Angustia e Contemporaneidade

Em primeiro lugar, o título deste trabalho propõe pensarmos numa certa relevância da angústia nos dias de hoje. Na sequência, evidencia a existência de particularidades da angústia e de suas manifestações na contemporaneidade. Estes dois indicadores podem ser desdobrados na direção de questões e impasses que se impõe ao manejo clínico da angústia na atualidade. Na realidade, se tomarmos como ponto de partida a clínica cotidiana, os aspectos acima indicados se apresentam de forma concomitante e não restitos ao tema da angústia que aqui nos concerne: as particulares e graves formas de sofrimento trazidas por sujeitos, digamos, um tanto apáticos, nos interrogam diariamente, impulsionando à produção teórica e à inovação clínica.

Paradoxalmente, tempo difícil e promissor para a Psicanálise. Tal afirmativa pode, com razão, ser contraposta à alegação de que esta dicotomia não é nova, pois desde o seu início a clínica psicanalítica sabe ser eficaz no tratamento do sofrimento humano, mas enfrenta uma série de dificuldades e questionamentos. Entretanto, os percalços advindos de uma posição subjetiva onde a busca por um saber inconsciente é sobrepujada por uma demanda de gozo, de um gozo-todo que a cultura propõe como necessário (Besset, 2002), impõe impasses bem específicos e, arrisco dizer, maiores do que aqueles presentes desde o nascimento da Psicanálise e atrelados a uma ordem social regida pela presença de uma forte instância terceira, da repressão, do sofrimento e da culpabilidade neurótica. Somamos a tal condição toda a carga de anestesia psíquica e anulação subjetiva que a indústria farmacêutica pode, alegremente, nos proporcionar e ainda a presença da solidão e do enfraquecimento dos laços sociais, pretensamente substituídos pela comunicação virtual.

Um cenário árido e, veremos, favorecedor, dentre outras coisas, da presença da angústia e das diferentes formas de atuações nas clínicas das toxicomanias, dos transtornos alimentares, da psicossomática, do pânico, das fobias e das melancolizações. Mas também, promissor, por, mais uma vez, a Psicanálise trabalhar para buscar formas de ludar com a dor e o sofrimento humanos, e mostrar-se capaz na renovação teórica e técnica.

Avançar na discussão acima esboçada a respeito da clínica da angústia na contemporaneidade exige a delimitação do conceito de angústia na teoria freudiana, bem como a leitura de Lacan e suas formulações sobre tal conceito.

A obra freudiana apresenta duas teses sobre a angústia: na primeira, o recalque é postulado como produtor de angústia; na segunda, a angústia é anterior ao recalque e produz o mesmo. Embora Freud tenha priorizado a segunda tese, só possível a partir da segunda teoria das pulsões e da segunda tópica, não chega a descartar a primeira (Giles, 2007).

A construção da primeira teoria sobre a angústia está associada à diferenciação entre as neuroses atuais e as psiconeuroses; Neste contexto, as neuroses atuais, em especial a neurose de angústia, se caracterizam por um quantum de excitação sexual sem mediação simbólica e vivenciada diretamente no corpo sob a forma de angústia e, portanto, fora do recalque. Dito de outra forma, a angústia nas neuroses atuais é vista por Freud como uma energia livre decorrente da tensão física e sua ausência de intermediação psíquica. É interessante observar que nesta formulação temos algo esboçado na direção da segunda teoria onde a angústia será situada fora dor recalque por ser anterior ao mesmo e associada ao trauma, embora nem mesmo a primeira teoria da angústia estivesse ainda estabelecida.

Com a leitura sobre as psiconeuroses, temos a libidinização da tensão sexual, extrapolando a condição física desta tensão para o psiquismo. Freud considera os sintomas como indicadores de um excesso de libido e coloca a ideia de transformação deste excesso também em angústia. Tal excesso é vivenciado pelo eu como um perigo pulsional e estaria na base das psiconeuroses, pois frente a tal perigo o recalque atua como defesa. Com o recalque ocorre a separação entre ideia (representante representação) e afeto, sendo a angústia um dos possíveis destinos para o afeto (na condição de afeto livre). Portanto, temos a primeira tese sobre angústia, marcada por um caráter econômico em que a angústia é um resultado, uma manifestação subjetiva de uma quantidade de energia não dominada, um produto do recalque e já está associada a um caráter defensivo.

Este caráter defensivo é, nesse momento, enfatizado por Freud através da articulação da angústia a uma espécie de disposição preparatória para o perigo, pois à medida que o eu retira a libido dos representantes psíquicos, ele produz um nível de angústia suportável afim de que o eu não seja dominado pela angústia paralisante.

Com os elementos da segunda tópica e, em especial da segunda teoria pulsional, Freud (1996/1926) agrega à compreensão da angústia como libido transformada pelo efeito do recalque a ideia de uma angústia originária, associada ao trauma do nascimento, à imaturidade e dependência do humano, e, portando, anterior ao recalque. Assim temos a segunda tese freudiana sobre a angústia, de caráter dinâmico, onde o recalque não causa a angústia, pois ela está presente desde o início e por temê-la o eu recalca o que se apresenta como ameaçado por, de alguma forma,remeter à angústia originária (Giles, 2007).

Freud avalia que a imaturidade e dependência absolutas do bebê propiciam uma vivência de desamparo e de perigo de aniquilamento que é traumática por não ser representada psiquicamente, sendo, portanto, angustiante. Toda vez que algo remeter a isto que é da ordem do trauma o eu se prepara para uma vivência angustiante. Assim, a angústia como sinal põe em evidência a angústia como defesa do eu. Trata-se de uma reação a um perigo inespecífico para impedir que um pânico desordenado se apodere do sujeito (Kaufmann, 1996). De qualquer forma, para Freud, a angústia está associada à perda de objeto, pois o trauma se articula à separação e à perda da condição de falo para o Outro.

Para Lacan, a angústia resguarda sua condição, já estabelecida por Freud, de um afeto e de sinal, não de um perigo interno ou externo, mas sim de uma vacilação frente ao desejo do Outro (Chemama, 1995). Para além dos textos freudianos que teorizam sobre angústia, Lacan (2005/1962-63) prioriza O Estranho (Freud, 1996/1919) por considerar que neste artigo Freud apresenta a angústia não apenas como resultante da perda, da falta, mas sim também como manifestação frente à faltada falta. A angústia vem com a estranheza advinda do não comparecimento da falta ali onde ela era esperada. Assim, a angústia não é mais atribuída à falta, à perda do objeto, ao contrário, se presentifica no momento em que o objeto falha em se manifestar como faltante, ou seja, na possibilidade da falta vir a faltar.

Nesta direção, Lacan (205/1962-63) afirma ser angústia não sem objeto e, ainda, ser um afeto que não engana. É necessário especificar que o objeto em questão, objeto a, é aquele definido como causa do desejo, aquele que precisa faltar para que o sujeito possa desejar. Produzido como resto no circuito pulsional, o objeto a é o que escapa à libidinização e à simbolização. A angústia é produzida se esse objeto não faltar e alguma coisa se presentificar em seu lugar, anulando a possibilidade do desejo.

Assim a angústia não é sinal da falta, mas sim do fracasso desta ultima que é para o sujeito condição indispensável para sua existência desejante (Chemama, 1995). Desta forma, o que está em questão na angústia não é a dúvida, mas sim a certeza, por isso ser o afeto que não engana, de uma posição perante o desejo do Outro em que se corra o risco de devoração, onde o gozo do Outro se sobreponha ao desejo.

O objeto em questão no desejo e na angústia é o mesmo, a diferença está em sua posição nestes dois casos. No desejo, o objeto está na condição de perdido, garantindo e garantido pela falta; já na angústia, ele reaparece e se duplica como representação e oferenda ao Outro mítico de gozo (Goldberg, 2007). Nesta direção, sabemos que o desejo se sustenta na estrutura do fantasma e Lacan (2005/1962-63) afirma que nesta mesma estrutura se estabelece a angústia. Assim, peranteo enigma do desejo do Outro, que na verdade nada quer de mim, a angústia surge se o Outro não se apresentar e permanecer como faltante para que eu possa ser a, causa do desejo, para ele.

Com estes fundamentos teóricos, não nos parece difícil interpretar as manifestações clínicas tão comuns em nossos dias pela via das patologias do ato (toxicomanias, pânico, bulimia e anorexia, melancolizações…), recursos frente à angústia e à inibição, como efeito da presença do Outro pouco faltante ou marcado mais pela falta imaginária do que pela falta simbólica. Posicionamento bastante condizente com o discurso social reinante de um imperativo necessário de ascensão ao gozo sem limites. Dessa maneira, nos deparamos com sujeitos tão apáticos, pouco desejantes, e também muito suscetíveis a melancolização e à angústia por uma falha, vacilação, naquilo que diz respeito à estrutura da falta e à possibilidade de ser a, causa do desejo para o Outro e não objeto de desejo do Outro.

No que concerne à condução clínica, Lacan afirma a angústia como necessária, filiando-se nos ensinamentos freudianos da angústia como sinal de alarme que possibilite ao eu o acionamento de defesas que impeçam o transbordamento da angústia de forma paralisante. Assim, ela também pode servir como sinal da análise dos limites entre desejo e o gozo, como indicador do quanto a estrutura do fantasma garante, para esse sujeito, o seu lugar no desejo. Em certa medida, parece-nos que a angústia neste nível de sinal tem fracassado em nossos dias, assim como o sintoma já não se apresenta mais tão clara e frequentemente: em geral se apresentam sob o signo da apatia alienante ou da angústia paralisante.

Neste contexto, certamente devemos nos haver com especificidades na condução clínica que implicam, de começo, dificuldades e maior tempo no estabelecimento transferencial e na função da demanda de análise. Manobras que viabilizem a saída da angústia paralisante e/ou da inibição não pela via do ato, mas da palavra, certamente necessitam que o desejo do analista possa se sustentar de forma eficaz, inclusive naquilo que diz respeito à prática da vacilação calculada.

Parece interessante que para lidarmos com aquilo que é exatamente da ordem de uma vacilação na estrutura, recorramos a outro campo também de vacilação, e que tenhamos constatado que esta última pode comportar atos de criação e subjetivação e não de fracasso e destituição, na renovação necessária da psicanálise e sua clínica.

Autora: Zeila Cristina Facci Torezan

 

Referência Bibliográfica

BESSET, V. L. A clínica da Angústia. São Paulo: Editora Escuta, 2002. 2016 p.

CHEMAMA, R. (org.) Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Larousse-Artes Médicas Sul, 1995. 241 p.

FREUD, S. O Estranho [1917]. InObras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol IVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade [1926]. InObras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GILES, C. Sobre o conceito de angústia em Freud. InnRevista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, vol. 1, n. 1. Porto Alegre: APPOA, 1990, p 11-21.

GOLDBERG, S. A angústia em Lacan, uma terceira teoria? InRevista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, vol. 1, n. 1. Porto Alegre: APPOA, 1990, p. 11-21. p. 58-66.

KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. 784 p.

LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 366 p.

 

Bibliografia Consultada

BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 418 p.

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FREUD, S. Conferência XXXI. Angústia e vida pulsional. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise [1932]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

HARARI, R. O seminário “a angústia” de Lacan: uma introdução. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. 241 p.

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. B. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 552 p.