acreditava no trabalho com os pais juntamente com o da criança. Diz que não e possível escolhermos se os pais participam ou não de um atendimento, de qualquer forma eles comparecerão. A criança está, por sua condição própria, submetida realidade do casal parental.

Assim, se a posição do analista nunca de conforto, um analista de crianças esta em terreno um pouco mais inóspito, porque sua intervenção sempre em um ponto de tensão. Se, numa analise, os que chegam são sempre muitos, uma vez que o sujeito sempre o Outro, no caso das crianças esses Outros comparecem encarnados, em suas funções presentes, não estão patentes, ressignificados pela fantasia daquele que conta pela vida palavra, como se deram suas relações primordiais. Elas esta acontecendo, em tempo real, diante do analista. Se Freud comparou o inicio da analise a um jogo de xadrez, há que se ter cuidado redobrado, quando se intervem em um jogo que ainda esta operando.

Vamos retomar, juntamente com h. Von Hugh Helmuth (apud BERG?S E BALBO, 1997) em primeira instancia, o fato de que quem nos procura são os pais. Em primeiro lugar, estes costumam chegar apos ter passado por inúmeras tentativas fracassadas. Apresentam-se culpados por terem fracassado e frustrados por ter que colocar em outrem o saber acerca de sua cria, e os créditos pela melhora dela, caso isso aconteça. Vão com um pedido de restituição de uma ferida narcísica. Lugar espinhoso no qual somos procurados. Assim, uma das funções de escuta dos pais, em especial no inicio do tratamento da criança, segundo os autores, a de evitar efeitos demasiadamente danosos, que podem ocasionar num abandono do tratamento.

Faria (1998) diz que as atuações dos pais devem ser escutadas no n 咩 el discursivo, que permitir fundar uma transferência e iniciar um trabalho analítico. A autora nos lembra de que a criança e seus pais estão ligados numa colagem significante. Isso produz neles um sofrimento que, por ser depositado na criança, torna difícil o reconhecimento enquanto sofrimento próprio. Necessitam então ser escutados. Isso não significa fazer uma analise dos pais, mas garantir que o contrato da analise de seu filho seja mantido, pois muitos tratamentos são interrompidos pela angustia parental. Em especial quando a criança começa a mudar de posição subjetiva, por exemplo quando um autista começa a fazer relação ao outro de maneira a solicitar seus pais de forma diferente. Podem tornar-se imperativos, e os pais vão se queixar de que piorou, agora esbraveja, não dorme, solicita-lhes algo que eles não sabem o que O que costumava acalmar-lhe não funciona mais. E vão aos poucos se dando conta de que solicitam sua presença, e que de presente, ganharam um filho. E então uma nova etapa. Terá que se confrontar, talvez com o seu não desejo de filho. E a Mais espaço de escuta. Faria (1998) nos lembra de que o trabalho analítico com a criança tem efeitos sobre os pais, uma vez que a alteração de um dos elementos de uma estrutura altera a estrutura como um todo.

Flesler (2007) por outro lado, diz que uma analise aponta sempre para um sujeito, que não e criança ou adulto, ele não tem idade. Mas que não indiferente o momento logico de sua constituição quando chega a nos. No tempo da infância, a evolução do sujeito nesses tempos lógicos implica em que ele seja nominado e antecipado em cada um deles, por seus Outros.

Depende em primeira instancia em que lugar ele esta situado com relação ao desejo parental. Segundo Lacan, o desejo dos pais e uma lei não natural, não regulada pelo instinto, e sim pela castração, condição de economia desejante (FLESLER, 2007, p. 41).

Por causa disso, Mannonni (apud FARIA, 1998) inclui a fala dos pais enquanto elemento primordial na analise das crianças, buscando a resposta sintomática enquanto um enigma do entrelace de ambos os discursos: da criança e dos pais. O analista necessita interrogar qual o lugar da palavra da mãe na fantasmática da criança e qual o lugar do pai na palavra da mãe. Segundo ela, o sintoma da criança esta atrelado ao que transmitido a ela e de que forma isso feito. Escutar aos pais possibilita compreender que lugar a criança ocupa na fantasmática parental. Isso necessário tanto para o diagnostico da criança quanto para o tratamento, na medida em que necessário que esse lugar se desloque. Porem, a autora coloca que exigir que os pais se submetam a uma analise pessoal inútil, pois estando o sintoma alienado na criança, apenas a partir desse lugar que, num primeiro momento, eles conseguem se colocar.

Assim, considerando as especificidades de uma analise de crianças, o modo como ela se estrutura inclui, desde o inicio, seus pais. De acordo com Faria (1998), uma criança se constitui enquanto sujeito na medida em que os pais assumem determinadas funções, ou seja, funcionaram de determinada forma. Ela lembra que Lacan coloca no Seminário sobre as Psicoses (1988) que nessas algo não funcionou, não completando o Edipo. No caso então de crianças pequenas ou com transtornos graves, que estão nesse ponto especifico dos tempos lógicos da constituição de um sujeito, em que algo ainda não se completou, considero, a partir desta viés, que o trabalho do analista o de tensionar para que de um possam emergir dois sujeitos, porem, pode ser necessário um tempo de trabalho para que isso seja possível.

Para entender melhor do que se trata a inclusão de um filho na dinâmica da satisfação parental, recorremos a Flesler (2007). Segundo a autora, o desejo dos pais diz respeito ao desejo pelo filho, mas também o desejo entre eles, enquanto casal. No caso do pai, a partir de Lacan, ela diz que este merece respeito e amor quando faz de uma mulher o objeto-causa de seu desejo. Quando ele se mostra desejante, coloca em cena sua condição de castração. Ao nomear a criança como seu filho, situa-lhe um desejo não anonimo e introduz a ele a interdição do incesto. Já no caso da mãe, necessário verificar que lugar ocupam o pai e a criança no desejo dela. Uma criança, para ser antecipada, necessita ser colocada no lugar de uma restituição narcísica para uma mulher, o que implica em ocupar um lugar de falo.

Ainda de acordo com Flesler (2007), uma criança pode ser localizada pela mãe enquanto objeto de desejo, de amor ou de gozo. Cada um encontra limite nos outros dois. Essa questão encontra inúmeras combinações.

E o amor que impede que quando uma mãe tem vontade de devorar seu bebe, colocado no lugar de objeto de gozo, não faca. Quando o amor não faz barra ao gozo, encontro mães invasivas, que continuam limpando crianças ate sua pre adolescência, tomando banho juntos, levando-as para cama, que falam e escolhem por elas, de modo que não há espaço para duas subjetividades. Flesler (2007) coloca que a intervenção do analista nesses casos necessita de uma postura mais ativa, barrando a mãe, dizendo diretamente da necessidade de parar com essas invasões no corpo e na subjetividade da criança. A expressão mais comum dos casos em que a criança e fixada no lugar apenas de gozo, não encontrando lugar no narcisismo parental, quando servem de extensão de seus corpos, quando escuto relatos de medicarem a criança para sanar uma dor sua. Quando a existência da criança um incomodo, o motivo das desgraças da vida daquela mãe, e impressionante verificar como elas encontram justificativas para maltratar ou descuidar da criança, em nome desse imperativo inconsciente de que ela deva ser eliminada.

E muito comum nos casos em que a criança ocupa o lugar de objeto da fantasia materna que o pai esteja deslocado da posição de detentor do falo. S 縊 m 綟 s que por diversos motivos tomam o filho para si, por exemplo, realizando parcerias amorosas apenas para ter filhos. Ou dispensam os homens apos estar com o objeto de satisfação em seus ventres, tem nojo ate do cheiro de seu parceiro. Em outros casos, quando o filho está fora do circuito do desejo materno, encontro na escuta o ponto de satisfação dessa mulher em outro lugar (no trabalho, por exemplo). Ou mães feridas narcisticamente pelo fato de seus maridos passarem a incluir esse filho enquanto objeto fálico, entrando numa competição com a criança pelo amor do pai.

Os casos citados acima se enquadram no que Lacan (1969) denomina de o sintoma da criança estar situado na fantasmática materna. O desejo contra o qual uma criança se defende fazendo um sintoma o dos pais. Assim, um analista, ao escutar os pais, deve investigar como o desejo entre eles se enlaça. Tal posicionamento essencial, uma vez que isso que do tom para por onde uma criança pode circular. Segundo Flesler (2007, p. 69),

o desejo dos pais, como homem e mulher, condiciona e possibilita a recriação dos tempos do sujeito.
Quando o desejo dos pais, ao contrario, se concentra exclusivamente no filho, a criança tendera funcionar
como condensador do gozo, objeto da fantasia.

Para entender do que isso se trata, passemos ao segundo ponto a ser escutado no discurso parental, juntamente com o que observamos da criança quando ela vem: o lugar que ela se posiciona nesse desejo, ou seja, em que momento aquela criança esta dentro dos tempos lógicos da constitui 鈬 o subjetiva (FLESLER, 2007).

O primeiro tempo diz respeito a alienação ao desejo da mãe, ser ou não o falo. As falhas decorrentes desse tempo são muito precoces e atingem importantes consequências. Ocorrem manifesta 鋏 es corpo (transtornos de sono, alimentares, adoecimentos de repetição) e do imaginário (o brincar, a constituição do eu e apropriação do corpo, por exemplo) e por fim os autismos infantis. As psicoses infantis também podem entrar nesse lugar, onde existe um lugar para a criança no desejo materno, porem esta não e elevada ao estatuto falico, onde seria-lhe possivel fazer semblante do objeto que completaria, ela o objeto de desejo.

Flesler (2007) nos lembra de que quando uma criança ocupa um lugar de objeto na fantasia materna, mesmo que supere certas etapas, mais tarde poderá apresentar novos sintomas, inibições ou angustias, a cada vez que o desejo materno n 縊 aponte para uma direção que a sustente em seu novo lugar. Neste mesmo sentido, Jerusalinsky ( ), citando Lacan, nos aponta que os desdobramentos do sujeito se da também em função das mudanças de posição frente as demandas do Outro, este enquanto representante do discurso social. Tais demandas se modificam a partir do que esperam daquela criança, em cada etapa de sua vida. E a partir disso, o sujeito responde. Embora opere sincronicamente, esta tem uma diacronia, nas operações que se sucedem nos tempos de captura do sujeito.

Nos casos citados acima n 縊 se constituiu um sujeito de desejo na criança. Segundo Flesler (2007), isso ocorreria apenas frente possibilidade de a criança alternar nos lugares de objeto causa de desejo e objeto de gozo de seus pais. Essa alternância seria possível se o desejo dos pais funcionasse entre eles, para alem da criança. Ou seja, necessário um trabalho com os pais, para que possibilitem a existência da criança nessa outra posição, se um dos dois lados não fizer essa nova escolha, ela ficar presa nesse lugar.

No caminho percorrido ate aqui, evidencia-se o quanto não e possível, ao se trabalhar com a criança, excluir seus pais. O tempo de constituição subjetiva de uma criança não e dado por si, o sujeito e um efeito, e a efetuação do sujeito se realiza quando existe resposta do Outro (FLESLER, 2007, p. 184). Em especial nos casos em que isso não se efetivou ainda – crianças pequenas ou nos casos dos transtornos graves – onde nosso objetivo a estruturação de um sujeito que ainda não se deu.

Por outro lado, para pensar nesse trabalho com os pais necessário atentar-se como esses pais chegam ao analista, que tipo de pedido fazem a ele. A direção de trabalho sera diferente dependendo de como isso se estabelece.

Existem pais que chegam de uma certa forma mais prontos para o trabalho, quando o sintoma do filho lhes traz uma questão. Este jovem como estatuto de signo a ser decifrado, ficando mais fácil desdobrar para algo de duas verdades enlaçadas ali no que aparece na criança. Segundo Flesler (2007) o tipo de transferência que opera nesses casos a simbólica, o suposto saber esta instalado e eles encontram-se mais disponíveis as intervenções do analista. E o caso de uma mãe, que chega com uma culpa estabelecida, acreditando estar em si a causa do sintoma da filha. Essa mãe vem com a pergunta: o que minha filha tem? E colocou-se em trabalho, assumindo para ai o encargo de trazer a criança e vir falar em um horário só para ela, onde pode desdobrar vaias questões relacionadas maternidade, o lugar dessa criança e seu próprio registro da feminilidade.

Porem, nem, todos os pais chegam tao prontos. Existem aqueles que trazem não uma pergunta, mas exigem uma resposta. Trazem uma demanda de que lhes restituamos o filho esperado. De acordo com Flesler (2007), nesses casos, a transferência assume seu aspecto imaginário, e eles neo vem em busca de um saber. A intervenção nesses casos encontra um interlocutor não muito interessado em questionar-se, aprofundar-se em si mesmo para ser possível desdobrar um trabalho verdadeiro de escuta e movimentação subjetiva. Como a mãe de um  menininho com encaminhamento de estrutura psicótica, que vinha me pedindo orientações sobre cada evento que se passava com seu filho, e como ela deveria se posicionar. Ficava claro que era dessa forma que estabelecia as relações com todos os profissionais pelos quais já haviam passado e,  por outro lado, recolhidas diversas opiniões, seguia fazendo exatamente da mesma forma. Nesses tipos de caso, Flesler (2007) propõe que o analista deva fazer frente a esse ideal imaginarizado de que possuiria a resposta para restituir-lhes o filho almejado, introduzindo a castração em si mesmo, no saber desmesurado que projetado sobre ele.

Por fim, um outro tipo de pedido apontado por Flesler (2007), mais difícil ainda de contemplar uma intervenção efetiva, são aqueles casos que os pais vão encaminhados. Não possuem uma questão, sequer um pedido, estão la obrigados por um terceiro. Na verdade, seu pedido o de que avaliemos a situação e lhes desobriguemos da necessidade de levarem o filho ao tratamento. Esse tipo de caso chega encaminhado do Conselho Tutelar, da Justiça, ou da escola, os quais escutam um sofrimento que os pais não são capazes de enxergar em seu filho. Eles podem leva-lo por um tempo, porem, como não um pedido genuíno, frente a qualquer dificuldade, suspendem o tratamento, tranquilizados com o fato de que tentaram, mas não serviu para nada. Ou seja, entraram e saíram de cena sem questionarem-se o que tinham a ver com o motivo de estarem ali. De acordo com a autora, esse tipo de caso traz consigo o real da transferência. Nesses casos, a  intervenção do analista segue no mesmo registro: apela aos órgãos de garantias de direitos da criança, apelo no real, unica instancia capaz de barrar o aniquilamento do sujeito operado por essas famílias. Muitas vezes o tratamento interrompe-se a pois o analista entra na mira de fogo dos pais. A intervenção opera enquanto um 佖 ico ato, de corte, interrompendo o gozo mortífero sobre a criança.

Interessante observar que muitas vezes nessa clinica o que opera em grande parte do tempo não é a palavra, mas atos. Orientados, da mesma forma, por uma escuta. A partir do recolhimento destas questões, possível pensarmos na posição do analista diante dessa constelação de fatores, tao diversos. Freud já falava acerca da inclusão dos pais no tratamento das crianças, a partir da consideração de que são eles os portadores da demanda inicial e da resistência no trabalho:

Quando os pais se erigem em portadores da resistência, com frequência a meta da analise, ou ela própria
correm perigo e, por isso, costuma ser necessário juntar analise da criança algum influxo analítico sobre
seus progenitores (1932/2006).

Quando algo emerge enquanto resistência ao trabalho de analise com a criança os pais devem ser escutados. Pode ser que isso ocorra por possuírem algum questão de sua própria infância, mal elaborada, que depositada sobre o filho. Flesler (2007) coloca que a intervenção do analista deve ser pontual, e ocorrer em momentos em que, na analise da criança, forem encontradas falhas na estrutura da constelação familiar. A partir do que a autora nos traz, penso que o trabalho com os pais na analise de crianças deva ser o de proporcionar eles um espaço de elaboração para realizarem essa desidentificação. São questões bem especificas, que penso ter a ver com a construção da maternidade e da paternidade e o lugar que a criança ocupa na economia psíquica desses pais, bem como a redistribuição da libido entre os personagens dessa composição, o que em difere de uma analise pessoal. Assim que isso estiver elaborado encerra-se, podendo dai surgir uma demanda de analise pessoal, devendo só então serem encaminhados, se assim o desejarem. Dessa escuta o analista colhe material para entender alguns entraves com os quais se depara no trabalho com a criança, e pode seguir com o trabalho com ela.

Um outro ponto importante a ser trabalhado, segundo Flesler (2007) a partir da posição de suposto saber ocupada pelo analista, ao não encarnar esse lugar, devolve o saber ao lugar que ele deveria estar ocupando. Restabelece assim aos pais o lugar de Outros da criança, que nesses casos, muitas vezes oscila. Essa uma postura importante no trabalho com os pais, que mesmo que venham demandando resposta, operam com seu saber inconsciente sobre seus filhos. O que tenho feito reenlaçar a atuação a palavra, para que possam se dar conta do que fazem com o filho, trazendo tona o lugar que este ocupa para eles e, ao historicizar, entender de que forma foi constituído. Somente isso possibilita por uma questão no que estava instituído e liberar a criança de ocupar esse lugar.

Uma outra coisa que essa postura possibilita, segundo Flesler (2007), a de autorizar os pais em suas funções, em especial a paterna, no que diz respeito a barrar a satisfação infantil. De minha parte, concordo com a autora, tem sido recorrente em minha clinica escutar cenas de um imperativo infantil de dominação e intolerância a frustração, em cenas desmedidas de a crianças controlando a tv da casa, a rotina, o local onde os adultos dormem, o que comem, os lugares que frequentam. Pais amedrontados diante de crianças de 5 anos de idade. Ao escuta-los, verifico que não e da criança diante de si que tem medo, mas da criança dentro de si. Relatam vivencias de extrema de violência na própria infância e um ódio desmesurado que emerge, e que, se começarem a bater irão espancar ou matar seus filhos. O medo é disso.

A analise da transferência, a partir da ética psicanalítica, nos fornece ferramentas para nos despojarmos do imperativo que nos imposto e escutar para alem do pedido trazido, de restituição do objeto fálico dos pais. Por trás de um pedido restitutio, existe um sujeito em sofrimento. Berges e Balbo (2010) nos advertem da importância de escuta-lo e, que essa escuta, no caso dos pais, transitiva. Por ser dessa ordem, resvala na analise da criança, na medida em que esta, menos alienada pela angustia parental, libera-se para seguir seu curso associativo na analise.

Escutar os pais numa analise de crianças implica em acolher, segundo Faria (1998), um pedido de ajuda que não foi possível fazer em nome próprio, sendo atuado sobre o filho. Mas, se falam disso porque estão implicados, sem ainda terem se dado conta disso. O trabalho de escuta o de faze-los darem-se conta dessa implicação, passando da queixa, alienada na criança, ao desejo próprio. Para essa passagem e necessária uma escuta analítica. A escuta de pais vai na direção da subjetivação de uma questão própria que foi trazida colada na criança. Nesse momento e possível o encaminhamento para uma analise pessoal e a implicação dos pais em uma demanda em nome próprio.

Ao ter suas questões redirecionadas, os pais desobrigam a criança de ter que ocupar esse lugar. Possibilita a ela se desvincilhar do que estava depositado nela, permitindo-lhe prosseguir em sua analise sem a invasão constante das insistentes demandas parentais.

Recolhidos diversos depoimentos e interlocuções teóricas, pudemos delimitar ao longo deste trabalho de que forma eu, enquanto psicanalista, tenho incluído os pais em meus atendimentos com crianças. O caminho percorrido durante este ano de estudos teóricos, apresentações de casos, de falar de minha pratica, e escutar em troca o efeito que isso causou no outro, e onde isso se enquadra no que Freud e Lacan propuseram, permitiu uma melhor delimitação de um percurso pratico. Munidos de teorias para fundamentar nossa pratica, colhendo experiencias de psicanalistas de longa data, amparados pela supervisão e por nossa analise pessoal, a questão que se coloca afinal, no que diz respeito ao analista de crianças a quem respondemos? Condição que nos coloca frente criança que fomos um dia e divida simbólica que herdamos da condição de nos tornarmos humanos. Se a função do analista numa analise de crianças passa pelo viés de por em funcionamento funções primordiais, importa que ele de ouvidos a de que maneira esta se posicionando diante dessas demandas. Para que possa desvincilhar-se de suas respostas neuróticas e que possa atuar ali apenas a ética psicanalítica, ética desta psicanalista.

Autora: Mônica Fujimura Leite

 

Referência Bibliográfica

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BERG?S, J. BALBO, G. Psicoterapias de Crianças, crianças em Psicanálise. Porto alegre: CMC, 2010.

CHECCHINATO, D. (tradutor). LACAN, J. Duas notas sobre a Criança (1969). Ornicar?, Revue du Champ freudien, n? 37, avril-juin 1986, p. 13 e 14. Disponível em: http://www.acpsicanalise.org.br/docs/duas-notas-sobre-crianca.pdf .

FARIA, M.R. Introdução Análise de Crianças o lugar dos pais. S 縊 Paulo: Hackers Editores: Cespuc: FAPESP, 1998.

FLESLER, A. A Psicanálise de Crianças e o lugar dos pais. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

FREUD, S. Conferência 34. In: FREUD, S. Edi 鈬 o Standard nas Obras Psicol icas Completas de Sigmundo Freud. vl. XXII. Novas Conferências Introdutivas sobre a Psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

GOLDENBERG, R. A Ética é o Estilo. In: BERNARDINO, L.M.F. ()rg.). Psicanalisar crianças: que desejo é esse? Salvador: Àgalma, 2004. p. 13-24.

JERUSALINSKY, A. Considerações Preliminares: a todo tratamento possível de uma criança. Revista Associa 鈬 o Psicanalítica de Curitiba. n. 2.

Efeitos da Medicalização na Constituição Subjetiva da Crianças

O termo Medicalização diz respeito ao reducionismo biológico do sofrimento psíquico. Nessa prática ocorre uma valorização desproporcional de explicações neurológicas e genéticas e o psiquismo do humano é reduzido a sua estrutura biológica (MOYSÉS & COLLARES, 1994).

A partir da Psicanálise, podemos considerar essa redução como uma exclusão do campo da sexualidade na estruturação do sujeito humano. Atualmente, a denominação que se atribui a indivíduos em sofrimento psíquico “indivíduo com…” separa o sujeito de seu sofrer, deixando de fora a relação que ele estabeleceu com seu sintoma (ESPERANZA, 2011) (desconsiderando o fato de que ele o produziu). Assim, segundo a autora, fica a seguinte lógica:

…o transtorno substitui o sintoma, o organismo substitui o corpo, o indivíduo
substitui o sujeito e o inconsciente desaparece em favor de comportamentos e
condutas a modificar (p. 58).

 que disso decorre é que as mais variadas manifestações de mal-estar e de comportamentos socialmente inadequados ou ditos “disfuncionais” são interpretados enquanto signos patológicos. Nesse sentido, Caraffa (2013) afirma que, se ao longo da vida o humano passa por desconfortos psíquicos ou físicos, devido a circunstâncias cotidianas, estes deixam der ser encarados enquanto consequência natural da experiência humana e passam a ser considerados sintomas de doenças, tais como transtornos de sono, depressões, disfunções sexuais e distúrbios de ansiedade.

Abandona-se uma busca de um sentido contextual e uma causa para a manifestação comportamental, ou seja, as questões psíquicas deixam de ter um caráter de sintoma, no sentido “sinto-mal” (QUINET, 1991), para serem explicados como uma disfunção neuroquímica.

Segundo Lopes (2013), essa idéia corresponde à lógica de que seria possível a eliminação do desconforto e da insatisfação, como se ao suprir o que falta em determinado momento da vida, encontraria-se a felicidade plena.

O tratamento dado a isso seria normativamente a administração de medicamentos (psicofármacos), as quais, a partir de um reajuste das disfunções cerebrais, hormonais ou neuroquímicas, teriam como resultado uma normalização dos comportamentos inadequados. Assim, questões sociais, econômicas, políticas e culturais são desconsideradas (ROCHA E FERRAZZA, 2011) e o sujeito é desimplicado de seu sofrimento.

Os que criticam essa visão defendem a idéia de que não é possível reduzir a complexidade do psiquismo humano a uma única determinação e explicação para as agruras que o acometem. A Psicanálise possibilita uma visão crítica dessa ideia, considerando esta questão, por um lado, de negação do mal estar estrutural no qual o humano se encontra, o qual decorre de três fatores irreconciliáveis: seu próprio corpo, a natureza e o outro (FREUD, 1930/2006) e por outro, uma busca ilusória de “completude”, inerente à condição humana, por seu processo de constituição psíquica (Lacan, 1988).

Porém, o que tem preponderado é essa visão medicalizante, que a qual tem ganhado força em todas camadas e instâncias da sociedade atual.

A problemática sobre a qual nos deparamos aqui, é a de que essa visão tem atravessado também a área da infância, de onde se denota uma proliferação de diagnósticos psicopatológicos para comportamentos que atrapalham a ordem do dia, mas que em outras épocas e contextos recebiam outra interpretação.

As explicações medicalizantes reduzem as multideterminações dos transtornos da infância a um fator biológico e o tratamento tem como base a administração de psicofármacos (ROCHA e FERRAZZA, 2011; Untoiglich, 2006). No tempo da infância essa prática possui efeitos que não podem ser desconsiderados, devido aos efeitos hiatrogênicos que decorrem dele, em decorrência da especificidade que desse tempo. Tomaremos como situação exemplar o “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade” (TDAH), por ser o diagnóstico que mais tem atingido crianças e adolescentes. A esse respeito, ROCHA E FERRAZZA (2011) afirmam:

O principal tratamento determinado àqueles que são diagnosticados com TDAH é a
prescrição de um medicamento psicoestimulante, o cloridrato de metilfenidato, que
apresenta, entre outros, o nome comercial de “Ritalina” ou “Concerta”. Apesar das
diversas pesquisas publicadas na atualidade tentando alertar pais e professores
sobre os prejuízos na vida daqueles que apresentam sintomas do TDAH (ROHDE
et. al., 2000; GOMES et. al., 2007), há poucos trabalhos que advertem sobre os
efeitos colaterais do uso do metilfenidato. Segundo Barros (2008), dentre os
diversos efeitos adversos, destacam-se insônia, taquicardia, dores abdominais,
anorexia, perda de peso.

Além destes, Cordioli (apud Mariotto e Gizzi, 2012) e Moyses e Collares (2013) acrescentam efeitos ainda mais graves, tais como psicoses, alucinações, depressão, ansiedade, irritabilidade, suicídio, convulsões, insônia, confusão mental, esterotipias, compulsões, diarréia, alterações nas funções hepáticas, retardo no crescimento, alteração nas funções sexuais, tontura, perda de cabelo, enurese.

O Metilfenidato é um estimulante do SNC (anfetamina), que aumenta a atenção e a produtividade. Aumenta os níveis de dopamina no cérebro, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Esse é o mesmo princípio ativo da cocaína. Como consequência desse aumento artificial o cérebro se dessensibiliza quanto a situações cotidianas que provocariam prazer, o que pode ocasionar na adicção ao medicamento.Assim, ao ser retirada, pode ocasionar reações como insônia, depressão, exaustão, hiperatividade, irritabilidade e piora dos sintomas iniciais. Além disso, estudos apontam para o o risco de posteriormente o indivíduo assumir comportamento de adicção a outros tipos de droga.

Uma outra questão que os autores colocam é que além dos efeitos colaterais orgânicos, existem outros, de ordem psíquica, que dizem respeito à estigmatização daqueles que levam o diagnóstico e fazem uso da medicação, que normalmente se estende por muito tempo. O que os pesquisadores dessa abordagem, e eu, a partir de minha prática, questionamos, são os efeitos hiatrogênicos que esta visão pode ocasionar,numa problemática que pretendia solucionar, ocasionando maiores danos, algumas vezes piores que o de início. Isso decorre de várias questões.

A primeira diz respeito ao uso que a família faz de tal lógica medicalizante. Não é raro ouvirmos relatos de pais dizendo administrarem a medicação apenas nos períodos escolares (ou seja, nos fins de semana e férias as crianças não tomam o remédio).

Segundo eles, a explicação é a de que a escola é que se queixa do comportamento da criança, ou que ele necessita apenas na questão da aprendizagem. Ou, relatos de professoras dizendo ter sido delegada à escola a função de administrar a medicação à criança. Pode-se questionar, a partir disso, por um lado, como fica o organismo de uma criança com tamanho desbalanço químico, e por outro, por que vias passa esse diagnóstico dentro da fantasmática familiar e social. De que forma essa criança apresenta a sintomatologia que aparece de diversas formas para cada ator social que dela se ocupa. Se comporta melhor em casa? A angústia é da escola, que está vendo uma inadequação onde não existe? Existe uma resistência da família em aceitar a problemática? E a pergunta mais importante: que discurso não está sendo escutado? De que mensagem essa criança está sendo portadora que ocasiona um curto-circuito nacomunicação entre família, escola, médico e criança?

Além disso, Gisela Untoiglich (2006), pesquisadora argentina, que trabalha há anos pesquisando tais questões, fez um levantamento em diversos países (Argentina, Colômbia, EUA, México), em sua dissertação, e encontrou algo que também no Brasil nossa prática tem corroborado. Constata que em muitos casos uma criança diagnosticada com TDAH apresenta outros tipos de transtornos do desenvolvimento, como psicoses, depressões e históricos de violência (física, psicológica e sexual).

Em minha prática, bem como na interlocução com equipes de trabalho de São Paulo, Londrina e Porto Alegre, encontramos em nossas clínicas crianças com dificuldades na apropriação do corpo, na constituição do eu. Além disso, temos encontrado crianças em carência de garantia de direitos (sem pai, sem pensão, acesso à saúde, sem condições sociais), com falta de limites, na contenção da angústia, com questões existenciais, acerca de sua origem e filiação, problemas de transmissão, não ditos ou mentiras, mães sem disponibilidade psíquica para realizar os cuidados que uma criança necessita, crianças com déficits cognitivos, processos de luto, histórias familiares trágicas (adoções, migrações, perdas).

Moyses e Collares (2013) referem ainda terem encontrado em suas pesquisas muitos casos de crianças e adolescentes em situação de abrigamento, por perda de pátrio poder (ou seja, se estão lá é porque foram anteriormente submetidas a situações extremas de violência) serem medicadas com essa droga. Nesses casos, mais uma vez se repete o ciclo da violência em suas trajetórias de vida, sendo a expressão de seu sofrimento rotulada enquanto um transtorno psíquico e seu pedido de ajuda silenciado. Vejamos o risco decorrente disso, segundo as autoras:

(…) em muitos casos (a sintomatologia do TDAH) oculta uma
sintomatologia grave, a qual eclode a posteriori ou encobre deterioração que
se aprofundam ao longo da vida. Em outros casos, exerce uma pseudo
regulação do comportamento, deixando, por sua vez, a criança libera a
posterior impulsividade na adolescência, em razão de que não exerce
modificações de fundo sobre as motivações que poderiam regulá-las, dado
que (…) tendem a silenciar os sintomas, sem perguntar-se o que é que os
determina, nem em que contexto se dão.

Um outro tipo de relato da família muito comum é com relação a para quem é o remédio, que visa ao aplacamento dos sintomas de TDAH na criança. Relatam que o acalmar do comportamento do filho em casa, ou a diminuição da queixa escolar representam um alívio para eles. A questão que se coloca aí não é desmerecer a necessidade de diminuição de tensão e frustração que esses pais buscam, mas o quanto esse tipo de prática vai a favor de tamponar o reais motivos pelos quais essa criança fez esse sintoma. Isso porque o sintoma na infância é um sinal que implica diretamente a fantasmática parental.

Essa questão tão cara aos pais tem um outro viés, que implica no que resvala na criança um diagnóstico precoce, colocando em risco a constituição de sua subjetividade e sua perspectiva de futuro.

Isso porque o Estadio do Espelho lacaniano (1998) nos diz que a subjetividade do humano nasce a partir do desejo do outro. Vejamos o quanto essas questões estão imbricadas, de modo que torna-se impossível separar a sintomatologia na infância do lugar que ela ocupa na família e o quando isso está atrelado a sua constituição enquanto um sujeito desejante.

Segundo a teoria freudiana, o nascimento de um filho implica para os pais na possibilidade de uma restituição narcísica, uma aposta no futuro do que não foi possível realizar no passado, projetando nesse ser que ainda nada é, toda uma possibilidade compensatória de drible da castração, das frustrações e limitações que os pais, enquanto humanos, se depararam ao longo da vida. Por outro lado, estar colocado antecipadamente nesse lugar, na fantasmática parental, permite ao bebê não somente sua sobrevivência biológica, mas também sua inserção no mundo humano, a partir de seu enlace a esse desejo parental. Vorcaro (2011) coloca que:

… a inscrição do neonato humano na cultura, antes mesmo que ele
compareça como presença concreta, sua antecipação funcional e seu
consequente enlaçamento numa linhagem traçam a condição de qualquer
criança (p. 226).

O bebê humano, diferente dos animais, que possuem um modo único e determinado de realizar as funções para sua sobrevivência, nasce biologicamente imaturo, incapaz de dar conta de cuidar de si e de entender sozinho o que se passa a sua volta e em seu próprio corpo. A carência de instintos, ocasiona no bebê humano a vivência de uma corpo despedaçado. Necessita para sobreviver, de ser cuidado por alguém que realize a Função Materna, (que pode ser a mãe biológica ou alguém que assuma a função), a qual não se reduz a um cuidado no nível do biológico. Ao puro grito do bebê, decorrente de um incômodo gerado por um excesso de excitação (fome, dor de barriga, o que a criança não sabe de que se trata), é necessário que ela tome – o como um apelo, respondendo não apenas com a eliminação dessa excitação, mas pondo palavras nisso que era do biológico. Dessa forma, a partir do encontro com o outro, começa a se inscrever na criança um outro registro, que produz uma marca a partir de uma experiência de satisfação (prazer do órgão, vivida no corpo). A partir dessa marcas, erógenas, ela sai do campo da pura necessidade biológica, e da próxima vez em que chorar, será na busca dessa experiência.

Juntamente com as experiências de satisfação, ficam para a criança registros de sons, cheiro, sensações, pedaços de palavras que vão constituindos-e em uma rede de imagens (carinho, voz da mãe, embalo). Lacan (1998) usa a situação exemplar da criança em frente a sua imagem no espelho: num primeiro momento, a criança reage como se a imagem refletida fosse uma outra criança (vai procurar atrás do espelho). Em seguida, deixa de tratar a imagem como um objeto real, percebe tratar – se de uma imagem e na terceira etapa, ela se reconhece essa imagem como sendo sua. A criança se identifica com essa imagem, e esta é assegurada pela mãe, que lhe diz que aquela ali é ela. A criança se vê então a partir do olhar da mãe, e nisso se implica o desejo dessa mãe.

Segundo Lacan (1998), num primeiro momento, o bebê não diferencia ele mesmo da mãe, vivendo apenas uma regularidade de satisfação e ausência de satisfação. Com a quebra de tal regularidade, a mãe emerge como algo real, separando-se e constituindo-se para a criança como Outro (A), portador de todos os objetos de satisfação.

A relação com a mãe possibilita uma antecipação de uma unificação do corpo. Na medida em que a mãe nomeia, fornece à criança elementos para constituir uma imagem de si mesma. A criança se vê no que a mãe vê nela. Isso ocorre a partir do desejo da mãe com relação a essa criança. Este desejo determina o lugar no qual esta criança vem, antes mesmo de seu nascimento, bordeando-a com inúmeros significantes, antecipando um sujeito. Para que isso ocorra, é necessesário o desejo dessa mãe, remetendo a criança a um ideal (implicando aí os ideais familiares e da cultura, do desejo dela de ter o filho, o momento em que ele veio, a história familiar dos pais), enxergando um ser unificado, capaz de realizar coisas que ainda não são possíveis (a um chute, atribui que será um jogador de um reflexo).

Há uma desproporção entre as reais possibilidades do bebê e o ideal dos pais, em relação ao qual se produz uma promessa de futuro, os pais sustentam nele certas falas que o antecipam frente a certos ideais. Tais falas recobrem o real (a incapacidade do bebê), articulando um simbólico, já preparado previamente para ele. A partir disso, situa o bebê numa filiação.

Porém, um filho, quando apresenta dificuldades na fala, nas aquisições pedagógicas, no brincar, na socialização, descoordenações motoras, hábitos e comportamentos estranhos, ocasionam um estranhamento desses pais que têm dificuldade em se reconhecer em seus filhos (VORCARO, 2013). Isso ocasiona uma vacilação no processo de filiação e consequentemente uma dificuldade de pôr a trabalho seu saber parental acerca de como cuidar dessa criança, o que esperar dela, como educá-la, promover cortes, etc. Pois essa ações provêm das expectativas que são depositadas na criança quando ela é gestada, desde o psiquismo parental.

De acordo com Vorcaro (2013), o discurso psiquiátrico oferece uma resposta diante dessa falta de (re)conhecimento parental, que ocasiona incertezas e inseguranças, proporcionando padrões de conduta, perspectivas futuras, modos de ação no trato aquela patologia específica.

O problema é que, quando uma criança é enquadrada em um diagnóstico nosográfico, se já havia uma vacilação parental na filiação desta criança, isso se concretiza. Esse tipo de interpretação e intervenção empurra para a destituição da filiação da qual a criança é proveniente. Ele perde os traços identificatórios de sua tradição familiar e passa a ser filiado pela nosografia, seu nome e suas características passam a ser descritos e reconhecidos a partir de uma genealogia médica.

O mais problemático disso tudo é que, além de intervir na relação da criança com os pais no presente, esse discurso também interfere no futuro dela, na medida em que prediz o prognóstico de sua patologia. Os pais, destituídos de seu saber, a partir da vacilação de seu desejo parental, guiam-se pelo saber anônimo do especialista.

A nomeação diagnóstica pode assumir tamanha valência que destitui o
nome-próprio da criança, substituído pela identidade social conferida pelo
nome da síndrome em que a medicina localiza (…). Estabelece-se assim sua
nova filiação, já que a paternidade, sobre-o-nome, é dada pelo nome-da síndrome,
que baliza, referencia e justifica os atos, falas e condutas da
criança, deslocando-a da possibilidade de situar-se a partir de sua ordem
própria de filiação. Inserir uma criança no laço social como ‘aquela Rett’, ‘ele
é PC’, ‘meu filho é Asperger’, é reduzi-la ao registro médico, é amputar sua
singularidade subjetiva (VORCARO, 2011, p. 228).

Isso determina o futuro de uma criança, cristalizada a partir de uma patologia, fechando qualquer possibilidade de saída/resgate de uma assunção subjetiva.

Diante desse contexto é inadimissível que nós, profissionais da infância, permaneçamos impassiveis. Se por um lado, a direção do trabalho na clínica é o de restituir o saber parental, a partir de uma ressignificação e realocação do desejo parental, deslocando a criança desse lugar mortífero, bem como instrumentalizando a criança a responder de outra forma na dinâmica familiar; por outro, enquanto cidadãos, importante um posicionamento ético e político. A articulação de profissionais de diferentes contextos que tratam da infância é extremamente importante, em especial o campo da saúde e o escolar. Além da família, a escola é por excelência o campo da infância, instituição que incide sobre a constituição subjetiva da criança.

Neste sentido, Caraffa (2013) nos lembra que em 11 de Novembro de 2012, no Dia Mundial de Luta contra a Medicalização, foi lançado na Câmara Municipal de São Paulo o documento “Recomendações Práticas não Medicalizantes para Profissionais e Serviços de Educação e da Sociedade”, o qual oferece alternativas à medicalização para lidar com problemas de aprendizagem e comportamentais (www.medicalizacao.org.br/publicacoes). São posturas de acolhimento, com um olhar
mais abrangente e uma escuta mais atenta que permitem localizar o sofrimento subjacente à fenomenologia dos ditos transtornos infantis, evitando uma rotulação
precoce e hiatrogenizante.

Para finalizar, deixo o depoimento de entrevistada em reportagem sobre a possibilidade de apagar memórias ruins. Ele demonstra que, apesar de tudo, o sujeito resiste. Como dizia Lacan, mesmo que tentemos calar: “isso fala”. “Minhas memórias estão dentro de mim para serem trabalhadas. Prefiro enfrentá-las a
apagar essa parte da minha vida”.

Autora:  Mônica Fujimura Leite

Referência Bibliográfica

CARAFFA, R.C. Medicalização na Educação e na Saúde. Casa em Revista. An.3, n. 5.São Paulo, março de 2013. p.30-37.

ESPERANZA, G. Medicalizar a vida. In: JERUSALINSKY, A. e FENDRICK, S. (Orgs.). O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea. 2 ed. São Paulo: Via Lettera, 2011. p. 53-59.

FREUD, S. O Mal – estar na Civilização (1930 [1929]. Cap 3. In: FREUD, S. Obras Completas. O Futuro de uma ilusão, o Mal – estar na Civilização e outros trabalhos. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 93-104.

KUPFER, M.C. Educação para o Futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2000.

LACAN, J. O sujeito e o Outro (I): a alienação. In: LACAN, J. O Seminário. Livro11 – Os Quatro Conceitos fundamentais da Psicanálise.Rio de Janeiro: Zahar.1988, p. 193- 204.

LACAN, J. O sujeito e o Outro (II): a afânise. In: LACAN, J. O Seminário. Livro11 – Os Quatro Conceitos fundamentais da Psicanálise.Rio de Janeiro: Zahar.1988, p.205- 217.

LACAN, J. O Estadio do espelho como formação da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.96- 103.

LOPES, J.C.C. A Saúde Pública na contemporaneidade. Casa em Revista. An.3, n. 5. São Paulo, março de 2013. p.2-11.

MARIOTTO, R.M.M. & GIZZI, M.L.K.B. Considerações teórico-clínicas sobre a hiperatividade em crianças. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, n.24, 2012. Curitiba: APC. p. 105-115.

MOYSES, M.A.M. & COLLARES, C.A.L. Medicalização do comportamento e da Aprendizagem: consequências para a vida de crianças e adolescentes. Casa em Revista. An.3, n. 5. São Paulo, março de 2013. p.18-29.

QUINET, A. As Funções das Entrevistas Preliminares. In: QUINET, A. AS 4 + 1 condições de análise. 9 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. p. 13-34.

ROCHA,L.C. e FERRAZZA, D.A. R. A Psicopatologização da infância no Contemporâneo: um estudo sobre a expansão do diagnóstico de “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.8, n.2, p. 237-251, Jul./Dez. 2011.

UNTOIGLICH, G. Consenso de Especialistas da área de saúde sobre o chamado “Transtorno por Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade”. Correio da APPOA, Porto Alegre, n. 144, março 2006 63 – 68. Disponível em: www.appoa.com.br/download/correio144.pdf. Acesso em: 20/08/2013.

VORCARO, A. O Efeito Bumerang da Classificação Patológica da Infância. In: JERUSALINSKY, A. & FENDRIK, S. O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Orgs.) 2 ed. São Paulo: Via Lettera, 2011. p. 219-230.

 

por Vanessa Vieira

Eram 23h30 de uma noite de domingo quando o telefone tocou na casa de Cláudia*. Ela acordou sobressaltada e o marido foi atender. A notícia era que o sobrinho, de apenas 17 anos, havia se jogado pela janela do 13º andar. Ao lado do aparelho, Cláudia escutava os gritos da irmã, que acabara de perder o filho. Em meia hora, ela e o marido chegaram ao local do suicídio. Numa confusão de sirenes e luzes, os bombeiros e a polícia trabalhavam em volta do corpo do rapaz – que ainda estava no chão. Três anos se passaram, mas a cena ainda perturba Cláudia. “Até hoje, se estou dormindo e o telefone toca, acordo querendo chorar”, diz ela. Ruídos de sirene ainda provocam tremores e taquicardia. Conseguir pegar no sono nos domingos à noite também virou uma tortura. Ela só adormece quando o cansaço se torna mais forte do que as lembranças. “Se pudesse, eu apagaria da memória aquela noite”, diz.

Talvez você nunca tenha passado por uma situação tão forte. Mas certamente guarda na cabeça algum momento, ou mais de um, que preferiria eliminar – mas que sempre acaba relembrando sem querer. Todo mundo coleciona algumas lembranças ruins ao longo da vida. Isso é inevitável. Mas, no que depender de pesquisadores de várias partes do mundo, vai deixar de ser. Eles estão trabalhando num projeto incrivelmente ambicioso: a criação de uma droga que apague memórias ruins.

Isso sempre foi considerado impossível pela ciência. Mas o cenário começou a mudar no final da década de 1990, graças ao neurocientista egípcio naturalizado americano Karim Nader. Como os demais cientistas da época, Nader sabia que as nossas memórias são apenas relações de afinidade entre os neurônios. Quando você memoriza alguma coisa – o endereço da rua onde mora, por exemplo -, o seu cérebro forma conexões entre os neurônios envolvidos com aquela informação. Eles ficam mais sensíveis uns aos outros. Por isso, mais tarde, quando você tenta se lembrar do endereço, a mesmíssima rede de neurônios é ativada – e recupera a informação. É assim que a memória funciona.

Mas Nader percebeu que havia uma coisa a mais. Para que essa `amizade¿ entre grupos de neurônios se formasse, o cérebro precisava sintetizar determinadas proteínas. Ele teve a ideia de bloquear a ação dessas proteínas para ver o que acontecia. Primeiro, passou várias semanas ensinando um grupo de ratinhos a associar um determinado som com um pequeno e doloroso choque elétrico. Sempre que o som era tocado, os camundongos levavam um choque (vida de cobaia não é fácil). Com o tempo, eles aprenderam a lição – e ficavam com medo assim que ouviam o som. Até que Nader injetou neles uma droga que inibia a síntese das proteínas da memória. O  resultado foi dramático, e deixou o cientista boquiaberto. Os ratinhos pararam de reagir com medo quando o som era tocado. “A memória de medo tinha partido. Os ratos tinham esquecido tudo”, diz Nader. O esquecimento era permanente, ou seja, persistiu mesmo depois que a substância já havia sido eliminada do corpo dos animais.

Essa experiência mostrou, pela primeira vez, que era possível apagar memórias. Isso acontece porque, a cada vez que tentamos acessar uma lembrança, ela passa por um período de instabilidade, num processo chamado de reconsolidação. Ele tem três etapas. Primeira: a informação sai do banco de dados do cérebro. Segunda: ela chega à sua consciência e é acessada. Terceira: a informação é gravada novamente no banco de dados. Nader descobriu que, se você bloquear uma determinada proteína, a terceira etapa simplesmente não acontece – e a memória não é regravada. Ela some para sempre.

Nader foi além. Ele queria saber se era possível apagar apenas uma memória específica, ou se o processo acabava deletando outras lembranças de forma involuntária. Então fez mais um experimento. Primeiro, fez os ratinhos memorizarem uma sequência de sons que precediam o choque. Depois, tocou apenas um som daquela sequência antes de injetar a droga apagadora de memórias. Resultado? Os ratinhos esqueceram apenas aquele som – todos os demais continuaram gravados na memória, associados ao choque. Ou seja: não só é possível apagar memórias, é possível fazer isso com precisão de frações de segundo. Nader não sabia direito em qual proteína cerebral deveria mirar, e fez testes com várias. Até que o neurologista Todd Sacktor, da Universidade Columbia, encontrou o alvo. É a proteína PKMzeta, que está envolvida com a passagem de sinais elétricos entre os neurônios. Se você bloquear a PKMzeta enquanto o indivíduo está se lembrando de alguma coisa, você destruirá aquela memória. Sacktor provou isso numa experiência em que ratos recebiam uma injeção de lítio – que provoca náuseas – sempre que comiam algo doce. A intenção era fazer com que as cobaias associassem o sabor com o enjoo. A estratégia funcionou, e logo os animais passaram a rejeitar comida doce. Mas, com uma simples injeção de um inibidor de PKMzeta, eles esqueceram aquilo e voltaram a gostar de doces. Os cientistas dizem que é preciso fazer mais testes para entender qual é o real efeito disso no cérebro – e saber quais são os possíveis efeitos colaterais, se existirem. Se usada de forma descontrolada, a técnica poderia levar à destruição de memórias saudáveis. “Os efeitos da inibição da PKMzeta parecem ser mais potentes. O desafio está em regular essa potência. Nós estamos trabalhando nisso”, afirma Sacktor.

Mexer na PKMzeta é dar um tiro de canhão. O ideal seria encontrar proteínas ainda mais específicas, que permitissem apagar só as emoções associadas a uma memória ruim – sem destruir a memória em si. Isso permitiria que uma pessoa pudesse se libertar do sofrimento associado a uma memória, sem necessariamente esquecer que aquilo aconteceu. Isso é importante porque preserva o aprendizado que conquistamos ao viver situações ruins. Alguém que sofreu um acidente de carro, por exemplo, ainda se lembraria do acidente – e, por isso, dirigiria com responsabilidade. Só a angústia e o trauma ligados ao acidente seriam deletados. “As pessoas poderiam se lembrar, sem ser sufocadas por aquela memória traumática, podendo seguir adiante com suas vidas”, acredita Karim Nader, hoje professor da McGill University, no Canadá. O método: você iria a um consultório médico e, sob a supervisão de um terapeuta, relembraria um fato desagradável. Ao mesmo tempo, receberia a injeção de uma droga inibidora de proteínas. E, como que por mágica, aquela memória que sempre incomodou tanto deixaria de ser um trauma.

Isso já parece incrível, mas existe uma corrente de pesquisadores trabalhando em algo ainda mais impressionante (e assustador também). Em vez de apagar as memórias, que tal modificá-las?

 

BRILHO ETERNO

Cientistas da McGill University e da Harvard Medical School descobriram que o propranolol, um remédio usado para tratar pressão alta, tem um efeito colateral estranho: é capaz de alterar memórias armazenadas no cérebro. Isso acontece porque ele inibe a atividade de um neurotransmissor, a norepinefrina. Os cientistas fizeram testes com pessoas que tinham passado por alguma situação traumática. Elas receberam uma dose de propranolol e foram convidadas a relembrar o fato. As reações mais intensas de medo e emoção desapareceram, e esse efeito se manteve mesmo depois que os voluntários não estavam mais sob efeito do remédio. Segundo os cientistas, isso acontece porque ele interfere na reconsolidação da memória, que é alterada e perde sua carga emocional negativa antes de ser regravada pelo cérebro.

Num documentário sobre o estudo produzido pela McGill University, uma paciente chamada Louise conta que finalmente conseguiu superar um trauma de infância graças ao propranolol. Estuprada por um médico quando tinha apenas 12 anos, ela sofreu durante toda a vida as sequelas psicológicas disso. “Eu não conseguia nem trocar de roupa na frente do meu marido”, relata. Graças ao tratamento, Louise diz que as memórias recorrentes e pesadelos desapareceram, bem como o medo de tirar a roupa.

No Brasil, também há pesquisas em torno de formas de promover o enfraquecimento de memórias traumáticas por meio do uso de drogas específicas. Uma delas, realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), investiga a ação do topiramato, um remédio atualmente usado para tratar convulsões. O topiramato seria capaz de inibir a produção de um neurotransmissor, o glutamato, que age no hipocampo – a região do cérebro que coordena o processo de formação de memórias. Em situações de estresse, o nível de glutamato ali aumenta. Isso poderia explicar, por exemplo, os pensamentos repetitivos que podem acompanhar uma experiência traumática. “Nossa hipótese é que, ao reduzir a liberação do glutamato, podemos inibir a reverberação de uma memória traumática”, explica Marcelo Feijó, professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. No estudo, mais de 82% dos pacientes tratados com a substância apresentaram melhora dos sintomas de estresse pós-traumático.

O estresse pós-traumático é caracterizado por sintomas como ansiedade e depressão e está relacionado à lembrança de algum evento traumático envolvendo ameaça à vida ou à integridade, como assaltos, sequestros, estupros ou acidentes graves. O problema afeta 6% da população mundial, 420 milhões de pessoas. Um medicamento que fosse eficaz contra ele poderia melhorar a vida de muita gente.

As substâncias capazes de apagar memórias ruins também poderiam ser usadas para tratar dor crônica. Por razões que a ciência ainda não compreende completamente, em alguns casos, mesmo depois que um ferimento físico já foi curado, alguns nervos continuam transmitindo sinais de dor na região, como se o corpo tivesse memorizado aquela dor. A técnica também poderia ser usada como um tratamento para a  dependência química. Isso porque o vício em drogas está relacionado à memória – à associação entre o uso da droga e o efeito que ela proporciona. Se a pessoa se esquecer do prazer que sente ao consumir a droga, fica mais fácil largar o vício. Num estudo realizado com ratos viciados em morfina, a inibição da proteína PKMzeta ajudou a curar a dependência dos roedores.

Em suma: mexer com as memórias pode trazer consequências muito boas. Mas também pode ser extremamente ruim. O Conselho de Bioética da Casa Branca já se manifestou sobre o assunto, apontando várias situações em que o apagamento ou a alteração de memórias pode ser uma coisa ruim, antiética ou imoral. Um bandido poderia recorrer à técnica para se livrar da culpa por ter praticado um crime, por exemplo. Governos poderiam preparar seus soldados para matar – ou para voltar a matar – sem conflitos emocionais. “Corremos o risco de falsificar nossa percepção e entendimento do mundo. Nos arriscamos a fazer com que atos vergonhosos sejam considerados menos vergonhosos, ou menos terríveis, do que realmente são”, diz o relatório.

Para a psiquiatra, psicanalista e bioeticista carioca Marlene Braz, a possibilidade de mudar ou apagar memórias poderia ter consequências até sobre o sistema jurídico. “Haveria uma tensão entre o direito individual de uma pessoa – que decidiu esquecer – e o direito da coletividade, já que, na prática, isso significaria subtrair evidências de um processo, já que não poderíamos contar com o testemunho daquela pessoa”, diz ela. Délio Kipper, professor de Bioética do curso de Medicina da PUC do Rio Grande do Sul, ainda aponta outros conflitos nessa área. “A modificação de memórias poderia induzir a mudanças nos testemunhos. É um caminho muito perigoso”, diz.

Até quem teria todos os motivos para alterar a própria memória vê essa possibilidade com desconfiança. Como a empresária paulistana Paula*, de 31 anos. Numa manhã de sábado, em 2005, ela saiu do quarto e viu manchas de sangue pela casa. Em desespero, tentou abrir a porta do quarto do pai, que sofria de depressão. “Eu batia na porta do quarto e ele não abria”, recorda. A empresária chamou a polícia e, quando a porta foi aberta, se deparou com uma cena que vai ficar gravada para sempre na sua mente. “Ele havia cortado os pulsos e se enforcado”, lembra. Sete anos depois, Cíntia admite que ainda não lida bem com as lembranças desse episódio. Mas diz que, mesmo assim, jamais tomaria um remédio para esquecer esse momento da sua história. “Minhas memórias estão dentro de mim para serem trabalhadas. Prefiro enfrentá-las a apagar essa parte da minha vida”.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

PARA SABER MAIS

Reconsolidation as a Link Between Cognitive and Neuroscientific Memory Oliver Hardt, Einar Örn Einarsson e Karim Nader Annual Review of Psychology,
2010 http://super.abril.com.br/ciencia/pilula-esquecimento-721071.shtml

De Héracles a Hércules: da Inscrição do Nome Herdado à Construção de um Nome Próprio

O herói Hércules, famoso por sua força e coragem sobre-humanas, foi assim chamado pelos romanos, originalmente na mitologia grega, chamava-se Héracles. Seu nome grego significa “glória de Hera”, e a escolha dele está diretamente ligada à origem deste semi-deus. Héracles era filho do deus Zeus com uma mortal, Alcmena. Quando o marido de Alcmena estava na guerra, Zeus se transformou nele para seduzi-la e desta união nasceu Héracles. O nome dado ao bebê foi uma escolha de Zeus, na tentativa de apaziguar o ódio de Hera, a esposa dele, porém sem sucesso. Zeus tentou tornar Héracles imortal, porém só conseguiu que ele adquirisse a força dos deuses, permanecendo mortal. O ódio de Hera pelo marido foi transferido para o filho dele eHéracles passou a ser perseguido por Hera, sendo alvo de diversos planos da parte dela para matá-lo. Seus famosos 12 trabalhos são decorrentes de um destes planos. Héracles libertou- se do jugo materno, ganhando o direito, a partir da intervenção paterna, de habitar entre os deuses do Olimpo. O significado do nome romano, pelo qual o herói é conhecido, diverge do original grego. Hércules significa “aquele que dispensa calor e claridade”. Não consegui encontrar o porquê desta mudança de significado mas podemos pensar que o corte romano com relação à herança cultural grega, faz também um corte da herança de uma mulher – esposa e mãe – para este homem, permitindo-lhe encontrar seu lugar entre aqueles cujos o pai havia lhe indicado previamente.

O percurso heróico deste semi-deus é o mesmo a ser percorrido por todos os mortais, no processo de constituição de um sujeito desejante. Necessário é a todo humano ser nomeado por um Desejo materno, e que posteriormente ele negue este nome, dando-lhe uma versão própria, a partir do crivo de leitura que o pai lhe oferece. Este processo se dá dentro da linguagem, sendo que a posição de um sujeito nela marca sua posição diante da vida. Dentro disso, o que dizer quando um ser que não faz uso da linguagem? Escolhe ou encontra-se impossibilitado de falar, escrever, articular gestos dentro de um contexto discursivo?

A lógica medicalizante que impera na atualidade enquadraria-o em uma nosografia e lhe proporia técnicas para instrumentalizá-lo, reparar déficits e readequar suas condutas. Separa o sujeito de seu sofrer, deixando de fora a relação que ele estabelece com o próprio sintoma (ESPERANZA, 2011). As explicações medicalizantes reduzem-no a um fator biológico e o tratamento tem como base a administração de psicofármacos (ROCHA e FERRAZZA, 2011; Untoiglich, 2006). Em tratando-se de crianças, este tipo de leitura acarreta resultados hiatrogênicos, em decorrência da especificidade do tempo da infância.

A Psicanálise trata estas questões sob outro viés, a partir da concepção de que o humano é “deficiente” por estrutura. Lacan afirma que “o Outro da linguagem possui um buraco fundamental que lhe é constitutivo” (22- R.S.I. – 1975 apud SNIKER & ANDRADE, 2010). No entorno deste buraco organiza-se uma estrutura, que constitui o sujeito do inconsciente. Este está submetido à lógica do significante, ou seja, ele é atravessado pela linguagem. Dentro desta concepção, Lacan (20 – mais ainda – 1985 apud SNIKER & ANDRADE, 2010) afirma que o analista intervém na estrutura. A estrutura preexiste ao sujeito, mas ela tem um tempo de instalação em determinado ser, no qual certas inscrições são realizadas dentro de momentos lógicos. E no caso de bebês ou crianças  nas quais tais inscrições ainda estão se realizando? Como o analista intervém, em um tratamento pela palavra, com alguém que ainda não está plenamente instalado nela?

Tal é o caso de uma criança que chegou aos três anos de idade: não fala, não se comunica, não responde, não se reconhece, não brinca, não tem imagem de corpo; suas reações diante da intromissão do outro eram jogar-se no chão, debater-se e gritar. Depois de um ano de trabalho ela caminhou muito com relação a esses nãos. Hoje ela está na linguagem, compreende o que lhe falamos, fala algumas palavras, escolhe objetos específicos e manifesta-se frente ao discurso parental, sente afetação em seu corpo, busca contato e demonstra prazer na troca com o outro. Tem começado a armar cenas do brincar, onde posiciona as pessoas e estabelece o roteiro que devem seguir. Solicita a mãe de uma forma imperativa, chora quando ela sai, circula em torno dela, com uma expressão que parece perguntar o que tanto ela olha no computador, ou fala no celular, e em alguns momentos chama-a em tom de súplica: “mã!”. Por outro lado, hoje esta criança se posiciona de forma a ela dizer não, diante da demanda do Outro. Responde, com veemência, na negativa, aos pedidos de seu Outro de que abandone as fraldas, as mamadeiras, de que se sente na sala de aula e aprenda os conteúdos pedagógicos, que coma de talheres e pare de pular e arrancar os pedaços das coisas, e que comemore seus aniversários. Quando encontra a mãe, solicita-lhe que toque em seu corpo em movimentos ritmados, sendo capaz de ficar muito tempo nesta atividade. O que é isso que ela faz? Que posicionamento é esse que ainda obstaculariza sua relação com o outro/Outro?

O que a faz vacilar diante de expectativas que parecem ser colocadas para ela, de modo que ela vai até um ponto, para em seguida reagir com agressividade afastando-se do que é esperado dela? Ainda estamos investigando, e por ora, nos deparamos com a escolha de seu nome, o qual mimetiza com o nome de todos dentro da família. Isso assomado a uma posição bastante narcísica desta mulher, faz-nos pensar o quanto ele pode estar situado como uma extensão dela própria. Este lugar combina com a falta de recalque encontrada nesta criança, que avança e retoma o que já havia ultrapassado, misturando presente, passado e futuro.

Movimento de separação necessário, mas dificultoso, em especial porque se repetiu conosco a posição decidida desta criança. Necessário foi cavar entrada de forma a não mostrarmo-nos por demais invasivos de modo que ela não precisasse defender-se da mesma forma. Foi então, a partir da inscrição materna, que iniciamos nosso trabalho. Na clínica da fronteira das palavras, há que se estender o fio do simbólico, por mínimo que ele seja, a partir de onde encontremos uma ponta para puxar. Esta do toque no corpo pareceu-nos a única que ficou de uma experiência prazerosa onde o Outro compareceu na missão de inscrever a palavra no corpo deste infans. Transformamos uma atividade repetitiva em um brincar ritmado, com pausas, alternâncias, ou seja, atrelados ao ritmo que a linguagem impõe. A palavra, trazidas por nós, enquanto representantes do Outro, era carregada de afeto e comparecia no momento em que afetava o corpo desta criança.

E é por aí que acredito que esta criança tenha entrado na palavra. A linguagem é uma estrutura que antecede o sujeito, dentro da qual todos nascemos. É necessário porém, uma virada por parte dele. Para que uma criança possa vir a habitar a linguagem, após ter sido habitada por ela, é necessário que algumas inscrições sejam realizadas. Jerusalinky (2011) diz que é a mãe (enquanto Outro) que introduz o bebê na linguagem, ao situar as fonações dele enquanto um chamado. Ao questionar o que ele quer quando escuta seu grito, questionando assim o enigma do desejo que supõe estar no bebê. É na  tentativa de responder a essa suposição que o bebê faz laço com o Outro. O bebê é capturado na prosódia materna, sendo tomado no funcionamento da linguagem muito antes de aprender a fazer uso dela. É engajado no circuito pulsional materno que se produz inscrição no bebê, a partir da afetação que ela lhe provoca em seu corpo. Jerusalinsky (2011) diz que a linguagem não se inscreve por si, para que o bebê seja convocado a se atrelar ao Outro, é necessário um endereçamento do representante deste Outro, o que Lacan (1969 – Duas notas sobre a criança) chamou de um desejo não anônimo.

No caso desta criança em específico, parece-nos que a falta de afetação por parte desta mãe com relação a este filho o fez não vivenciar esta experiência de ver a satisfação pulsional desta mãe implicado na relação com ele. Assim, fez parte do trabalho com esta criança escutar esta mãe, a fim de modificar algo nesta economia psíquica, e ao mesmo tempo, posicionarmo-nos no lugar de um Outro ortopédico, de modo a exercer esta função para esta criança.

Em crianças onde essa inscrição falhou é necessário retornar a este momento do engatamento da palavra ao corpo. Ali onde a palavra não comparece em sua função de comunicação e enunciação de um sujeito, a convocatória é realizada por meio da voz, do olhar, do gesto, da modulação de entonação do analista, variações que afetem os sentidos do infans (Jerusalinsky, 2011, p. 77). De acordo com Freud (1895 – Projeto para uma Psicologia Científica), as inscrições psíquicas são produzidas a partir de experiências. Nascemos com uma carência instintual que nos faz depender de um outro, semelhante e experiente, que preste uma assistência alheia, por meio de uma ação específica, eliminando estímulos e ocasionando uma satisfação impossível de ser alcançada por conta própria. Isso gera uma experiência de satisfação. É este adulto experiente que atribui ao choro do bebê uma intenção de comunicação, a partir da afetação que as ações do bebê ocasionam neste adulto, engajando-se subjetivamente nos cuidados que realiza, colocando seu saber inconsciente a serviço de fazer funcionar no bebê um corpo subjetivado. Isso o retira do registro da necessidade, e ele passa a funcionar no registro pulsional. Os traços que ficam inscritos desta experiência nãoguardam correspondência com a experiência em si, mas ficam registradas na forma de traços. Estes sofrem transcrições e retranscrições entre as diferentes instâncias psíquicas (Freud, 1896 – Carta 52 a Flies). Os traços são sulcos na superfície psíquica, que formam vias de facilitação, caminhos mais permeáveis à catexia, que acarretam tendências à repetição. Podemos pensar no caso de nosso paciente, no pedido insistente de que ficássemos tocando em seu corpo com movimentos específicos enquanto um traço.

Por outro lado, Freud coloca que nem tudo o que se inscreve no aparelho psíquico pode ser evocado. O esquecimento é indissociável à condição de um sujeito desejante. Entre um sistema e outro nem todas as inscrições são transcritíveis, Em outras palavras, em indivíduos onde se operou o recalque a consciência nada pode saber acerca das inscrições primordiais que fundaram o que se estabeleceu como o inconsciente.

A partir desta concepção, concordamos com Jerusalinsky (2011), que nos diz que seria catastrófico nos colocarmos diante desta criança para ensiná-la a falar, fazendo uma correspondência unívoca entre significado e significante, metodologia que exclui o ponto de entrecruzamento entre o código da língua e o enigma do desejo do Outro que comparece na fala do adulto direcionada à criança. A problemática decorrente desta forma de intervir é que ela reforça exatamente o que falhou na relação do Outro  primordial com esta criança. Uma mãe cuja libido não se engata em seu bebê, não consegue supor nele um saber acerca de seu desejo. Isso acarreta uma dificuldade em se reconhecer em nele (VORCARO, 2013), uma vacilação no processo de filiação e consequentemente uma dificuldade de pôr a trabalho seu saber parental acerca de como educar esta criança. Frente a essa vacilação, em vez de promover a educação de seu filho a partir de um ideal projetado sobre ele, “efeito da produção de um lugar numa história para um sujeito, em virtude da transmissão de marcas simbólicas advindas do passado” (Lajonquière, 2002, p. 49), os pais ficam à espera da resposta que ela oferece, invertendo a lógica educativa.

De acordo com Vorcaro (2013), o discurso psiquiátrico oferece uma resposta diante dessa falta de (re)conhecimento parental, proporcionando padrões de conduta, o prognóstico daquela patologia. Esse tipo de interpretação e  intervenção empurram para a destituição da filiação da qual a criança é proveniente, ela perde os traços identificatórios de sua tradição familiar e passa a ser filiada pela nosografia. Os pais, destituídos de seu saber, a partir da vacilação de seu desejo parental, guiam-se pelo saber anônimo do especialista.

Isso posto, de que forma nós da Psicanálise trabalhamos com esta criança? Ainda segundo esta autora, da mesma forma em que um psicanalista, ao realizar a leitura das formações do inconsciente de um paciente que está instalado na palavra, sem dispor de uma interpretação a priori, cujo sentido será dado apenas após a articulação com outros significantes, com o engajamento do sujeito em tais formações, passando a produzir associações a partir delas. É do que o analista escuta (ou lê) ao pé da letra do que é falado, que é possível se construir sentidos, a partir da polissemia significante. Na clínica da fronteira das palavras a criança dá a ver, em suas manifestações corporais, gestuais e nas emissões de seus gritos, seu particular modo de engajamento no estabelecimento do laço com o Outro. Necessário é que isso que se dá a ver seja tomado como enigma por um Outro encarnado, inserindo-o numa rede associativa. Diferente do primeiro caso, isso que se dá a ver não é o retorno do inconsciente recalcado, é o próprio inconsciente em constituição.

Não pedimos para que a criança associe, mas lemos o discurso que se produz no entorno das produções dela. Isso porque, de acordo com Jerusalinsky (2011), se um bebê, ao nascer, não dispõe de um aparelho psíquico constituído, é o aparelho psíquico da mãe que opera inicialmente. É a mãe que interpreta o que se passa com o bebê, interrogando-se diante do enigma que ele traz com seus atos, propiciando-lhe satisfação na medida em que o engata em sua economia libidinal. Mais tarde, ele terá condições de formular respostas, que estenderão sua rede significante, a partir da marca inscrita em seu corpo. Tal resposta é feita pela criança por meio do brincar. E então nos deparamos com outra ferramenta de trabalho do clínico que atua na fronteira das palavras: a construção de um brincar simbólico com a criança, articulando um lugar e um meio no qual ela possa formular e complexificar sua resposta ao Outro.

Assim, dessa inscrição inicial materna, é necessário um longo caminho da criança, no sentido de apropriar-se do código da língua e utilizar-se dele para sua enunciação. Podemos supor que nosso pequeno herói estava na primeira etapa apenas dessa empreitada. Tal qual Héracles, herdou um nome materno, porém tal nomeação não possibilitou-lhe a constituição de um sujeito singularizado, impedindo-o de seguir adiante, negando-o e fazendo dele uma versão própria, assim como Hércules, o que lhe possibilitaria constituir-se enquanto um sujeito desejante, faltante e falante.

Autora: Mônica Fujimura Leite

 

Referência Bibliográfica

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FREUD, S. Carta 52 a Flies (1896). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 281-287.

JERUSALINSKY, J. A Criação da Criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê. Salvador: Ágalma, 2011. 290p.

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LAJONQUIÈRE, L. Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação (1999). 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2002. 204 p.

ROCHA,L.C. e FERRAZZA, D.A. R. A Psicopatologização da infância no Contemporâneo: um estudo sobre a expansão do diagnóstico de “Transtorno de Déficit
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SNIKER, B.H. & ANDRADE, M.L.A. O Interdito do Incesto e o Nome – do – Pai. Uma leitura da psicose a partir do seminário R.S.I. Mudanças – psicologia da saúde. 18 (12). Jan-dez 2010, 30-35 p.

UNTOIGLICH, G. Consenso de Especialistas da área de saúde sobre o chamado “Transtorno por Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade”. Correio da APPOA,
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VORCARO, A. O Efeito Bumerang da Classificação Patológica da Infância. In: JERUSALINSKY, A. & FENDRIK, S. O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Orgs.) 2 ed. São Paulo: Via Lettera, 2011. p. 219-230.

Sintoma da Criança e Inconsciente Parental

IDENTIFICAÇÃO, AMOR, DESEJO E GOZO

O sintoma da criança está imbricado a algo do inconsciente parental (Lacan, 1969), uma vez que ela ocupa os lugares de objeto de amor, desejo ou gozo de seus pais (Flesler, 2007, p. 197). O mais saudável é que ela alterne entre essas posições, de modo que uma faça barra à outra. Quando uma criança faz sintoma então, penso que ela esteja situada em algum lugar dentro dessa estrutura deste casal em que não deveria. Algo ficou desarranjado, a típica cena da criança na cama do casal. Partindo desse pressuposto, gostaria de discorrer neste trabalho acerca das intervenções com os pais nos atendimentos das crianças que tomo em tratamento. Pergunto-me até que ponto posso intervir na mudança de lugar da criança dentro dessa tríade (amor, desejo e gozo). E a partir de onde isso deve ser tratado em uma análise pessoal desses pais?

 Ao longo desse ano estudamos o Seminário 9, sobre a Identificação, que me deu alguns elementos para pensar estas questões, articulando como se dão as inscrições significantes no infans a partir da intervenção desses dois personagens, mãe e pai. Partindo então na alternância de lugares entre essas três instâncias: amor, desejo e gozo, tentarei pensar como isso funciona e de que forma a criança responde sintomaticamente, a partir da idéia de que se constitui alienando-se a esses lugares propostos a ela por este casal.

Neste seminário Lacan afirma que “O amor é a fonte de todos os males (…) o amor de mãe é a causa de tudo” (p. 158). Por outro lado, ele nos diz também que do amor só se pode ser objeto, para ser sujeito, há que se desejar. Assim, se uma criança necessita, por um lado, ser alocada nesse lugar de objeto de amor, para dar entrada na existência, por outro, precisa negá-lo, para apropriar-se desta. Para que se constitua enquanto desejante, o sujeito precisa perder o objeto que supostamente o completaria (objeto na verdade nunca existido, a não ser na cena de completude que ele arma), encontrando-se, neste momento, com a frustração. E, a partir dessa cena inaugural, ele está condenado a, eternamente, desencontrar-se, ao buscar reencontrar-se com esse objeto (Lacan, 1962, p. 199-200). Essa primeira posição é possibilitada pelo significante Desejo Materno. Segundo Jerusalinsky (2001, p. 147), uma mãe coloca seu filho enquanto objeto de satisfação, atravessada pelo interdito da lei paterna, que atrela o gozo dela à lei simbólica. É consequência da forma como isso está inscrito pra ela, que seu filho será situado nas posições de objeto de desejo, amor ou gozo.

Flesler (2007, p. 197) traz que, para que essa alternância de lugares da criança opere é necessário que o desejo dos pais funcione entre eles, para além da criança. Ou seja, existe uma cena da qual ela está necessariamente excluída. Aqui posso começar a pensar nos casais que chegam a minha clínica, trazendo seus filhos com sintomas. Parece-me que esse desejo do casal não está colocado. Vejo mulheres que não reconhecem em seu marido o objeto de sua satisfação, cumprem as etapas do namoro, matrimônio e maternidade como um protocolo a ser seguido; outras mães que depois que têm o filho, ficam completas, deixam de desejar enquanto mulher; outras que posicionam-se no casamento de maneira infantil, colocando o marido no lugar do pai.

Quando aceito tomar uma criança em tratamento, objetivo possibilitar a ela sair deste lugar objetal. Segundo Laurent (apud Prado 2008) que seu corpo deixe de corresponder ao objeto a, objeto de gozo da mãe. Penso que, enquanto clínicos, além de realizar uma construção com a criança, seja necessário intervir também do lado dos pais, para abrir o espaço necessário que possibilite à criança se reposicionar, uma vez que a criança só vai até onde eles a autorizam. Este fato é inerente à condição do infans, que inaugura sua existência no mundo a partir das inscrições significantes oriundas da rede parental.

Lacan (1961, p. 136) coloca no Seminário 9 que para que o significante se inscreva são necessários três tempos: o primeiro de inscrição da marca, o segundo de apagamento e o terceiro de cerceamento de onde estaria a marca. É o apagamento do traço que possibilita o advento do significante, deste modo, ele não está colado a um significado positivado, este significado advirá somente a partir da articulação com outros significantes. Lacan diz que “o significante não presentifica um objeto” (…) mas “representa o sujeito para um outro significante” (p. 65), colocando-o numa disposição metonímica. Podemos perceber então que essa dinâmica caracteriza-se por uma alternância, num movimento de presença-ausência.

A inscrição da marca seria o traço unário, proveniente, como dissemos, do Desejo Materno. De acordo com Lacan (1961, p. 63), o traço unário é “um manifestante da diferença”. É a partir dessa diferença que o sujeito pode constituir o seu Ideal de eu, ou seja, sua primeira identificação à imagem que a mãe projeta sobre ele, a partir do desejo materno1. Por outro lado, para que prossiga a inscrição significante, conforme dissemos, o traço unário precisa ser apagado. Isso é realizado pelo significante Nome-do –Pai , que tem para o sujeito uma função de ancoragem, nominação, possibilitando a ele defender-se de permanecer objeto da mãe (Lacan, 1961, p. 62). Nas palavras de Lacan (1961, p. 82) “o acento do nome próprio do sujeito é depositado sobre sua função dedistinção, ou seja, não o cola a um significado unívoco”. Assim, o pai permite à criança desidentificar-se do que o significante do Desejo materno impõe a ela, permitindo-lhe abrir a cadeia significante. Lacan (1961, p. 145) diz que a criança, nesse processo deidentificação, coloca o objeto a em uma situação de alternância (presença-ausência) Esse objeto a é o que representa, quando presentificado, o falo. Ou seja, podemos pensar que é o lugar que a criança ocupa para a mãe, e que para não sucumbir a ele, precisa fazer esse fort-da.

Quando uma criança faz sintoma, algo desse processo não está acontecendo a contento. Seu sintoma é uma manifestação de seu particular modo de realizar esse enlace ao seu Outro. Estando engajada aos regimes de amor, desejo e gozo dos pais, penso que eles também têm que ser postos a falar, porém, este espaço de fala é diferente do oferecido num convite à análise. Flesler (2007) nos lembra que os pais devem ser convocados pelo analista da criança em momentos pontuais, quando se configurem enquanto resistência para o tratamento. São pontos de intervenção onde seja necessário “reinstaurar a falta onde ela falta, ou seja, onde encontramos uma falha na estrutura” (p. 196). Ela retoma Freud pra dizer que algo do gozo infantil dos pais está ancorado no filho, e que a resistência ocorre quando “na direção do tratamento de uma criança, se alcança um marco não balizado (…) na história específica do transcorrer estrutural próprio dessa criança e de seus pais” (p. 202). 

Ainda de acordo com a autora, o influxo analítico sobre os pais se dá em um ato que opera na “redistribuição e reenlaçamento de gozo que não são redutíveis à interpretação” (p. 201). Conforme dissemos, uma criança não pode prescindir desse lugar de objeto para seus pais, porém importa que ele seja de uma alternância, ou seja, de uma “extração renovada de gozo fora do corpo da criança” (p 199). Para isso, me parece necessário então, entrar na história dos pais, a fim de entender em que posição situam-se com relação à parentalidade e em que lugar esse filho entra na relação do casal. A partir daí, intervir no sentido de, por exemplo, restituir a presença do pai na cena da mãe com a criança, dar validade à palavra dele; ou autorizar a mãe a faltar, não saber, declarar-se cansada, pedir ajuda, arranhando a imagem ideal da mãe – toda. Provocar pequenas hiâncias entre o saber inabalável dela sobre seu filho, dando lugar aos maus entendidos inerentes a qualquer relação; questionar sua insubstituicionabilidade na manutenção da dinâmica familiar; fazer barra às intervenções invasivas no corpo, na palavra e ações da criança; autorizar os pais a darem vazão a sentimentos e agirem a partir deles pra fazer corte ao filho, interditá-lo quando necessário; não adivinhar tudo o que seu filho quer sem que ele precise dizer.

Penso que em todos esses exemplos vamos na direção de pôr em funcionamento a inscrição significante trazida por Lacan neste seminário, a partir do atravessamento da lei paterna sobre o desejo materno, promovendo a alternância presença-ausência no lugar da criança. Deste modo, intervindo na relação dos pais com a criança, de modo a fazer barra à fixação da criança nesses lugares de amor, desejo ou gozo, possamos abrir um buraco. Apostamos então que esse lugar vazio possa ser ocupado pelo casal, a partir de uma redistribuição da libido. Essa segunda etapa só será abordada pelo analista da criança se os pais o autorizarem, e talvez, esse momento, dependendo do caso, seja propício a um encaminhamento para uma análise pessoal dos pais.

 

Autora: Mônica Fujimura Leite

1“É a partir dessa pequena diferença, enquanto é a mesma coisa que o grande I, O Ideal de eu, que se pode acomodar todo o propósito narcísico; o sujeito se constitui ou não como portador desse traço unário” (Lacan, 1961, p. 171)

 

Referência Bibliográficas

Flesler, A. A Psicanálise de Crianças e o Lugar dos Pais. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Jerusalinsky, J. A Criação da Criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê. Bahia: Ágalma, 2011.

Lacan, J. A Identificação: Seminário 1961-62. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.

Lacan, J. (1969). Duas notas sobre a criança (S. Sobreira, trad.). Revista do Campo Freudiano, nº 37, 1986

Prado, A.C.A.L. Clínica Psicanalítica com Crianças: Especificidades. CLaP – Aula de 17 de junho de 2008.

Repetição e Lugar do Analista

Ao estudar o tema da Repetição na Psicanálise ao longo desse ano, verificamos que ela faz parte da estrutura do sujeito, estando atrelada ao fantasma e ao sintoma. Desta forma, é material de trabalho numa análise. Neste percurso, ganhou especial destaque para mim o “objeto a1”, que está diretamente relacionado ao conceito e que também comparece num outro estudo do qual participei, que discorre sobre os Quatro Discursos de Lacan. No discurso analítico o analista ocupar o lugar de “objeto a”. A pergunta que desenvolvo ao longo deste trabalho é acerca desse objeto nessas duas posições: a passagem do analista, de “objeto a” (objeto-mais-de-gozar), para “objeto a” (sustentador da função objeto causa de desejo), e partir disso, pensar o trabalho do analista com a Repetição.

Para isso, considero ser necessário fazer um percurso com o “objeto a”, tanto na Repetição quanto no Discurso do Analista.

1) A Repetição é constituinte do Sujeito

Lacan (1964/1985) pontua que na Constituição de um Sujeito, ao ser marcado pelo Outro, a linguagem faz um buraco na estrutura e o sujeito perde algo, que ele denominou de “objeto a”. A partir disso, ocorre uma divisão entre o sujeito e o objeto de satisfação. Isso produz uma desorientação; no humano a pulsão não possui um objeto unívoco, como no instinto do animal. O sujeito, a partir disso, fica para sempre dividido2.

É em função dessa separação que existe a repetição; na tentativa de reencontro desse completamento. Porém, nessa busca incessante, o que se encontra a cada vez é diferente da anterior. Quando se relança a necessidade, entre o que se esperava e o que se encontra, formasse uma abertura, que funda a repetição.

2) A repetição está atrelada ao sintoma e ao fantasma

Por outro lado, essa experiência de perda não é somente do lado do sujeito. Para ser marcado pela linguagem, o significante é retirado do campo do Outro, deixando-o com uma falta3. O Outro, quando fala, deixa a marca de sua falta. Esse primeiro traço seria o equivalente ao Desejo Materno, o primeiro com o qual o ser é nomeado, a partir de identificar-se com o que falta ao Outro. Assim inicia a construção de seu fantasma.

Como uma paciente que se queixa de que não consegue dar seguimento aos projetos, fica estagnada. E diz que quando criança sua mãe perguntava se ela ia viver pra sempre debaixo de sua saia. A mãe tem um cargo de gerência “e movimenta tudo”. Ou outra que considera que todos conspiram contra ela, e diz que em sua infância sua mãe falava mal dela, nada do que ela fazia era bom. Ou ainda outra que chega sentindo-se cobrada pelo marido e pela chefia, refere que seu pai dizia que ela o cobrava, pedia coisas demais. Cristalizado ali em sua posição de objeto, faz sintoma, inibição ou angústia. Disso o eu nada sabe.

A criança deseja o desejo do Outro, e se coloca, num primeiro momento, enquanto objeto que completa o Outro, o objeto a. Ao mesmo tempo, a criança joga com a possibilidade de o Outro perdê-lo. Joga com a ausência de seu ser para ver a reação do Outro, colocando-se como objeto causa de desejo do Outro (Lacan, seminário 11 apud Rabinovich, p. 79, 116, 2000). Vide as crianças que se perdem nos mercados, ou que brincam de morrer, ou com a própria morte. Uma paciente que dizia, em sua infância, construir cenas de suicídio para ver o que acontecia. Muitos desejos suicidas passam por aí, os pacientes ficam imaginando como as pessoas lidariam com sua morte, sentiriam falta, não sentiriam?

3) Lugar do analista e o trabalho com a repetição

Conforme vimos, a repetição é decorrente desse processo de estruturação do sujeito, por isso Lacan coloca que não é algo de que se possa ser curado. Por outro lado, a repetição deve ser não só considerada, mas também incluída no trabalho da análise.

A partir disso, como se trabalha com a repetição? Essa questão será pensada a partir do lugar do analista nos discursos propostos por Lacan. De acordo com Lacan (1969-70/1992) o agente, no discurso do analista4, é o objeto a5.

Pensando então na pergunta colocada no início de meu trabalho, tenho condições de situar agora que o primeiro “objeto a” a que me refiro, diz respeito ao lugar que o analista, quando não ocupando essa posição, em seu processo de constituição de sujeito, se colocou enquanto objeto mais-de-gozar, na tentativa de completar seu Outro. Já o segundo “objeto a”, refere-se a quando ele ocupa a posição de analista, sustentando o semblante do objeto causa de desejo (FLESLER, 2007, p. 26). Nessa posição, o seu desejo enquanto sujeito não opera. Segundo Rabinovich (2000, p. 14-15), o psicanalista “[…] deve-se oferecer vazio para que o desejo do paciente – (…) o desejo do Outro – se realize […] através desse instrumento […] que é o analista enquanto tal”.

O lugar ocupado pelo analista, sendo um vazio, possibilita que o analisando projete sobre ele a sua posição enquanto objeto de seu Outro6. Como um paciente que se queixava de que eu não era clara, em minhas orientações, não era compreendido por suas esposas, das quais se separou, da mesma forma que não se sentiu por mim, e também me abandona. Ou outro paciente que diz ter esquecimentos e passa a esquecer o horário da análise. Ou ainda outro de sete anos que me diz que preciso urgente arrumar um namorado (para que ele seja interditado).

Lacan (1967-68/2003) diz que na entrada em análise, o analista é posicionado no lugar de suposto saber. Ele sustenta essa posição por meio de semblante, pois sabe que não o é.

No discurso do analista o saber inconsciente (S2)7 ocupa o lugar da verdade. Na direção da cura, o analista questiona as teorias e respostas prévias que o analisante traz. Como uma paciente que dizia que precisava mudar de emprego, de casa, de cidade, e eu pergunto o que precisa mudar? E ela diz que é ela. Ou outra que diz sempre achar que os namorados estão interessados em outras mulheres, mais velhas, mais inteligentes, mais experientes. Pergunto de quem é esse ideal de mulher, ela diz que é dela. Ou pôr questão nos diagnósticos e explicações com que os pacientes chegam: “isso é do TDAH, os Borderlines são assim. É mesmo? Como é isso? Assim como?”.

A intervenção do analista é no sentido de fazer o analisando se intrigar com a repetição: Como uma analisante que achava que os homens sempre a trocam por mulheres mais bonitas, diz que tem problemas com sua imagem porque sempre lhe disseram, desde a infância que não era bonita, melhorou na adolescência, qdo encorpou. Mas que não adiantava dizerem que era bonita, se antes diziam ser feia.

Pergunto porque ela, tendo recebido as duas nominações, ficou com a de feia. Com isso, o analista visa abrir para um sem sentido, desconstruindo as respostas sintomáticas dadas pelo paciente até então. Quando é possível uma nova ligação por parte do analisante, são produzidos novos arranjos significantes, modificando a construção do fantasma e a posição do sujeito diante do que o faz sofrer (sintoma).

Porém uma análise não e a produção de mais saber. O analista coloca um questionamento no saber, não coloca o seu próprio saber (“douta ignorância”). O trabalho analítico produz e aponta para a possibilidade de a perda se introduzir novamente, destampando o buraco que o sintoma tamponou. O analista, fazendo semblante de objeto causa de desejo, capta o sujeito como objeto (Rabinovich, p. 78, 2000).

Interrogar o sujeito: “você quer fazer o mestrado? Por que você se casou com ele? O que você quer com o emprego?” implica em possibilitar ao analisante fazer barra a responder à demanda do Outro (Kruel, 2007) (“meus pais investiram em mim, preciso dar um retorno”, “meus pais são rígidos, não posso decepcioná-los”, “minha mãe quer que eu seja independente financeiramente”), e se questionar porque ele deu essa resposta ao que imaginarizava que o Outro queria dele (aí aparece a posição de objeto na qual se coloca). Para depois poder vir a saber que o Outro não pediu nada, ele se pôs nessa posição. 

“A meta da Psicanálise, para Lacan, é que o sujeito obtenha certa margem de liberdade em relação ao lugar que ocupou como objeto do desejo como desejo do Outro” (Rabinovich, p. 133, 2000). A queda do objeto condensador de gozo (mais-de-gozar) implica num reconhecimento da castração do Outro. Saber insabido, tamponado até então pela construção fantasmática. O objeto passa a ser então posicionado enquanto causa de desejo. O analista situasse não mais como fonte do conhecimento, mas instrumento de desvelamento da verdade (Lacan (1967-68/2003).

O analisante, por sua vez, ao ser confrontado com o silêncio do analista, em responder a sua demanda, encontra-se com o ponto de origem de seu desejo, reencontrando-se com sua própria divisão originária. No final da análise, o sujeito suposto saber é destituído, e o analista é reduzido à função do objeto a pelo analisante, destinado a ser rejeitado por ele.

Lacan diz que o final da análise não é a identificação ao analista, nem tampouco a identificação ao inconsciente (Outro), mas a identificação ao sintoma. Produzir um saber-fazer com ele (Domb, p. 18, 1997). Lacan coloca que o final de análise produz um analista. Isso vem ao encontro do que falei anteriormente, de que ele leva ao encontro com a castração no Outro, podendo assim, abrir mão da tentativa de completá-lo, ou seja, um reposicionamento diante de seu lugar de objeto.

Penso que a escolha de ocupar o lugar de analista possa ser considerado um dos caminhos do rearranjo sintomático: o de conduzir outros no percurso analítico realizado por ele próprio. É na medida em que o analista sabe o que é o desejo que ele pode suportar ocupar o lugar do objeto causa de desejo do analisante. Assim, um analista pode sustentar a função de semblante de objeto a, que é singular em cada processo de análise que conduz8. Fazer semblante implica em ocupar um lugar, sem acreditar ser aquele no qual o paciente o coloca.

Isso não significa que um analista ocupe o tempo todo essa posição, quando um analista apresenta um trabalho, como este, se põe no lugar de analisante. Assim, Domb (p. 16, 1997) nos lembra que “existe um final de análise a cada vez que um analisante senta-se para exercer sua prática de analista”.

 

Autora: Mônica Fujimura Leite

1 Objeto a: objeto causa de desejo: quando o objeto se ausenta, presentificação da falta. objeto mais-de-gozar: objeto do gozo, quando presentifica-se em um objeto (sintoma, carro, filho, profissão, namorado). Caso se fixe, obstrui o buraco necessário para o movimento do desejo. Importa que ele alterne entre essas duas posições, num movimento dialético de presença-ausência (FLESLER, 2007, p. 26).

2 A fundação do Inconsciente é ilustrada pelo discurso do Mestre2 . Neste, o S1 (traço unário), ao incidir sobre S2 (o saber já constituído), fazendo-o trabalhar, faz surgir $ e também uma perda, o objeto a. $, o sujeito dividido, emerge na falha, na lacuna entre um significante e outro (Dias, 2008). Citando Lacan, “no nível mais elementar, o da imposição do traço unário, o saber trabalhando produz, digamos, uma entropia.” (LACAN, 1969-1970/1992, p.46).

3 O sujeito é nomeado pelo Desejo Materno (?). A partir desse significante primordial, se ordena uma cadeia. A necessidade passa pelo significante e a partir daí constitui-se a demanda. O traço unário é constituído dessas marcas que fizeram parte da história do sujeito, e têm potencial de vir a ser significantes. Porém eles têm um potencial de significação, não é fixo, há sempre possibilidade de novos arranjos. A construção do fantasma se dá na articulação dessas inscrições. (Lacan, 1961-62/2003).

4Repetição e Lugar do Analista

5“É como idêntico ao objeto a, quer dizer, a isto que se apresenta ao sujeito como a causa do desejo, que o analista se oferece como ponto de mira para (…) a psicanálise (…) ela envereda pelos rastros do desejo do saber” (p. 112).

6“O psicanalista é esperado no lugar do objeto a do paciente, na sua relação com o desejo do Outro histórico desse paciente” (Rabinovich, p. 84, 2000).

7 O S2 é um conjunto de significantes que formam uma rede essa rede forma um saber. Um saber sem sujeito. O inconsciente é uma cadeia significante que não pertence a ninguém, o sujeito só pode existir em relação ao A, que lhe é prévio.

8 Lacan (seminário 10) diz que um sujeito só se torna objeto causa de desejo depois que o Outro o perdeu (abrir mão – ou cair da posição – de ser o objeto que completa o Outro) (Rabinovich, p. 55, 77, 78, 2000)

 

Referência Bibliográfica

Dias, M.G.L.V. Ato Analítico e Final de Análise. Fractal: revista de psicologia, v.20, n.2, p.401- 408. jul/dez 2008. Disponível em: http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/92. Acesso em 17/11/2016.

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Kruel,S,S. Final de análise. Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0102-
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Considerações Sobre a Educação Inclusiva: Reflexões Psicanalíticas a Respeito da Educação Inclusiva

RESUMO:

A partir da reflexão sobre o “Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade” criada pelo governo em 2003, cujo objetivo é a escolarização de alunos com necessidades educacionais especiais nas escolas e classes comuns da rede regular de ensino, este artigo consiste em refletir a respeito desta Educação Inclusiva com crianças psicóticas e autistas, utilizando o referencial freudiano-lacaniano. Estas crianças podem se beneficiar deste programa se haver reformulações na escola para incluir quem está excluído, questionando o ideário político pedagógico. Reformulações que exigem mudanças de espaço físico, de conteúdos programáticos, de ritmos de aprendizagem e uma maior preparação do professor, ou seja, as mudanças consistem no tratamento do Outro, que se baseia na organização e ajuste constante do agenciamento simbólico com a finalidade de tornar possível uma ação do coletivo. A importância disto reside em explorar certas possibilidades, particularmente a de colocar nolugar outra Alteridade que seja alternativa ao Outro primordial do sujeito, possibilitando assim que as crianças se beneficiem das contribuições que o laço social proporciona,considerando-as como sujeito do desejo para que então possa ver seu aluno em sua subjetividade.
Palavras – Chaves: Psicanálise. Educação Inclusiva. Psicose. Autismo. Tratamento do Outro.

INTRODUÇÃO.

Em 2003 foi iniciado o “Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade” cujo objetivo é a implantação da política de educação inclusiva nos municípios brasileiros. Este Programa consiste em escolarizar alunos com necessidades educacionais especiais nas escolas e classes comuns da rede regular de ensino e apoiar a formação de gestores e educadores para efetivar a transformação dos sistemas educacionais em sistemas educacionais inclusivos.

O Programa baseia-se no princípio da garantia do direito dos alunos com necessidades educacionais especiais de acesso e permanência, com qualidade, nas escolas da rede regular de ensino. A Secretaria de Educação Especial (SEESP) publicou no site do MEC os “Conceitos da Educação Especial – Censo Escolar 2005” em que define quem são considerados os alunos com necessidades educacionais especiais:

Apresentam, durante o processo educacional, dificuldades acentuadas de
aprendizagem que podem ser: não vinculadas a uma causa orgânica
específica ou relacionadas a condições, disfunções, limitações ou
deficiências, abrangendo dificuldades de comunicação e sinalização
diferenciadas dos demais alunos, bem como altas habilidades/superdotação.
(http://portal.mec.gov.br/seesp/index.php?option=content&task=view&id=1
14).

Este programa procura contemplar todas as crianças ao direito de acesso à educação, um avanço importante uma vez que, a escola, conforme Kupfer (2000), atribui um lugar social para a criança moderna dando-lhe identidade. É por isso que a palavra criança está indissoluvelmente ligada ao escolar. “A História sublinha então uma dimensão da infância que é dada pelo campo social, que a enquadra, lhe dá significação e interpretação. O campo social também define um tempo para essa infância, que é justamente o da escolarização obrigatória.” (KUPFER, 2000: 36).

O ato de educar, parafraseando a autora, está no cerne da emergência de um sujeito (2000: 35). É por meio deste ato que o Outro Educador se intromete na carne do infans e o transforma em linguagem. As marcas do desejo do adulto na criança são inscritas pela via da educação. Assim, o ato educativo se refere a todo ato de um adulto dirigido a uma criança, filiando o aprendiz a uma tradição existencial e permitindo o reconhecimento no outro.

Porém, tratar a política de educação inclusiva como resposta à demanda educativa de normalizar os ditos anormais, mascarados com a denominação de “alunos com necessidades educacionais especiais”, é correr risco de transformá-la em instrumento de segregação, uma vez que sob efeito do discurso universalizante, a forma de entrada da criança na escola é imposta sem levar em conta sua singularidade, tomando-a a partir de uma vertente deficitária em que a dimensão de sujeito é excluída. Isto pode acontecer justamente porque os direitos de cidadania não protegem a criança contra a exclusão, como também não é só porque a criança com necessidades educacionais especiais está na escola de ensino regular que estarão garantidas condições de convivência e inserção no laço social.

Souza et al. (2000) ao analisar documentos e textos oficiais nos últimos seis anos, cujo tema é inclusão social e escolar de pessoas surdas, apontam algumas perspectivas distintas em relação ao discurso oficial dos enunciados proferidos e editados pelo MEC. Um dos textos é o decreto presidencial de 20/12/99, que “dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência”, que, parafraseando as autoras, as crianças que são contempladas nesta política, que no referido texto, trata-se especificamente as crianças surdas, são tratadas como deficientes. E, ao definir um conjunto de pessoas como deficientes, ao invés de reconhecê-las como diferentes, os formuladores do discurso as tomam como aquelas que têm déficit em relação a nós e não pela falta constitutiva de cada um de nós; criando assim, a perspectiva de normalização, que remete a um ideal psicopedagógico de adequar os meios aos fins educativos.

As autoras apontam uma outra perspectiva que subsidia o reconhecimento da diferenças ao invés da fala oficial sobre a inclusão:

Reconhecer diferenças não significa, como sugeriria uma leitura equivocada,
construir um discurso justificador das (e resignado em face das) distinções
sociais, incluindo as diferenças de classe. Reconhecer diferenças significa
recusar o discurso da normalidade e as práticas de normalização, que
pretendem salvaguardar a alegada pureza das identidades que ela parece
englobar. Reconhecer as diferenças significa exigir políticas públicas que
levem em conta os direitos dos segmentos sociais diferenciados, e recusar
políticas públicas assistencialistas e práticas que, em nome da inclusão,
negam direitos essenciais, como o direito dos surdos a uma língua própria.
(SOUZA et. al. 2000: 93)

Enfim, não se pode negar que este foi um dos grandes avanços na implementação de políticas públicas, mas, se não for bem elaborada, com pré-condições para que as crianças sejam atendidas e com acompanhamento das equipes, os efeitos podem ser desastrosos.

Ressaltamos também que, apesar da importância da educação para a criança, Freud em “Análise Terminável e Interminável” (1937: edição eletrônica) diz que “educar, ao lado de governar e psicanalisar, é uma profissão impossível”, uma vez que as pulsões sexuais são ineducáveis. O autor aponta que há limites na ação educativa, pois se chega sempre a resultados insatisfatórios, afirmando que o instrumento de ação do educador não é tão onipotente quanto se supõe.

No caso de crianças autistas ou psicóticas cuja posição é refratária às normas sociais e de rechaço ao Outro parece ser o extremo deste “impossível de educar”. Como então sustentar o trabalho da educação especial inclusiva, em que neste fio tenso situam em cada ponta o universal e o singular, o ideal “da escola para todos” e a particularidade do caso a caso? Quando e como ao inserir a criança na escola podemos encontrar tanto resultados terapêuticos quanto devastadores?

Por isso se faz necessário uma discussão e acompanhamento minucioso de cada caso com os professores e equipe de saúde, tanto no que se refere à questões sobre o tratamento quanto sobre a possibilidade ou não de escolarização dessas crianças. Kupfer e Petri, (2000:117) complementam: “toda inclusão de crianças psicóticas e autistas precisa ser cuidadosa e acompanhada, podendo não ser recomendada em alguns momentos mais problemáticos da vida de uma criança.”.

De acordo com as autoras, para que fosse criado um programa que tem como objetivo a inclusão, supõe-se que as crianças especiais existem porque há diferenças “naturais” entre elas. E que, se elas estão fora da escola é porque há um preconceito social a respeito da diferença. Em outro artigo, Kupfer (1997) afirma que a educação regular exclui os diferentes e que as práticas pedagógicas adotadas pelas escolas produzem essa nova categoria de crianças, excluídas do sistema regular de ensino. “Elas se tornam fracassadas escolares a partir do modo como a escola aborda, ataca, nega e desqualifica o degrau, a diferença social, o desencontro de linguagens entre as crianças de extração pobre, de um lado, e a escola comprometida com outras extrações sociais, de outro.” (1997:53).

Afirmam ainda que a modernidade criou a criança especial, produzida no e pelo discurso social escolar. A linguagem possui o poder de criação, contornando um Real e passando a dizê-lo, nomeando-o, ou seja, “uma rotulação que cria o objeto nomeado” (2000:111). O discurso escolar tem seus pontos de referências identitários nesse contorno que a ajuda a definir esse não-escolar, tanto é que algumas escolas não aceitam a inclusão escolar com o argumento de que se não podem aprender, o que farão na escola?

Kupfer e Petri não tiram a razão deste argumento, embora não concordem, propondo desta forma uma reformulação da escola para incluir quem está excluído, questionando o ideário político-pedagógico. Reformulação que exige mudança de espaço físico, de conteúdos programáticos, de ritmos de aprendizagem e uma maior preparação do professor. Neste mesmo texto “Por que ensinar a quem não aprende” as autoras (2000) discutem a respeito da inclusão e de muitos casos de insucesso desta empreitada, no âmbito principalmente da psicose e do autismo. Com a finalidade de melhor compreensão do quão delicado é este tema faz-se necessário discutir a respeito de como pode ser orientada a inclusão de crianças psicóticas e autistas, interrogando quem são as crianças especiais que se supõe ser incluídas. Para que se possa constituir-se como sujeito é necessário o convívio com os outros, fazer laço social através deste enodamento com o outro em busca do ordenamento simbólico. E com crianças autistas e psicóticas isto não se dá de maneira que possibilite essas inscrições. Então, como se dá a constituição de crianças psicóticas e autistas?

EXISTÊNCIA E CONSISTÊNCIA DO OUTRO NA PSICOSE E NO AUTISMO.

No início de sua vida, o bebê situa-se no intervalo de dois significantes: o desejo dos pais e o sujeito do desejo. Ele é submetido ao Outro materno, sendo fundamentalmente objeto deste, e tendo com ele sua primeira relação com o Outro, independente dele ser objeto de gozo ou de desejo. A mãe coloca seu filho no lugar do objeto imaginário com o qual o bebê identifica-se para preencher o desejo materno, deste modo, a mãe acredita ter o falo (e possui o significante desse desejo: o filho), isto é, ela acredita ser completa, que nada falta e este, acredita sê-lo: a criança realiza a presença do objeto a na fantasia materna. O bebê neste lugar de objeto sutura no Real, seu corpo é tomado como real na fantasia do Outro Primordial, apaziguando o fantasma materno; a criança cede para o Outro, se colocando como objeto correspondendo a alienação.

Esse momento é importante para o bebê, em que a mãe interpreta, traduz, atribui significação, isto é, supõe um sujeito e procura dar conta das necessidades desta criança que é totalmente dependente; sendo este, o primeiro ato do Outro, que põe sob seus significantes infans, submetendo-o ao seu saber. A mãe com isto recorta o corpo da criança e estes objetos, cuja extração se operou, será capaz de modo imediato e direto provocar um esvaziamento ou uma falta na criança, esta operação simbólica, segundo Jerusalinsky (1997:78), seria o discurso materno.

Ou seja, a linguagem atua também como marco constituinte do ser, esclarece Mariotto, necessária para que a relação de um a outro não se perca na violência imaginária. Sua existência é condicionada a partir de dois tipos de alienações: imaginária (que compõe sua identidade) e simbólica (que o introduz na cultura). “O reconhecimento do Outro, como mais além do semelhante, é condição para que o sujeito seja pelo outro reconhecido” (2007:58).

Para Lacan (1964:178), “o sujeito provêm de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do Outro, sendo determinado pela linguagem e pela fala, isto quer dizer que o sujeito in initio, começa no lugar do Outro, no que é lá que surge o primeiro significante” (ibid., 187). A importância disto é que, não somente a imagem ideal do corpo é oferecida, como também o marca perpassando-o pela libido, ou seja, pelas pulsões sexuais que o percorrem e nele entram pelos orifícios corporais, deixando marcas do gozo do Outro.

Porém, é necessário que a criança não sature, para a mãe, a falta em que se apóia seu desejo. Jacques – Alain Miller (1998) considera que a mãe só é suficientemente boa se não o é em demasia, se os cuidados que ela dispensa à criança não a desviam de desejar enquanto mulher. Lacan (1969-1970) diz que a mãe é como um crocodilo, que abriga dentro de sua boca a criança e o que mantém a bocarra aberta, o que a salva, é o falo, significante de uma falta; é ele quem intercede em favor do sujeito, salvaguardando-o de sucumbir ao gozo total do Outro, fazendo com que o sujeito sustente o seu próprio desejo, não permitindo que o crocodilo não engula a criança.

Para que o desejo possa emergir no bebê, é necessário que ele se veja separado da mãe e que a partir desta separação, ele lance mão de outra coisa. O pai é o possuidor do falo – objeto de desejo da mãe e também de sua falta – e em conseqüência disto, o bebê ao ver que há alguém que satisfaz a mãe, perde, assim, a sua relação privilegiada e tenta identificar-se com aquele objeto. A metáfora paterna aponta o objeto de desejo para o bebê, que passa a desejar deixando assim a sua posição de objeto da mãe, registrando a falta.

É por meio da metáfora paterna e de seu mecanismo fundamental, o recalque
originário, que a criança efetuará uma substituição significante, colocando
um novo no lugar do significante originário do desejo da mãe. À medida que
o significante originário é substituído pelo novo, automaticamente ele é
recalcado, passando para o inconsciente, o que permite de fato à criança
efetivar a renúncia ao objeto inaugural de desejo, tornando inconsciente o
que antes o significava. (ARAGÃO E RAMIREZ, 2004).

A autora Sônia Alberti complementa:

(O bebê) Para desejar já não é objeto, mas sujeito, necessariamente
identificado ao pai – em nível do ser – o sujeito que quer ter o falo pra
satisfazer a mãe. Esse pai da identificação primeira (e que também Freud
refere em 1921) só opera como tal se houver a possibilidade de uma
identificação simbólica, donde Lacan dizer que trata de um significante, um
traço que a ele equivale, de forma a presentificá-lo ali onde não
necessariamente está a realidade. (…) O Outro é barrado pelo Nome-do-Pai,
que nele inscreve a lei do desejo: desejo de ter o falo. (ALBERTI, 2002).

Miller (1998) diz que a metáfora infantil do falo só é bem sucedida ao falhar, se não fixa o sujeito à identificação fálica e se, ao contrário, lhe dá acesso à significação fálica na modalidade de castração simbólica, preservando o não-todo do desejo feminino, não recalcando na mãe, seu ser mulher. Para ele é essencial que a criança divida o sujeito feminino entre mãe e mulher, amor e desejo, e que o Pai humanize o desejo da mãe, tomando a mulher como causa de seu desejo. Enfim, a metáfora paterna remete a uma divisão do desejo, fazendo com que o bebê não seja tudo para o sujeito materno, possibilitando, deste modo, que a criança deseje e que assim, exista.

Em suma, são várias as funções que o Outro assume na vida da criança:

Assim, constatamos as múltiplas faces do Outro: Outro absoluto, em termos
de uma exterioridade absoluta, aquilo que não pode ser dito ou apreendido
pela palavra; o Outro da alienação, como lugar onde o sujeito encontra
sentido para si e onde se petrifica; o Outro da separação, que se refere ao
limite que faz a falta de significante, fazendo desta carência a exigência de
trabalho por parte do novo ser para dar sentido a si mesmo; e, por último, o
Outro primordial que nada mais é que a presença real – outro – que encarna
as funções de alienação e separação. (MARIOTTO, 2007:58).

Segundo Laznik-Penot (1997; 1998), em casos de autismo há a ausência desta relação com o Outro, a sua não sustentação, pois para que se feche o circuito pulsional, é necessário um outro concreto para que a criança possa se fazer objeto desse outro, para que assim, o campo do Outro possa se abrir. No autismo, sem Outro não haveria imagem nenhuma em relação a qual o infans pudesse demandar reconhecimento. Não haveria aí um Outro que investisse de libido o corpo do bebê, ou seja, um Outro que, a partir de sua falta, recortasse o infans à imagem do objeto de desejo do Outro. Novamente, esta autora afirma que os adultos do entorno veriam a criança somente ao nível da necessidade, o que produziria o não-olhar muito relatado naqueles denominados de autistas (Laznik-Penot, 1997; 1998; 2000).

Sem este encontro com o Outro, o corpo do autista não faz bordas, seus orifícios corporais não funcionariam como zonas erógenas, não tendo a noção de dentro e fora, sem a unidade imaginária corporal.

É um corte que faz aparecer duas faces: dentro e fora. Corte que o
significante promove, pois é “só em relação ao Outro, enquanto há lá esta
alteridade, que se pode tratar de distinguir um avesso e um direito” […] O
encontro com o Outro, com o significante, como não promove um corte, não
instala um dentro e uma perda, joga o sujeito numa perda infinita, onde
sacrifica seu corpo como dejeto. (KOST, 1994 p.303)

É o significante que promove o corte, do simbólico, que divide a borda ao meio, e neste corte, o “objeto sofrerá Ausstoung (expulsão), delimitando uma Einbeziehung (inclusão). Fora e dentro. De um lado, o real, como o que subsistirá fora da representação. Dentro uma representação constituída de uma percepção primeira: houve um objeto que satisfez (Bejahung), que existe e que pode ser encontrado.” (KOST, 1995). Essa extração do objeto que o significante se amarra, a partir do que foi perdido. 

Já a psicose resulta das relações do sujeito com o significante Nome-do-pai; este processo de metáfora só consegue assegurar sua função estruturante, com relação ao desenvolvimento psíquico da criança, ao se desenvolver sobre base do recalque originário do significante do desejo da mãe. Quando o recalque originário não se dá, todo o processo de metáfora do Nome-do-pai se compromete, pois a abolição deste significante – significante Nome-do-pai – pode especificar a indução dos processos psicóticos, ou seja, quando se rejeita o significante do Nome-do-Pai para fora do registro do simbólico, fracassa a metáfora paterna, e essa falha na operação de castração, conferiria à psicose sua condição essencial; Lacan utiliza o termo foraclusão para descrever este processo. Em outras palavras, a presença constante da mãe, isto é, do discurso materno, impede a operação da função paterna, essa que poderia carregar consigo aqueles significantes capazes de funcionar como pontos de basta, que poderiam articular as cadeias significantes necessárias à constituição e ao exercício de um sujeito.

Os significantes que foram foracluídos retornam de fora pela via do real, em forma de alucinações, pois devido a foraclusão, fracassa o imaginário, sendo esta anterior a qualquer possibilidade de recalque, pois este, para se realizar, requer um conhecimento prévio do elemento a ser recalcado, não havendo a distinção entre significante e significado. Por não haver o recalcamento primário e sem a queda do objeto “a”, ocorre a holófrase, ou seja, a solidificação do S1S2. Em outras palavras, segundo Petri (2003 p. 60-61), a princípio há um sujeito que não é nada, e para que ele faça parte do campo do Outro um primeiro significante vem inscrever-se forçosamente, tratando-se do S1, que designa o sujeito e o petrifica no campo significante. A inscrição do segundo significante, S2, que faria aparecer como sujeito faltante, ocorre de modo peculiar, o que acarreta a falta de intervalo entre os significantes S1 e S2, implicando um problema no nível do processo de separação, nomeada como holófrase.

A partir daí, podemos apontar algumas particularidades na relação do
psicótico com a linguagem. No que se refere às relações temporais,
observam-se, muitas vezes, falhas na sucessividade: a pontuação que regula
o sentido na escrita tem uso particular e sua mudança afeta a ordem sintática
(pode estar fora do código); pode atingir a cadeia sintagmática,
interrompendo-a (frases interrompidas), há quebra na cadeia significante.
Faltam pontos de basta que permitam o enodamento da cadeia significante e
as redes de sentido ficam soltas. Há ruptura na coerência interna do discurso,
às vezes ocasionada pela falta de conexões, por exemplo, pelo uso incorreto
de preposições que marcam a transitividade da frase. (LACET, 2004).

Ao considerar a psicose como falha simbólica estrutural, a suplência faz o papel de metáfora da função paterna foracluída, como no caso das metáforas delirantes. A construção da metáfora de suplência ou a metáfora delirante faz parte da direção de cura nas psicoses, que entraria na forma de barrar o gozo, uma vez que a metáfora Nome-do-pai está foracluída, não promovendo a significação fálica. O delírio seria uma nova organização do sujeito, na tentativa de produzir algo análogo ao neurótico, é um saber de defesa, sem que haja um elemento único organizador que forneça as significações.

Ao considerar que é no registro da fala que se explicita toda a riqueza da
fenomenologia da psicose em sua tentativa de burlar a lei simbólica, propõe que,
assim como qualquer discurso, “um delírio deve ser julgado em primeiro lugar
como um campo de significação que organizou um certo significante” (Lacan,
1955-1956/1992, p. 141) e que uma investigação da psicose tem como regra
fundamental deixar o sujeito falar o maior tempo possível.(LACET, 2004
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01035642004000100023&script=sci_pdf&tl
ng=pt)

Assim, compete o analista, diz Lacan (apud DAYRELL 2007 http://scielo.bvspsi.org.br/scielo.php?pid=S0102-73952007000100014&script=sci_pdf&tlng=pt) ser secretário do psicótico, isto é, aquele que vai anotar, respeitando sua singularidade, tentando implicá-lo e responsabilizá-lo por seus atos, bem como assumir seu tratamento.

É necessário, na clínica com psicóticos, que o analista suponha um sujeito, para que ele possa efetivamente existir e produza um significante novo, dentro das condições da transferência, para que o sujeito retorne do real através de um significante novo. O paciente psicótico organiza na transferência, um lugar para o terapeuta em que ele está interpelando a função paterna no real, isto é, a tranferência é real. Por isso, a transferência na psicose é diferente da neurose, não há suposição do saber no outro, antes supõe um gozo, não há um outro, ele fala a si mesmo por intermédio dos outros. “Em decorrência de sua estrutura, o psicótico se coloca diante da demanda do Outro como objeto e se dirige a um analista que ele coloca em posição de sujeito”. (KUPFER, 2000 p.62).

Outra distinção da neurose com a psicose, é que enquanto na primeira clínica é feita a travessia do fantasma, desfazendo as identificações imaginárias, na psicose, não se deve desfazê-las, pois não existem outras para repor no lugar; não há suporte simbólico. Como o significante primordial falta, a identificação fica comprometida, e ao se desmontar a identificação imaginária, o psicótico depara-se com o furo no imaginário, sem poder se  amparar no simbólico, pois este significante lhe falta. “A intenção desta ação é permitir que se instale o Simbólico e o ponto de partida é o Real, esse contra o qual a criança não erigiu suas defesas” (ibid, p.62). Isto é, no trabalho com psicóticos e autistas, o simbólico está para ser construído, e o imaginário tem a função de enodamento deste simbólico com o real.

Em vista disto, as identificações imaginárias devem ser reforçadas nas intervenções com o real. Cabe o analista ocupar o lugar significante, desde que não significantize a falta, porque como na psicose o Outro não é barrado, o psicótico identifica-se com a completude deste Outro, fazendo Um com ele, na psicose dizer a verdade é necessário. Kupfer (2000 p. 63) cita Marie Christine Laznik – Penot afirmando que o analista deve se apresentar como ser […] desejante, como um outro a quem algo falta, e, portanto, barrado, castrado em seu desejo onipotente.”

Enfim, a autora (p.66) continua ao dizer que o trabalho com psicóticos consiste em fazer com que opere com máxima extensão significante possível, posta a partir das inscrições primordiais, de modo a fazer-se por ela representar perante o discurso social. Já falamos a respeito de como o programa de inclusão social, dependendo da sua interpretação, poderá ser nociva à criança excluída, uma vez que a escola encarna o Outro, e da importância de reformular certos conceitos arraigados no ideal político-pedagógico para que possa receber esta criança. Por isso, abordaremos em seguida a importância desta inclusão social para as crianças psicóticas e autistas, de que maneira a entrada da criança na escola deve ser norteada.

 QUE MODO A INCLUSÃO SOCIAL PODERÁ SER TERAPÊUTICA?

Ao se discutir sobre a inserção de crianças com DGD (distúrbios globais do desenvolvimento) na escola devemos levar em conta alguns aspectos fundamentais que Alfredo Jerusalinsky (apud COLLI et al. 1997:139) considera:

  1. A questão do diagnóstico na infância que, em sua grande maioria, não está definido. Basear-se neste aspecto para privar a criança do convívio e da inserção na escola se torna injustificável.
  2. As condições de aprendizagem, apesar de limitadas existem, pois nestas crianças há a possibilidade de surgimento de curiosidades parciais;
  3. Do ponto de vista individual a criança pequena devido a sua idade não tem suficiência simbólica, atenuando o processo de estigmatização;
  4. O efeito terapêutico causado pela inserção destas crianças na escola pode ser entendido a partir do individuo e da ordem social. Uma vez que, somente o
    significante escola já traz em si uma série de significações. “A escola é um lugar de entrar e sair, é um lugar de trânsito” (JERUSALINSKY, 1997:91), sem contar que na representação social a escola é considerada uma instituição normal da sociedade, onde circula a normalidade social.

Portanto, quem frequenta a escola se sente mais reconhecido socialmente do que aquele que não freqüenta. Não é à toa que adolescentes psicóticos têm o interesse de frequentar a escola porque seus irmãos a frequentam, isso funcionaria para eles como signo de reconhecimento por serem capazes de circular, de certa maneira, pela norma social. Isto, por si só acaba tendo um efeito terapêutico porque, o discurso social cura o horror a psicose e seus preconceitos sem contar que, para o tratamento da psicose é necessário ter como norte o estabelecimento do laço social. A escola poderá produzir uma função de enlace, uma aproximação do termo “efeitos da circulação social”. “O trabalho analítico pode restabelecer algo do laço social e a escola, ou a circulação social que ela acarreta, reforça esse pouco do laço pondo-o em ato.” (KUPFER E PETRI, 1997:114).

Petri complementa ao dizer que a educação se transmite tanto pelo saber quanto pelo conhecimento, este último estaria relacionado ao conhecimento socialmente compartilhado, passado de geração em geração, acontecendo pela via do consciente. Já o saber, de ordem inconsciente, relacionado ao desejo inconsciente é transmitido na forma de valores e ideais. Os ideais podem ser simbólicos ou imaginários; o segundo representa a tentativa de complementação narcísica, sem espaço para a reedição do mandato, já os ideais simbólicos, têm como efeito a precipitação do desejo, representados pelos ideais de eu. Este último teria a vertente de “uma filiação simbólica, efeito de uma produção de um lugar na história para um sujeito, em virtude da transmissão de marcas simbólicas advindas do passado. Educação como a possibilidade da criança vir no futuro a usufruir como um adulto do desejo que nos humaniza” (2003:29).

Isto quer dizer que, para que esta circulação se concretize é necessário que o professor se diferencie de uma mera função pedagógica para um possível enlace, pois necessita de alguém estabeleça um lugar simbólico, permitindo uma transmissão da cultura e não se apresente como mero guia, mas como alguém que faz parte da ordem social. O educador deve ter em mente que há um saber inconsciente, e que nela há ideais que o compõe, ideais simbólicos que veja nesta criança um sujeito, que consiga pressupor e apostar neste sujeito.

Em outras palavras, a escola deve considerar o singular laço com o Outro que se configura no autismo e na psicose, posicionando-se como agente de lugar.

Aposta-se, com a inclusão, no poder subjetivante dos diferentes discursos
que são postos em circulação, no interior do campo social, com o intuito de
assegurar, sustentar ou modelar lugares sociais para as crianças, levando em
conta que, neste sentido, o discurso (ou discursos) em torno do escolar é
particularmente poderoso. Uma designação de lugar social é especialmente
importante para as crianças que enfrentam dificuldades no estabelecimento
do laço social, como é o caso das crianças psicóticas ou com transtornos
graves. (KUPFER E PETRI 1997:115)

A circulação social diz respeito as variadas esferas da vida social, incluindo a integração da família também, pois o processo de escolarização destas crianças encontra-se intrinsecamente ligado as significações que seus pais podem conferir-lhe, sendo que a criança sofrerá diretamente os efeitos de tais significações nos lembra Rogério Lerner (1997: 64,65). Ao dizer que seu filho está na escola, a escolarização pode promover uma sustentação imaginária para os pais nessa inserção social; algum representante da ordem social também pode realizar um trabalho de escuta com os pais, “para que se instale, no lugar da certeza, uma interrogação no que se refere à interpretação que eles dão aos sintomas dos filhos”. (OLIVEIRA apud Lerner, 1997: 67). A relevância desta escuta estaria em produzir uma virada na posição dessa criança na estrutura familiar, possibilitando um deslocamento da posição de objeto para significante.

Sem contar que o trabalho com criança com DGD pede o reposicionamento da professora diante de seu fazer, pois ao verificar o fracasso de suas teorias pedagógicas, ela tem que estar aberta para interrogar sua prática e partir em busca de novos referenciais teóricos.

Marise Bartolozzi Bastos (2007:46, 47) complementa ao dizer que os educadores devem estar preparados para receber estes novos alunos, tanto em conhecimento a respeito do programa de inclusão e desta criança, quanto psiquicamente, pois muitos professores que não podem e não sabem abordar a inclusão, acabam por pedir afastamento, licença médica, por estarem com sua saúde mental debilitada.

Por outro lado, continua a autora, não podemos esquecer os efeitos da inclusão nas crianças que já frequentam a escola regular, porque estar diante do “diferente” pode produzir dois efeitos: sendo uma experiência rica e produtiva ou pode ter efeitos negativos. As crianças neuróticas, dentro do normal, estão em um momento de sua vida delicado, pelo fato de estarem numa idade de elaborações primordiais situada num semelhante e, com a possibilidade, de se encontrarem com outras crianças estranhas e destoantes da própria imagem, pode colocar em questão pontos de identificação imaginária, de especularização com o outro. 

Outro ponto que Calligaris (apud Bastos 2007: 49) ressalta é o que diz respeito ao perigo da inclusão seria dela funcionar como injunção fálica diante da estruturação psicótica, porque a escola pode exigir da criança algo que tem por referência a função paterna. “Nesses casos, da criança diante de um encaminhamento psicótico, corre-se o risco da instancia pedagógica operar para esta criança uma injunção permanente que instale a crise, uma vez que essa referência à função paterna está em questão nesta estruturação.” Em outras palavras, é imprescindível que as metáforas maternas e paternas tenham elasticidade e estabilidade, além disso, é necessário que haja por parte da equipe que acompanha estudo e a permanente reflexão acerca dos efeitos da convivência para cada uma delas.

Enfim, para que a inclusão seja terapêutica nas instituições, se faz necessário o tratamento do Outro. Alfredo Zenoni propõe, levando em consideração que tanto na psicose quanto no autismo o Outro é intrusivo, uma linha de ação de orientação psicanalítica que visa o coletivo, de fazer a instituição um lugar de tratamento do Outro através da organização e ajuste constante do agenciamento simbólico com a finalidade de tornar possível uma ação do coletivo. Para o autor, há na psicose infantil um excesso de Outro, este se apodera sem lei do ser do infans e impõe a este um sofrimento, invadindo o sujeito com um gozo que transborda. Então o tratamento do Outro implica tratar este gozo, utilizando uma palavra dirigida ao Outro do sujeito, cuja conseqüência pode ser o apaziguamento do seu gozo, barrando-o.

A importância disto reside em explorar certas possibilidades, particularmente a de colocar no lugar outra Alteridade que seja alternativa ao Outro primordial do sujeito. Porém, além da simples mudança do contexto simbólico, “é todo o funcionamento do novo lugar de residência que desde então, será atravessado pela questão das conseqüências que colocam sobre o plano do tratamento a hipótese psicanalítica sobre a psicose.” (ZENONI).

“Tratar o Outro é também separá-lo” nos orienta Kupfer et al. (2007 http://146.164.3.26/seer/lab19/ojs2/index.php/ojs2/article/viewArticle/144/119) Operar um
distanciamento entre a criança e seu Outro uma vez que para o psicótico o outro semelhante é igual ao Outro. “Fazer isso implica tratar tudo o que é exterior à criança (sem que isso seja confundido com o ambiente familiar), ou tudo o que não faz referência direta a ela, pois isso pode ser-lhe extremamente persecutório.” Alguns dos exemplos deste tratamento do Outro consiste na exclusão de ações verbais interpretativas do comportamento ou dos ditos da criança com DGD, pois isto reproduzirá um Outro do saber, persecutório, que tudo sabe; adiar o ponto de encontro com o enigma do Outro.

Todas essas ações, de acordo com autor, têm a finalidade de:

[…] produzir uma distância entre seu ser de vivente, como coisa do Outro, e
uma imagem, uma identificação; esboço de um outro Outro, como ideal do
eu, que suporta o golpe face ao Outro persecutório, ao Outro enigmático que
impõe ao sujeito ser a resposta viva a isto. (ZENONI)

Para que se possa realizar este tratamento do Outro com o objetivo de pacificar o sujeito, colocando ordem no Outro, toda a equipe, composta por diferentes áreas, deve ser parceiros na construção clínica. O objetivo é assegurar para o sujeito uma presença regular, que dá atenção ao detalhe, e que é dócil à invenção do sujeito, pois cada profissional contribui para tornar presente uma figura do Outro que permita ao sujeito encontrar para si um lugar na instituição, sem que haja passagem ao ato, tornando este Outro regulado.

Assim, adia-se o encontro da criança com o Outro para que, em um segundo
momento, ela tenha condições de inventar um aparelhamento, uma nova
língua e um novo engajamento psicótico no laço social. Quando esse
encontro é adiado, cria-se uma alteridade possível para o sujeito. Essa
primeira intervenção na direção de apaziguar o Outro é preliminar naquilo
que acolhe, mas já é tratamento na possibilidade que traz ao sujeito para
inventar qual será o próximo passo em direção à elaboração de uma
estabilização. Essa estabilização poderá ocorrer com a invenção de uma
metáfora não paterna; com a introdução de um menos nessa estrutura; com a
criação de um saber original; ou com uma elaboração delirante sobre a
sexualidade. A instituição poderá, então, testemunhar esse percurso, ao
armá-lo e sustentá-lo na “prática entre vários”. (KUPFER et al. 2007
http://146.164.3.26/seer/lab19/ojs2/index.php/ojs2/article/viewArticle/144/1
19)

Estes são alguns norteadores para que instituições que praticam o tratamento do Outro possam se basear, para as autoras o principal disto é a invenção junto a criança de um outro Outro para ela. Pois é através desta reinvenção pacificado do Outro, que possibilitará a criança a fazer laço com os outros, da sua maneira com as oportunidades que surgirão. 

Para finalizar, Kupfer (1997:56) nos lembra também que a luta política pela inclusão da criança na escola é direito de todo cidadão, propondo que se tire o máximo de proveito do potencial terapêutico presente em todo e qualquer ato educativo voltado para um sujeito e não no adestramento de crianças, no sentido de aliená-las a práticas pedagógicas. Enfim, trata-se de questionar se essas crianças têm estruturações e registros necessários para usufruir daquilo que o convívio social deve proporciona-lhes enquanto possibilidade de laços sociais e se a escola, toma a criança não exclusivamente sobre a ótica de suas capacidades cognitivas, mas considerando-as como sujeito do desejo para que então possa ver seu aluno em sua subjetividade. A proposta deste trabalho foi trazer a discussão da inclusão escolar de crianças psicóticas e autistas, porém não pretende fechar sobre este tema ou criar um conjunto de regras que garanta sucesso na inclusão, muito ainda tem de se produzir a este respeito. E não podemos nos esquecer que o primeiro encontro entre a professora e o aluno diferente é o que norteará todo o trabalho a ser feito. 

 

Autoras: Michelle Hattori Fuziy1
Rosa Maria Marini Mariotto

Psicóloga psicanalista formada pela Universidade Estadual de Londrina.
E-mail: michellefuziy@yahoo.com.br

 

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O Trabalho de Corte e Costura na Clínica Analítica

Se, de um lado, comparece aquele que pela primeira vez experiencia a  psicanalise trazendo consigo um mal estar, dor, sofrimento, sintoma, demandando uma resposta, um alivio para o desconforto. Do outro, como diz  Jerusalinsky (2005), está aquele que oferece seu ato ao risco, ao acaso, ao que  for acontecer… ao que vier acontecer. Não está a espera da sorte, e não somente  se deixa levar pelo acaso, mas sim, ao que for acontecer, pois em seu íntimo,  sabe-se que virá um acontecimento a referendar ou desmentir aquilo que foi lançado em palavras.

Porém, aquele que fala não sabe que, com muito custo, vestiu a particularidade de seu desejo com uma roupa apropriada para a ocasião,  conforme o hábito de todos. Assim, pagou o preço pela indumentária, conformando-se com a expectativa do outro, cedendo ao seu desejo. Agora,  procura uma ajuda para a roupa que ficou apertada demais, ou larga demais,  deixando o sujeito embaraçado com tamanha exposição. Outras, encontrou com aquele que, de vestes andrajosas, veio cheio de inibições, culpas e pesadelos.

O destinatário deste pedido, aquele que escuta e acolhe a demanda, sabe que deve fazer um trabalho minucioso, detalhado, artesanal, que a veste escolhida é única, não dá para colocar em outra pessoa. Está advertido, por um longo trabalho em sua análise pessoal, que não deve impor o seu tipo de remendo, a sua cor, o seu tecido, tamponando buracos necessários para aquele que veste. Seu dever é escutar, daquele que traja, o que trouxe consigo, os fios do significante que se entrelaçam, formando um tecido.

Assim, o trabalho de costura e descostura inicia, contornando os furos já existentes, fazendo pontos nas peças que estão soltas, alinhavando-as… tem o cuidado de deixar a peça sem uma costura definitiva, pois nunca sabe se será necessário rever a peça e ele, o analista, terá que voltar, junto com o paciente, para desfaze-las e refaze-las outra vez.

Certa vez, no início de seu trabalho, ocupando esta função (ainda) de costura, escancarou o sujeito, arrancando-lhe as vestes do recalque de uma vez, foi agressivo, causou angustia, desvelou demais o desejo encoberto… ofendeu demais o Eu. Outras, alfinetou com a agulha, caindo do seu lugar de analista, impondo a sua costura e o seu molde, encontrando assim sua resistência em prosseguir com o trabalho.

Mas leu e aprendeu; (desta vez não só em Lacan!), mas com Fernando Pessoa, algo que tocou em sua função:

Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos”. (PESSOA, Fernando p. 164 2004).

Compreendeu que o saber está naquele que escreve o texto e é o autor de sua própria vida, apesar deste não lembrar do resto, e tem seus motivos para ter apagado… E como os sentidos são diversos, não cabe escrever em cima, calando o autor.

Além da sua dificuldade de ocupar este lugar; o sujeito ali em questão, que comparece para associar e tecer o tecido significante, começa a crer que a roupa que o analista usa, seu semblante, é o melhor… quer recomendações, dicas, orientações, quer usar o involucro, identificando-se imaginariamente com ele. Cabe o analista abster-se deste lugar de modelo, mestria, identificação, pois sabe que cada experiência é singular, não se trata do seu ser e nem da sua opinião, sabe que a roupa que lhe coube é só sua e sabe que assim como é para o analisante; e com sua ética e desejo, maneja a transferência, entregando a tarefa de costura ao demandante, permitindo que o desejo do sujeito apareça.

Aquele que demanda estranha o lugar que compareceu e a que veio ocupar. Pensou que fosse um lugar de tricotar: contar e escutar fofocas, dicas, trocar ideias… pensou que fosse de costurar: saber andar na linha, cezir os furos, remendar os buracos… e para a sua surpresa, percebe que é um lugar de corte!

Soler (1991) nos Artigos Clínicos cita o equivoco e o corte como exemplos de interpretação de Lacan:

Tanto o equívoco como o corte são designados em função da fala: trata-se de um dizer nada, na medida em que o analista responde com o equívoco, portanto não responde no nível do significado, da nomeação do objeto, para suturar a falta. O dizer nada provoca uma equivocidade no discurso do analisando e provoca também efeitos. Privilegiei o corte, por operar no nível de S1 e S2, ou seja, por operar nos intervalos da cadeia significante e, como diz Lacan (1953, p. 315) “interromper a conclusão para a qual se precipitava o discurso do analisante”; e o equívoco, por estar do lado da enunciação.

O analista, no lugar de semblante do objeto a, convoca o analisante a desfiar os fios do tecido discursivo, convida-o a costurar de um outro jeito, do seu jeito, com a sua costura, tecendo na metonímia do desejo as novas tramas do mesmo fio.

Este trabalho de corte e costura não é fácil, afinal se permitir desfiar o que há muito tempo vinha sendo construído é contar com a recusa, vacilações, rever o narcisismo. São duros os percalços que é a caminhada, Cuesta (2013) diz que longe de parecer esta caminhada como uma caminhada ao matadouro, que causa horror e pânico aos que pretendem começar uma análise, lembra que é a única via para que nossa existência possa ter menos mal-entendidos.

Quanto tempo, dinheiro, libido são gastos, supondo estar no caminho “certo” para atingir um ideal por meio do qual se supõe satisfazer esse Outro que determina? Quantas repetições de fracassos se é capaz de suportar por não poder confrontar-se com a castração, por estar atrelado a ser objeto de seu fantasma?

No final, não há mais lugar para os ideais nem para as ilusões imaginárias, e sim permitir que o sujeito construa uma estória para ele, um olhar melhor para si. Parafraseando Forbes (1997 p.182) o analista colabora para que o analisando não se tome por demais a sério, dissocia dor e relato da dor, provando que frequentemente se sofre mais pelo que se conta do que pelo que se sente. “Há sempre um excesso, um ridiculo a suportar na vida; o ridiculo é o particular que não se encaixa em nenhum universal” até chegar em um lugar que não precise usar as vestes imaginarias, que possa encontrar com sua castração e consenti-la.

Autora: Michelle Hattori Fuziy

 

Referências Bibliográficas:

CUESTA, Silvia Esther Soria de. “O dificil lugar de não-ser do psicanalista.” In: Recortes em Psicanálise. Revista de Psicanálise. Ano II. No 3. Fev de 2013.

FORBES, Jorge. “Ridículas palavras recalcadas” In: Psicanálise ou Psicoterapia. Forbes org. Papirus: SP, 1997.

JERUSALINSKY, Alfredo. “Quando fala um analista”. Revista da A.P.P.O.A no. 29 – dez.2005

PESSOA, Fernando. “Livro do Desassossego”. Companhia das Letras: SP. 2004 2a ed.

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