A transmissão a-live?

Queridos amigos moebianos, parabéns pelos 30 anos da instituição, pela organização primorosa do evento e muito obrigada pela oportunidade de participar desse momento tão especial. Saudades de vocês e do clima acolhedor e alegre com o qual sempre me recebem para o trabalho e para as festas. Um particular agradecimento à comissão organizadora, à Eliecim pela parceria nesta mesa, à Maíra pela coordenação da mesma e a todos aqui conectados.

A questão que trago para dialogar com vocês, grafada no título da apresentação, nasceu algum tempo antes de receber o gentil convite de Sandra, em nome da comissão organizadora, para essa Jornada. A pergunta já existia e produzia algum burburinho interior, o convite transformou-a no título do texto e me convocou a dar ouvidos ao barulho e a trabalhar com mais afinco no tema. Exatamente o que se espera quando há transferência e também o que compõe o conceito de transmissão: convocação ao trabalho e espaço para o saber-fazer. E, falando em transferência e em transmissão, não posso deixar de dedicar esse trabalho aos que foram ou são meus analisantes e aos meus colegas da ALPL (Associação Livre – psicanálise em Londrina).

Em meados de abril com o caos instalado e já anunciada sua delonga, saber da falta de opção e, mesmo, levantar a bandeira junto à instituição da qual sou membro para sustentarmos o trabalho com a psicanálise neste espaço virtual, não acalmou o incômodo frente às novas dificuldades e limites impostos à clínica psicanalítica em intensão e em extensão nos nossos dias. Ao contrário, o mal-estar foi ganhando contorno e consistência de questionamento a cada atendimento on-line, reunião institucional,  atividade de ensino e tentativa de participação em alguma das centenas de lives e eventos na internet ao longo desses meses tão bizarros e tristes. Desde Freud somos subversivos, nadamos contra a maré e, como reza a lenda temperada com uma boa pitada de ironia para o momento, disseminamos a peste. Críticos contumazes das redes sociais e do desencontro e alienação produzidos pelos canais virtuais, cá estamos nos apoiando nesses meios para tentar sustentar a transferência e manter viva a psicanálise. Enfatizo que do mal-estar frente à inevitável e necessária adesão ao trabalho virtual, nasceu o chiste em forma de pergunta e composto por uma pequena transliteração: “a transmissão a-live?” Embora a angústia a respeito da transmissão da psicanálise se refira tanto aos atendimentos on-line quanto às atividades  de ensino pela internet, meu recorte hoje se aplica especialmente ao último.

A dúvida a respeito da sobrevivência da psicanálise é tão antiga quanto sua existência (Freud já se questionava sobre isso) e Lacan previu e nos advertiu do triunfo  da religião e de que a difusão da psicanálise não equivaleria à sua permanência e longevidade. Considero esse um ponto muito importante e delicado atualmente. É certo que a difusão da psicanálise nunca foi tão grande, mas, poderíamos dizer o mesmo sobre o alcance de sua transmissão? Tenho sinceras e preocupadas dúvidas a esse respeito. Temo que os jatos de dispersão em massa nas redes colaborem mais para a pulverização da psicanálise e o aumento dos riscos de distorção em sua concepção de ensino do que para a sua continuidade e necessária reinvenção. Considero imperativo nos ocuparmos de quais são e serão os efeitos de nós analistas nos lançarmos nas redes. Bem, uma consequencia possível do ato de jogar-se é cair. Pois é, e diz o ditado: “caiu na rede, é peixe”.

Ora, Zeila (diria minha faceta coach), não seja tão pessimista, veja o lado bom das coisas: é obvio que algo se perde, mas foquemos nos ganhos (que são muitos) e vamos usar a tecnologia a nosso favor! Pois é, face coach, anda difícil manter o otimismo nesse mundão, mas não acho que seja o caso de simples pessimismo pandêmico. Trata-se de análise crítica e, em minha defesa, te digo que aí onde você indica vantagens (que são reais, não nego) é também onde mora o perigo… A propósito, seria o peixe capaz de usar a rede a seu favor? É possível que esse tipo de tecnologia, numa via de mão única, nos sirva sem que sirvamos à ela ou sem que ela cobre um preço muito alto e torne desvantajoso o negócio? E, ainda, se no conceito de transmissão o que conta é mesmo a perda, o resto, o intransmissível, quais são os ganhos que nos interessam aí?

Não são os ganhos advindos do sucesso da difusão, da repercussão e da popularidade que balizam a transmissão e o ensino na psicanálise. Também não são as agendas lotadas, inclusive daqueles em início de carreira, que atestam a sobrevivência da psicanálise em tempos de cólera. É óbvio que é ótimo o acesso facilitado a nomes e instituições distantes e interessantes. Ampliamos horizontes, fazemos novos contatos, podemos estar aqui hoje trabalhando ainda que com limites. Ok, tudo bem, muito legal. Excelente a maior procura das pessoas por algum tratamento psi (digo algum, pois nem sempre sabem o tipo de terapêutica que buscam e não são apenas as agendas de analistas que estão movimentadas) e fico feliz que os jovens iniciem suas clínicas com muito mais tranquilidade do que a minha geração ou as anteriores. Entretanto, tais fatos não calam ou respondem à indagação em voga sobre o alcance e a sobrevivência da transmissão e, portanto, da psicanálise. Ao contrário, como procurei delinear até aqui, a fomentam. Visionário, Lacan (2002) já instigava seus ouvintes e tocava no tema em 1974, muito antes de se imaginar a existência da internet, a velocidade e os embustes gerados pelas redes:

“Convencionou-se chamar de sucesso o bruaá, isto é, o que faz multidão. Convencionou-se isso no público. Mas para nós, analistas, este sucesso não tem nada a ver com o que nos interessa; e este sucesso é algo bem diferente do que seria o nosso, quero dizer, aquele ao qual nós nos referimos quando falamos daquilo que somos feitos para registrar, ou seja, o fracasso. O sucesso, para nós, limita-se ao que eu chamarei de resultado. Devo dizer que sobre isso, sobre resultados, aqueles que contam, eu registrei alguns, até bem recentemente. Aconteceu de me enviarem um magnífico trabalho sobre a escritura e a psicanálise. É de um autor que mora no sul da França. E, por causa disso, ele só consegue ecos do que eu ensino. Não pode estar presente todo o tempo quando falo. Então, há de certo modo uma coisinha que não tem nada a ver, o que me garante, pois, que o resto é bem de sua autoria.”  (Abertura do Congresso da Escola Freudiana de Paris, 1974. Cadernos Lacan, volume 2, APPOA, 2002)

Nosso sucesso tem relação com o fracasso inerente à transmissão em função do impossível de transmitir (profissão impossível de Freud) e não com o bruaá característico das redes. Lacan identifica a distância e o alcance apenas dos ecos de seu ensino como favorecedores do sucesso, do resultado e, portanto, da transmissão. O sucesso da transmissão em seu ensino, não estava na multidão, nas ondas de burburinho em torno de seu nome ou, muito menos, na reprodução de suas formulações. O sucesso estava no resultado de uma nova transmissão, um bom texto autoral que, na aposta de Lacan, fora garantido pela distância com a qual o autor do texto alcançava apenas os ecos de seu ensino.

Essa fala de Lacan me parece muito articulada à ultima intervenção de Carlos Ruiz, pouco antes de sua morte, a qual tive a grata oportunidade de escutar presencialmente, ao vivo e a cores. Assim que aceitei o desafio para o trabalho de hoje com vocês e, como disse no início, já ocupada com minha pergunta tema, fui invadida pela lembrança da apresentação de Carlos Ruiz na Lacanoamericana de 2013 em Buenos Aires. Fazia uns três ou quatro anos que começara uma nova fase em meu percurso como analista com mudanças em algumas concepções a partir da prática clínica vivida ainda com mais intensidade e dedicação. Esse tempo foi coroado com o movimento para a fundação da ALPL (Associação Livre – psicanálise em Londrina) em 2012, um ano antes de ouvir o trabalho referido. Assim, naquela Lacano, maratonei especialmente os trabalhos sobre o ensino, a transmissão, as instituições. Portanto, já havia selecionado a apresentação de Carlos Ruiz sobre a transmissão e também porque conhecia seu nome como um grande mestre, figura pioneira da psicanálise na Argentina. Mas, não sabia que ele era ele. Explico, contando com a paciência de vocês para continuarmos um pouco mais neste pequeno desvio e para ouvirem uma historinha.

Cresci com pais velhos, temporona de oito irmãs, meu pai tinha cinquenta anos quando nasci e minha mãe, quarenta e seis. Assim começou meu amor pelos velhos (e não tenho necessidade de amenizar com o termo idoso, porque não acho feio ser velho, apenas um pouco triste) gosto deles e eles de mim, a gente se atrai e se dá bem, simples assim. Sempre enxergo os velhos, para mim eles não são invisíveis como costuma acontecer socialmente. Então, perambulando sozinha por um dos intervalos na Lacano enxerguei o velho Carlos Ruiz, sem saber que ele era ele. Solitário, muito debilitado, pálido e tão magro que parecia que o vento o levaria, sentado num canto e cabisbaixo. Estarrecida e intrigada, paralisei e não conseguia tirar os olhos dele. O que fazia ali aquele senhor visivelmente muito adoentado, cansado e com ar triste? Como tinha energia para uma Lacano, com aquele corre-corre o tempo todo de um lado para o outro? Despertei do transe com alguém da multidão esbarrando em mim e pedindo “perdon” e fui para a próxima sala de conferências para ouvir, adivinhem: Carlos Ruiz. Ele era ele e eu chorava na platéia.

A voz fraca emitiu uma fala breve e pontual com uma clareza e simplicidade invejáveis. Matemático de formação inicial e mestre na topologia de mais de uma geração de psicanalistas, não precisou recorrer a nenhuma referência direta à ela para que a mesma operasse em sua fala. Poucas palavras a partir de uma posição segura de quem sabe do impossível de falar tudo e, por isso mesmo, com um peso de transmissão difícil de mensurar. O título da apresentação foi: “Forçado a reinventar a psicanálise” e vou reproduzir aqui um de seus poucos, curtos e densos parágrafos:

Havia pensado intitular esse trabalho “Fim da transmissão”, jogando com a frase com que se encerravam à meia-noite as transmissões de rádio, para haver tempo de realizar os ajustes necessários para a transmissão do dia seguinte. Mudei o título, mas o tema da pausa para realizar os ajustes segue presente.

Sim, a pausa para realizar os ajustes, seja na clínica em intensão ou em extensão, segue fundamental. Mas, em especial no recorte sobre o ensino que aqui me interessa, essa pausa não estaria comprometida, afetada pelo excesso de ofertas, de imagens, pelas gravações que podem ser vistas quando e quantas vezes quisermos, pela ilusão de toda a transmissão, pela falta do intransmissível, pela falta do “fim da transmissão”? Também visionário Ruiz, não acho que foi ao acaso que em 2013 (com a presença mais do que estabelecida da internet e sempre prometendo ampliar seu domínio) elegeu, como metáfora para falar da transmissão da psicanálise, fazer alusão ao rádio (onde temos apenas a transmissão sonora) e de uma época em que o limite temporal diário era estabelecido pondo fim à transmissão. O rádio de outrora e com um tempo de funcionamento bem diferente do que estamos hoje habituados parecia mais apropriado para falar da transmissão no campo psicanalítico. Além disso, me parece pertinente ler em sua escolha o fato de que o meio da transmissão também conta, do contrário ele poderia ter usado como exemplo a televisão no tempo em que a transmissão também se encerrava à meia noite e ficávamos apenas com a tela listrada. A esse respeito, de que o meio conta e com isso não vale a máxima “os fins justificam os meios”, cito Porge (2009) sobre a transmissão via escrita:

Na transmissão da clínica psicanalítica, é preciso contar com o que se transmite – o fato clínico ou assim suposto – e com o meio de transmiti-lo.

O meio de transmitir faz parte do que é transmitido, e às vezes é difícil distinguir um do outro; ele atua sobre o leitor, chegando mesmo ao caso em que o meio de transmissão, o suporte da mensagem é a própria mensagem. (p.14)

Meus questionamentos parecem encontrar ressonância no posicionamento desses autores. O meio da transmissão não é sem consequências, faz parte da transmissão e o suporte da mensagem pode chegar a ser a própria mensagem. O meio de transmissão afeta o leitor e sabemos que a função leitor ou o lugar de leitor é fundamental na transmissão.  Será que o trabalho pelas telas, lives, videoconferências,  postagens, grupos de estudo e cursos on-line de psicanálise favorecem a função leitor ou convocam mais facilmente o lugar de expectador? Aposto mais na segunda opção, o que não exclui a possibilidade da primeira operar em alguns casos, mas não creio que ela seja favorecida pelo meio de transmissão em questão. A propósito, o lugar de expectador ou de aluno, no sentido daquele que recebe o conhecimento do mestre, está presente nos já antigos (e criticados pela maioria de nós) cursos de formação ou de especialização em psicanálise. Me parece que o uso dos canais virtuais para o ensino da psicanálise tem maior potencial para facilitar a aproximação desse mercado de especialidade do que para viabilizar a necessária e forçosa reinvenção da psicanálise. Além do mais, o meio em questão é favorecedor do bruaá, sucesso que não nos interessa, barulho que pode abafar o desejo de transmitir o impossível de transmitir e o despertar da invenção.

Ainda destaco a inflação imaginária e sua exploração pelo marketing digital, a proteção fornecida pela tela, as gravações que prometem nada perder, o conforto do não contato com o outro, o comodismo advindo de tudo isso, a síndrome do não ficar de fora (FOMO – fear of missing out). Condições mais do que propícias para a ausência da pausa necessária aos ajustes e para a destituição da essencial posição de leitor, comprometendo os elementos centrais na transmissão que são o intransmissível e a transmissão do desejo de transmitir. Com isso, o a fica apartado, fica de fora da live.

Nessa direção, Porge (2009) se encontra mais uma vez com Ruiz na pausa associada ao instransmissível e à reinvenção: “o intransmissível está no coração do desejo de transmitir, não como inefável perdido nas areias do deserto, mas como soleira para a invenção” (p.15). É o intransmissível que opera na transmissão como motor para a invenção e sobrevivência da psicanálise. Claro que é possível estudar as obras de Freud e Lacan na universidade ou num curso de especialização de alguma instituição ou em alguma proposta parecida presencialmente ou on-line. Mas, os efeitos disso costumam ser a redução da psicanálise à uma teoria a ser dominada e posteriormente aplicada. E de nada adianta que nesses meios se sustente um blá-blá-blá mecânico e repetitivo de que a teoria é  insuficiente, de que análise pessoal é o fundamental para a produção de um analista, etc, etc. Esse bordão como conhecimento ensinado pelo amo e adquirido pelo discípulo só serve para sustentar a cisão entre teoria e prática e para a instituição do expectador no lugar do leitor, ambos elementos que condenam à morte a transmissão da psicanálise.

Bem, então os problemas levantados não são novos e nem exclusivos do trabalho via internet? De acordo. Lembro-os de que a preocupação com a sobrevivência da psicanálise é tão antiga quanto a sua existência e um dos questionamentos levantados é a semelhança de algumas propostas on-line que proliferaram a partir da pandemia com modelos anteriores, presenciais ou não. Mas, a despeito da antiguidade da questão, entendo que ela ganhou peso com as circunstâncias que nos conduziram à necessidade das práticas via internet e, talvez, tal necessidade (que nesse caso não é a mãe da invenção) tenha produzido algum afrouxamento ético e pouca reflexão crítica. É o que tenho escutado, inclusive numa pequena e informal sondagem que fiz com alguns colegas a respeito do tema. As observações que recolhi foram sobre certa dificuldade de concentração, falhas na tecnologia e restrição na interação, um caráter mais de queixa do que de análise crítica. No geral, a ênfase foi em comentários sobre ganhos (meu lado coach está exultante com esse resultado) em especial pelo acesso à cursos e grupos de estudo dos mais diversos lugares. Os mais jovens, para quem a internet é praticamente um habitat, chegam a considerar esse um ponto positivo da própria pandemia: fazer inúmeros “cursos de psicanálise”, assistir às “aulas” quase todos os dias, geralmente de variadas instituições no afã bem intencionado, mas equivocado, de adquirir um saber sobre a teoria que sirva para a prática clínica.

Talvez não seja falta de análise crítica e a equivocada seja eu que sou cinquentona, não nasci conectada e gosto de velhos. Quiçá, mas para tirar a teima será necessária uma pausa para os ajustes necessários. Assim, por hoje, fim da transmissão.