Não é a mamãe!

Mais uma vez, muito obrigada pelo convite para compartilhar um pouco de psicanálise, meus queridos amigos do Espaço Moebius. Quando Sheyla fez o convite, brinquei que se eu tivesse um pingo de juízo, não aceitaria, em função da complexidade do tema e do pouco tempo (devido ao trabalho por aqui nas minhas paragens e às contingências da vida) a fim de estudá-lo como gostaria para honrar o compromisso. Entretanto, disse que aceitava com muito prazer, tanto pela falta de juízo quanto por não resistir à tentação de trabalhar com vocês.

Sabemos o quanto as brincadeiras são sérias e o chiste não passou impune quando comecei a escrever o texto que vos leio, pois gosto de me divertir seriamente com o trabalho. Claro que me referia ao juízo como a qualidade de ser prudente ou consciente, mas essa palavra (juízo) tem como primeira definição no dicionário a ação intelectual de julgar, avaliar e/ou comparar. Assim, o chiste me lembrou uma daquelas máximas que nunca é demais retomar: é fundamental nos livrarmos do julgamento, da avaliação e da comparação em nossa práxis, seja em intensão ou no exercício da transmissão. E, neste sentido, o Espaço Moebius é um lugar em que me sinto bem desajuizada. Não imprudente ou inconsequente, mas sem o imaginário do julgamento e esse é um dos motivos para estar aqui com vocês novamente. Portanto, aceitei mesmo pela falta de juízo e pelo prazer de trabalhar com vocês, o que me permite ter o desejo genuíno de dividir algumas dúvidas e conjecturas sobre o tema do pai a partir do que a clínica me traz.

Assim, tomei como ponto de partida a pergunta: o que posso escrever, a partir de minha práxis, sobre a temática do pai? O que posso escrever deslizou para o que é possível escrever sobre o Pai em uma análise. Esse é o rumo que pretendo tomar e a lembrança de situações clínicas evocou o bordão de Baby Dino, o qual emprestei como título para o trabalho.

Difícil esquecer da família Silva Sauro, animação americana do início dos anos 90 que segue mais do que atual.  Temas polêmicos e relevantes (que longe de se encaminharem para soluções se agravam a cada dia) eram ali abordados com humor ácido e crítico: questões ambientais, racismo, questões de gênero, violência, desigualdade social, desemprego, pobreza, sexualidade, envelhecimento, drogas, assédio sexual e moral. Disfarçada de série infantil, estava em cena uma inteligente crítica ao american way of life que nos atinge cada vez mais em cheio. Um dos personagens marcantes era o cativante, fofo e sábio Baby Dino com seu célebre bordão: não é a mamãe! Dino, inconformado e contrariado por seu bebê não o nomear afirmativamente como pai, tenta ensiná-lo a falar “papai”, pedindo que Baby repita as duas sílabas separadamente algumas vezes e depois as una formando a palavra tão ansiada. Baby obedece, repete as sílabas e, finalmente, pronuncia “papai”. Dino sai exultante para relatar o triunfo para a esposa, mas basta se afastar de Baby para ele bradar: não é a mamãe! Interessante como a cultura faz eco e retorna a mensagem de forma invertida: o pai afirmado pela negação na voz de Baby Dino, já era encontrado nos dizeres de Freud sobre o pai: aquele sempre incerto e impronunciável. Sim, algo de enigmático, negativizado, incerto e impronunciável concerne ao pai como nome, como função nomeante e como presença.  A partir daí, me interessou algumas formulações de Lacan que apontam nessa direção, leio para vocês algumas delas, extraídas do dos Seminários 4 e 18.

“toda a interrogação freudiana se resume no seguinte: O que é ser um pai? Este foi para ele o problema central, o ponto fecundo a partir do qual toda sua pesquisa realmente se orientou. Observem que, se este é um problema para cada neurótico, é também um problema para cada não-neurótico no decorrer de sua experiência infantil. O que é um pai? Essa pergunta é uma maneira de abordar o problema de significante do pai, mas não nos esqueçamos de que também está em jogo que os sujeitos, ao fim de contas, se tornam pais. Formular a questão o que é um pai? é algo diverso de ser-se um pai, aceder à posição paterna. …Se é fato que, para cada homem, o acesso à posição paterna é uma busca, não é impensável dizer que, finalmente, ninguém jamais o foi por completo”. (Lacan, 1995/sem4, p.209)

“a interrogação: O que é o pai? está colocada no centro da experiência analítica como eternamente não resolvida, pelo menos para nós, analistas” (Lacan, 1995/sem 4, p.383)

“Em algumas ocasiões, Freud tentou abordar um pouco mais de perto essa função do Pai, que é tão essencial ao discurso analítico que podemos dizer que, de certa maneira, é produto dele. Se assim lhes escrevo o discurso analítico, isto é o analista sobre o que ele tem de saber por parte do neurótico, e questionando o S barrado, para produzir uma coisa que recebe notação de S1, é porque podemos dizer que o significante mestre do discurso analítico, até o momento, é realmente o Nome-do-Pai. …Que é um pai? Freud não hesita em articular que ele é o nome que implica essencialmente a lei. É dessa maneira que Freud se exprime. Talvez pudéssemos desejar um pouquinho mais, afinal… O que constitui a presença, que não é de hoje, dessa essência do pai? Será que nós mesmos, analistas, sabemos o que é? De qualquer modo, eu gostaria de lhes assinalar que, na experiência analítica, o pai nunca é senão um referencial. Interpretamos essa ou aquela relação com o pai. Será que em algum momento analisamos alguém na condição de pai? Tragam-me uma observação. O pai é um termo da interpretação analítica. A ele se refere alguma coisa”. (Lacan, 2007/sem18. P.161)

Enfatizo, “o que é o pai?” está no centro da experiência analítica como não resolvido, configurando um enigma para nós analistas. Entretanto, a função do Pai é tão essencial ao discurso analítico que é um produto dele. Um enigma essencial que, ao mesmo tempo, é produto do próprio discurso. Ainda, embora o pai não seja mais que um referencial na experiência analítica, um termo ao qual se refere alguma coisa, é necessário não esquecer que as pessoas efetivamente se tornam pais e o acesso à posição paterna nunca é completo, é uma busca que não se alcança completamente, mantendo a condição enigmática do pai. Assim, leio o que é ser um pai e o que é o pai como duas perguntas, mas não excludentes ou desconexas, embora Lacan pareça duvidar que alguém faça do ser um pai uma questão de análise. Será mesmo, mestre? E, para além do nome que implica a lei, interrogo com Lacan: em que se constitui a presença do pai? Trago dois recortes clínicos, para pensarmos juntos essas questões.

Recebo um senhor, 70 anos, um homem simpático, culto e inteligente, sem grandes queixas, apenas um pouco entristecido com alguns fatos.  A família sempre lhe indicou análise devido às muitas dificuldades que viveu e, em especial, a rejeição que sofreu do pai, que não o reconheceu como filho e se eximiu dos cuidados paternos por acreditar que a mulher o traíra. Cresceu na casa de parentas solteiras, mantendo algum contato apenas com a mãe. Mas, a decisão de me procurar se associava à sua posição como pai e não à sua história (ou não história, segundo ele) com seu pai. Um de seus filhos revelou ter sofrido abuso sexual por um tio, irmão do paciente, durante o início da adolescência. Essa notícia o deixou desnorteado e revoltado. Aceitou a recomendação da família para a análise, mas não estava certo de que falando poderia melhorar algo desses sentimentos ou mesmo das marcas da história, pois sempre foi muito prático e objetivo. Entretanto, falava com desenvoltura, associava e se deixava interrogar por minhas observações. Falou de sua trajetória profissional, aspecto muito importante de satisfação em sua vida. Também falou da felicidade no casamento, do amor, desejo e respeito pela esposa ao longo de toda sua vida, uma mulher fantástica. Identificava que fora a profissão e o amor que o salvaram de não ser um marginal, não seguir solto na vida, sem laço como foi sua infância. Se emocionava ao falar do não reconhecimento dele pelo pai, das frustradas tentativas que fez para se aproximarem, da brutalidade, violência e ignorância do pai e do rompimento definitivo entre os dois. A recusa do pai em reconhecer a paternidade era classificada como enigmática e delirante. A imagem da mãe era de fragilidade e dependência, uma mulher submissa que, em sua leitura, jamais trairia o marido. Por sua vez, o filho acusava-o de ser relapso e isso também era um enigma, pois considerava que tentou ajudar muito esse filho e não entendia o silêncio sobre o abuso ao longo de tantos anos.  A relação com o filho sempre foi tumultuada e violenta, mantinha relações amorosas complicadas e não avançou profissionalmente. Sim, ele falhou, mas não entendia onde nem como. Uma falha enigmática e suas repercussões violentas na função do Pai em sua existência e também no exercício da função paterna. As associações a partir daí o levaram a falar do tempo, da passagem do tempo e do pouco tempo concreto que lhe restaria de vida e aquele ainda menor que, provavelmente, restaria ao pai. Neste ponto, após poucos meses de sua chegada, agradeceu e não quis prosseguir com as sessões. No momento era suficiente o que tinha falado, agora precisava decidir sobre alguns rumos a tomar, não descartando a possibilidade de retornar posteriormente. Não se achava relapso como pai e nem com o pai, o filho escolheu não contar sobre o abuso antes, estava em análise e teria que dar conta disso por ele mesmo. Com o irmão abusador já rompera laços. Em seu dito ecoou um dizer: não nego as falhas, mas fiz e faço o melhor que pude como filho e como pai e vou seguir assim, no pouco tempo que tenho, é isso!

Passo para o segundo recorte clínico.

Tendo em comum a demanda inicialmente centrada na questão do Pai e também na problemática do exercício da função paterna, mas com a diferença da brevidade do caso anterior e da intensidade dos sintomas, acompanhei um jovem acometido por crises de pânico e muito sofrimento em função do imperativo para matar um de seus dois filhos, o mais novo, na época com seis anos, que o invadia de forma incontrolável e assustadora. Seu estado era de franco desespero, temia que pudesse enlouquecer e matar o filho com o qual muito se identificava. Claro que amava os dois, mas o mais novo se parecia muito com ele. Falando disso, associa que seu pai morreu quando ele tinha seis anos. Um pai bruto e violento que agredia e humilhava os filhos e a mulher. A mãe, descrita como uma coitada, uma mulher sofrida e indefesa frente ao marido. Não se lembrava de nenhuma cena de carinho ou de aprendizado com o pai e recorda que, com frequência, desejava sua morte. Em uma noite de forte tempestade acabou a energia elétrica durante o jantar. Ele, aos seis anos, se assustou e ao sair correndo da mesa passou por cima de algo que depois veio a saber que era o corpo do pai que jazia no chão, vítima de um súbito e fatal ataque cardíaco. Conviveu com a culpa pela crença infantil de ser responsável pela morte do pai, que parecia se atualizar nos pensamentos invasivos de matar o filho: um ou outro, não havia lugar para pai e filho em sua história. Se o pai não tivesse morrido ele não teria sobrevivido à sua violência. Violência paterna que agora ele exercia em seus pensamentos e temia encarnar na ação de matar o filho, talvez matando a si mesmo nessa criança com a qual se identificava, como punição pela morte do pai e, ao mesmo tempo, mantendo o pai vivo através da condição de pai violento. Violência e brutalidade que também o impediram de seguir a carreira militar, o que foi uma grande decepção para ele. Tinha um bom cargo de supervisor em uma empresa, mas não era feliz com o trabalho e a empresa dava sinais de falência. Outra decepção era a sua infidelidade recorrente, se envergonhava disso, a esposa era uma ótima companheira e excelente mãe dos filhos, mas não uma mulher desejável para ele, embora fosse bonita seu desejo apontava sempre para as outras. As vozes intrusivas foram desaparecendo com o tempo de trabalho, aplacando a violência e a brutalidade associadas ao Pai, não havia mais temor de seus atos, uma nova versão do Pai se escrevia em sua condição de ser um pai. Seguia com seus casos extraconjugais, não sem alguma culpa, mas decidido que esse arranjo era o melhor para ele e para a família. Colocou o derradeiro ponto final na análise quando conseguiu um novo emprego, segurança de carro-forte numa transportadora de valores. Veio na última sessão trajando o uniforme de segurança para se despedir e agradecer.

Querido Lacan, achei muito interessante a observação para não esquecermos o fato de que as pessoas se tornam pais (pois, embora o Pai na psicanálise se escreva como uma função de nome e nomeante, não é sem consequências as pessoas se tornarem pais) e me intrigou o seu pedido/desafio para trazermos uma observação sobre analisarmos alguém na condição de ser um pai. É verdade que não me lembro de muitas situações em que as demandas iniciais se associaram ao que é o Pai (afinal, ele não é a mamãe!) e, muito menos ao ser um pai, mas, em alguma medida, isso ocorreu nos dois casos que relatei.

Destaco que em ambas situações clínicas temos uma versão violenta, brutal do Pai (Père-version, em sua faceta de gozo perverso e obsceno) e que não merece amor e respeito por não tomar sua mulher no lugar de causa de seu desejo. Entretanto, no segundo caso uma grave sintomatologia se instaura provocando muito sofrimento, o que não ocorre no primeiro exemplo. A despeito dessa diferença de sofrimento e organização sintomática e da brevidade do primeiro caso, acredito que os dois formularam uma equação sobre o Pai que colocava em cena o ser um pai a partir do que é um Pai. E, arrisco dizer que ambos produziram alguma resolução dessa equação (no primeiro caso, entendo que a resolução inclusive já se escrevera na vida do paciente e na transferência ele a ratifica), de forma incompleta, claro, mas suficiente para eles seguirem. Mestre, como você bem observou, a paternidade nunca é alcançada completamente, o que é um Pai se mantém como enigma e a resolução nunca é alcançada totalmente nessa ou em qualquer outra questão, sempre há um resto.

Bem, e não é exatamente isso que significa o Nome-do-Pai, e também sua pluralização, como resultado do discurso analítico? Que o sujeito se sirva deles como artifícios para seguir? De um jeito ou de outro, cada um ao seu modo, ambos seguiram. Não há trajeto melhor ou pior, há apenas trajeto possível. Só sei que nos dois casos, a paternidade de fato (o ser um pai) produziu questão e gerou alguma demanda sobre a duplicidade enigmática do que é um pai e do que é ser um pai. Além disso, a possibilidade de seguir passou pela função nomeante vinda de uma profissão, da relação com as mulheres e, paradoxalmente, da própria nomeação como pai, uma vez que essa pode servir como forma de escrever uma outra versão do Pai.

Neste ponto recupero um texto em que Isidoro Vegh (2001) apresenta três recortes clínicos com demandas também centradas, de início, nas questões referentes ao pai e todos com intenso sofrimento depressivo. De acordo com o autor, o primeiro rompeu a transferência após algum tempo de trabalho e com a intensificação dos sintomas, os outros dois continuaram a análise a partir do deslocamento da transferência para questões com a mãe, para num segundo momento chegar ao Pai. Interessante, chegar ao Pai em um segundo tempo… porque ele não é a mamãe!  Um pequeno trecho da leitura de Vegh sobre os casos:

“Não era errôneo o que podia ser interpretado desde o lugar do analista, em relação ao que, a partir de uma terminologia mais atual, se nomeia como père-version, que retém o sujeito num gozo obsceno. Onde estava o erro? Situo-o no desconhecimento de que a direção do tratamento implica também uma lógica dos tempos. Avançar na revisão da pèreversion quando o sujeito não fez o percurso suficiente em relação ao objeto incestuoso, ao Outro primordial, é encurralá-lo numa posição de angústia e depressão extrema, na medida em que esse tempo de intervenção desconhece também o valor propiciatório, paradoxal, dessa pèreversion. Não esqueçamos que permite que o sujeito fique separado, protegido do gozo do Outro primordial”. (Vegh, 2001, p.24)

A homofonia possibilitada por père-version, aponta tanto para o lado perverso do gozo paterno quanto para a eficácia de sua versão na função do corte em relação ao Outro primordial, o que possibilita que um pai pode ser amado e respeitado. Em outro texto do mesmo livro, Vegh (2001) desenvolve o conceito de Pai Real articulado à noção de presença, enfatizando que o outro presente sempre nos afeta desde o Real, ou seja, sem a cobertura das palavras ou da representação. Lembremos que a identificação primária, também denominada de incorporação é a identificação ao Pai Real ou ao Real do Outro Real que só adquire sua eficácia por retroação. Mais algumas palavras do autor:

“É uma presença que, ainda que esteja desde o começo no campo do Real – quando está – só adquire sua eficácia a seguir. Um tempo de retroação que implica que o desejo da mãe reconheça o valor dessa presença. Pois o pai pode estar sem ser sancionado como presença. Presença no Real que se oferece numa antecipação, requer uma retroação e implica que esse Pai sustente algo que bate desde o Real, uma quota de gozo. Presença de Pai que estará presente, talvez, num olhar, num tom de voz, talvez no que chamei – homólogo à esquize da visão e do olhar – o toque como esquize do tato”. (Vegh, 2001, p.78)

Assim, Isidoro sustenta que o Pai também é esse que sustenta a chegada de algo do Real, presença Real do Pai, mas se ainda não se pode suportar esse Real que aponta para o lado perverso do gozo paterno, a transferência e o trabalho fracassam e a angústia e a depressão imperam. Entendo que isso aponta para o fato de que chegar aos Nomes-do-Pai como produto do discurso analítico, como propõe Lacan, demanda tempo e é necessário respeitá-lo em sua logicidade. Achei interessante essa leitura produzida a partir da clínica de Vegh e já pude verificar algo dela em meu trabalho, o pai, a função paterna como nome e como nomeante, sendo produto de um segundo tempo, uma segunda volta da análise.

Para finalizar, retomo as questões guia do texto e digo que o que posso escrever sobre o Pai a partir de minha práxis é exatamente o que desliza para a segunda pergunta, ou seja, o que é possível escrever sobre o Pai em uma análise, o que cada um dos analisantes que acompanhei e acompanho, pode escrever sobre o Pai a partir de sua análise. Trata-se dos contornos possíveis ao buraco, ao enigma do Pai em uma análise, daquilo que se pode escrever como função paterna em sua existência e/ou no exercício da paternidade. E isso é absolutamente diverso, múltiplo e incompleto, sempre restará algo de enigmático, impronunciável, incapturável nessa escritura. Os exemplos que trouxe hoje são apenas duas maneiras de fazê-lo, duas formas diferentes de bradar e grafar: não é a mamãe!

 

XXXI Jornada de Psicanálise do Espaço Moebius: O pai, de Freud à Lacan.

Salvador, novembro de 2022.

Referências

 

1.Lacan, Jacques (1995). A relação de objeto. Seminário, livro 4 (1956-57). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar.

  1. Lacan, Jacques (2007). Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, (1971). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução Vera Ribeiro; versão final Nora Pessoa Gonçalves; preparação de texto André Telles. Rio de Janeiro: Zahar.

 

3.Vegh, Isidoro (2001). As intervenções do analista. Tradução: Paloma Vidal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Do desamparo à liberdade

Como a maioria das crianças, nossos textos costumam ser nomeados pré-nascimento, ganham título para a organização e divulgação do evento antes de serem escritos. Ao menos antes de serem digitados e revisados, pois, também como as crianças, acredito que eles já tenham algum tipo de existência anterior à sua redação concreta.

Este bebê foi nomeado poucos dias antes de iniciarem minhas férias, perto do Natal do ano passado. Lugar comum e polido falar que 2020 não foi um ano fácil. Prefiro dizer que foi infernal, mesmo fazendo a mea culpa e meia por ser branca, rica, saudável e ter todos os demais privilégios possíveis e imagináveis desta reles e frágil existência. E foi assim, privilegiadamente exausta e bebendo um drinque no inferno, que o bebê, da Rosemary que aqui vos fala, foi batizado. Atravessada pelo pandemônio e provocada a escrever tendo a angústia como tema-eixo, apareceram as duas palavras (bem óbvias para o momento) do título e proponho trabalhá-las unidas pela crase, indicando um percurso de uma à outra. Já adianto que não se trata de um caminho reto e linear, mas cheio de voltas, passando repetitivamente pelos mesmos pontos e, ainda, concluindo, no a posteriori, que o ponto de chegada comunga com o de partida.

E também não é assim uma análise? Um caminho tortuoso, repleto de volteios, no qual podemos considerar desamparo e liberdade como, respectivamente, os marcos de seu início e de seu fim, sendo que o fim se constata atrelado ao começo, em vários sentidos? Essa definição não deixa de comportar alguma verdade, desde que problematizemos os termos e consideremos a angústia como elemento fundamental ao processo.

Para iniciarmos a caminhada de hoje, tomo duas citações de Lacan (2005) do Seminário 10. A primeira está numa passagem onde enfatiza que a angústia é sem causa, mas não sem objeto, e faz uma articulação à Coisa como o objeto em causa na angústia.

 

É essa distinção que introduzo e na qual baseio meus esforços para situar a angústia. Não só ela não é sem objeto, como também muito provavelmente, designa o objeto, digamos, mais profundo, o objeto derradeiro, a Coisa. É nesse sentido, como lhes ensinei a dizer, que a angústia é aquilo que não engana. (p.338-39)

 

A segunda citação é de um tempo de concluir, bem no final do mesmo Seminário 10, onde Lacan (2005) reitera e sublinha a condição originária e estrutural da angústia e desdobra as implicações deste status para o lugar do analista na direção da cura.

 

Mas hoje não quero sair do primeiro nível, o chamado nível oral, sem apontar com clareza que angústia já aparece nele, antes de qualquer articulação com a demanda do Outro. Singularmente, essa manifestação da angústia coincide com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser sujeito. Essa manifestação é o grito.

Ora, o grito, faz muito tempo que já acentuei sua função como uma relação não original, porém terminal, com o que devemos considerar como sendo o próprio âmago do Outro, na medida em que este arremata-se para nós, num dado momento, como a forma do nosso próximo. Peço-lhes que se detenham por um instante no paradoxo que conjuga aí o ponto de partida do primeiro efeito de cessão, que é o da angústia, com o que será, no final, algo como seu ponto de chegada. A diferença é que, com esse grito que lhe escapa, o lactente não pode fazer nada. Ele cede alguma coisa, e nada mais o liga a isso. (p.354)

Sigamos a letra e, a partir da primeira citação, relembremos rapidamente a Coisa para avançar nas articulações com o segundo extrato e com o recorte aqui proposto em termos de desamparo e liberdade. Nunca esqueçam, Lacan era freudiano e isso significa que lia Freud, produzia sua leitura de Freud. Tentemos seguir seu conselho e fazer como ele, sem imitá-lo.

A apresentação de das Ding é feita por Freud no Projeto de psicologia (Freud, 2007 [1950 (1895)]) através da formulação de um primeiro complexo perceptivo organizado em duas partes, sendo a primeira caracterizada pela estabilidade e imutabilidade e a segunda, marcada pela instabilidade e flexibilidade. Neste modelo perceptivo, a Coisa é localizada em sua parte inalterável e está atrelada aos primórdios da organização psíquica. Um centro, ou melhor, um furo, em torno do qual gravitam as representações de coisa, o que significa dizer que, para Freud, das Ding não pertence ao campo das representações, mas, paradoxalmente, está presente no psiquismo ainda que por sua ausência, como evidenciam as palavras de Lacan (1997) reproduzidas a seguir:

Das Ding é o que – no ponto inicial, logicamente e, da mesma feita, cronologicamente, da organização do mundo no psiquismo – se apresenta, e se isola, como o termo de estranho em torno do qual gira todo o movimento da Vorstellung, que Freud nos mostra governado por um princípio regulador, do dito princípio do prazer, vinculado ao funcionamento do aparelho neurônico, é em torno desse das Ding que roda todo esse processo adaptativo, tão particular no homem visto que o processo simbólico mostra-se aí inextricavelmente tramado (Lacan, 1997 [1959-60], p.76).

Articulando: a Coisa está na origem lógica e cronológica e é o objeto (em sua particular condição de furo) em causa na angústia, a qual coincide com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser sujeito e, por isso, é o afeto que não engana. Assim, temos a associação da angústia com o nascimento, mas não com a ideia de um trauma de separação, mas com a vinda ao mundo, com a passagem de um meio ao outro e com o grito como efeito dessa passagem e da necessidade de respirar.  É o que lemos também um pouco mais à frente:                                                                                

A angústia foi escolhida por Freud como sinal de algo. Será que não devemos reconhecer o traço essencial desse algo na intromissão radical de uma coisa tão Outra no ser vivo humano, já constituída para ele pelo fato de passar para a atmosfera, que, ao emergir neste mundo em que tem respirar, ele fica, a princípio, literalmente asfixiado, sufocado? Foi assim que se deu o nome de trauma – não existe outro –, o trauma do nascimento, que não é a separação da mãe, mas a própria aspiração de um meio intrinsecamente Outro. (Lacan, 2005, p. 355)

Agora não fica difícil associarmos o desamparo ao desenvolvido até aqui. Afinal, ele também está na origem de nossa ex-istência, lógica e cronológica. Desamparo radical atrelado ao complexo de semelhante, proposto por Freud, onde o outro como semelhante deverá fazer, estruturalmente, as vezes de um Outro auxiliador e implicado nas vivências e representações de dor e de satisfação atreladas ao princípio regulador. Desamparo radical também associado à aspiração de um meio intrinsicamente Outro, à intromissão de uma coisa tão Outra constituída no fato de passar para atmosfera e ter que respirar, onde se fica, a princípio, asfixiado, sufocado. A angústia, portanto, é de uma ordem originária associada à intrusão do Outro e também é sinal desse perigo originário. Então, a angústia como sinal, como afeto que não engana o eu e adverte o sujeito, é referida ao desamparo original; é a um perigo dessa ordem radical e originária que se refere a angústia.

Muito bem, desamparo associado ao ponto de partida. Ponto de partida de nossa ex-istência, ponto de partida da angústia e, acrescento, ponto de partida de uma análise. Não é assim que uma análise se inicia: com o desamparo de um saber que é creditado ao analista e com a angústia por tal desamparo? Com a ameaça de um perigo originário, de alguma forma atualizado, de desamparo e intrusão que a angústia sinaliza? E também com a angústia pelo fato de, na verdade, nada querer saber sobre o dito saber insabido, a busca é apenas pelo amparo de um saber alheio supostamente existente e que libertará da angústia. Eis aí a liberdade, vamos a ela, ao dito ponto de chegada.

Comecei com citações de Lacan (2005) e continuo a caminhada rumo à chegada, emprestando as palavras de mais duas pessoas. Uma delas, bem conhecida de vocês, é Charles Melman (2020). Palavras proferidas em uma apresentação on-line no ano passado, dialogando com Alfredo Jerusalinsky sobre uma leitura a respeito da contemporaneidade, em especial sobre a crise moral e intelectual que estamos vivendo.

Considerando as criaturas que somos, será que podemos suportar a liberdade? Teríamos, historicamente, alguma organização social onde se haja celebrado o culto da liberdade? Precisemos a que nos referimos como liberdade. Podemos dizer que a liberdade consiste em reconhecer a lei que vem da linguagem e, a partir daí, respeitá-la. Não é a que vem de um pai, de uma autoridade política, ou do objeto mas a que vem daquilo que a linguagem estabelece como lei. Isso existe? Ou é só um fantasma? …Freud e Lacan nos ajudam a fazer essas perguntas e também a respondê-las. E essas respostas modificam a relação que temos com o nome do pai, para que não sejamos nem dependentes do narcisismo, nem adictos do objeto. Então, isso talvez não seja impossível… Se nós, analistas, temos algum dever é o de contribuir para o melhor conhecimento dessa alienação que nos faz sofrer a linguagem, para dizer que dessa alienação podemos deixar de ser vítimas.

Ao contrário de um nome bem conhecido de vocês, a outra pessoa da qual empresto umas palavras lhes é anônima, trata-se de uma analisante que, falando da angústia que ela associava à palavra desamparo, definiu liberdade mais ou menos assim: “liberdade é ficar livre da dúvida, quero me libertar da dúvida, essa é a liberdade que tanto procuro, para deixar de me vitimizar.”  Voilà! Nesse mundo globalizado, será que minha analisante anda fazendo sessões on-line com Melman?

Entretanto, ainda que ela fale de uma liberdade da vitimização, como Melman, quando almeja libertar-se da dúvida temos uma ambição complicada e talvez avessa à proposição do psicanalista… Afinal, além da dúvida estar no cerne da concepção de sujeito, ela não é a causa da angústia, como parece enunciar essa moça. A angústia é um afeto que não engana, está fundado na certeza, está de fora da dúvida. A certeza é o que paira na angústia. Então, não é possível acompanharmos a definição de liberdade através da ideia de ausência da dúvida e da consequente diminuição da angústia. Isso posto, podemos mesmo identificar um conflito entre as duas posições. Afinal, Melman associa a liberdade à alienação que sofremos com a linguagem e, por sua vez, ao almejar se libertar da dúvida para amenizar a angústia, essa jovem tributa ao conceito de liberdade um escape ou uma anulação da referida alienação.  A princípio parece mesmo um embate, mas vamos com calma, com a calma que devemos ter em nosso trabalho diariamente.

Melman (2020) propõe que a liberdade é a possibilidade de reconhecermos a lei que advém da linguagem, mais que isso, é estarmos atravessados por seus efeitos, operarmos respeitosamente a partir de seu reconhecimento. E isso tem como resultado a liberdade de uma condição de vítima, uma alienação reconhecida sem vitimização e com liberdade. Liberdade da dependência do narcisismo e/ou da adicção ao objeto. Observem: reconhecer a lei que advém da linguagem equivale a reconhecer ou acolher a falta radical que está na origem do parlêtre. Sim, aquela falta radical que se associa ao desamparo radical na origem, à Coisa como furo, objeto mais profundo e em causa na angústia. Temos aí o fim comungando com o começo, desamparo e liberdade atrelados desde o início, mas só na chegada saberemos disso. E aqui a chegada pode ser pensada como o final de análise.

Com tal perspectiva, retomemos a definição de liberdade dessa jovem: “liberdade é ficar livre da dúvida”. Sabemos que a angústia não engana, mas o sintoma sim, esse é enganoso e, portanto, potencializador da dúvida. Também sabemos que se trata de alcançar alguma liberdade ou desembaraço do sintoma com a análise. Desembaraço que advém, precisamente, de uma melhor acolhida, de fazermos as pazes com a nossa condição de parlêtre, com a falta radical na origem, ou, como disse Melman, de um melhor reconhecimento da alienação que sofremos da linguagem para deixarmos de nos dizer vítimas dela. Então, a esperada liberdade da dúvida advinda do sintoma é viável e terá como efeito a desvitimização. Mas e a angústia, vai diminuir como espera a analisante? Sim, a angústia vivida por ela, o afeto no campo da experiência, a angústia como sinal ao eu e advertência ao sujeito deve diminuir, exatamente pelo efeito do reconhecimento da alienação na linguagem, pela acolhida da falta radical na origem. Se deixamos de ser vítimas, de sermos dependentes do narcisismo a ameaça, o perigo, a força à qual estaríamos submetidos, perde sua potência.

Lembrem, a angústia como sinal, como afeto que não engana o eu e adverte o sujeito, é referida ao desamparo original, coincidindo com a própria emergência no mundo daquele que virá a ser sujeito e, por isso, é o afeto que não engana. É a um perigo dessa ordem radical, intrusiva e originária que se refere a angústia que tem a Coisa como o objeto (em sua particular condição de furo) em causa. Pois bem, a proposta é que na chegada, longe de elidirmos o ponto de partida, possamos reconhecê-lo como condição libertadora que nos permita respirar um pouco mais aliviados, todo dia, todo dia, todo dia. Paradoxal? Claro, como tudo o que esteia a psicanálise.

Grata por caminharem comigo, mais uma vez.

 

VIII Jornada ALPL – A Angústia

17 e 24 de abril de 2021

 

Referências bibliográficas

 

FREUD, S. Proyecto de psicología [1950 (1895)]. In: Obras completas. Vol I. Buenos Aires: Amorrortu, 2007

 

LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-60]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 396p.

 

LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. 366p.

 

MELMAN, C. https://www.youtube.com/watch?v=xrAyPqBRxVM.

 

 

 

A transmissão a-live?

Queridos amigos moebianos, parabéns pelos 30 anos da instituição, pela organização primorosa do evento e muito obrigada pela oportunidade de participar desse momento tão especial. Saudades de vocês e do clima acolhedor e alegre com o qual sempre me recebem para o trabalho e para as festas. Um particular agradecimento à comissão organizadora, à Eliecim pela parceria nesta mesa, à Maíra pela coordenação da mesma e a todos aqui conectados.

A questão que trago para dialogar com vocês, grafada no título da apresentação, nasceu algum tempo antes de receber o gentil convite de Sandra, em nome da comissão organizadora, para essa Jornada. A pergunta já existia e produzia algum burburinho interior, o convite transformou-a no título do texto e me convocou a dar ouvidos ao barulho e a trabalhar com mais afinco no tema. Exatamente o que se espera quando há transferência e também o que compõe o conceito de transmissão: convocação ao trabalho e espaço para o saber-fazer. E, falando em transferência e em transmissão, não posso deixar de dedicar esse trabalho aos que foram ou são meus analisantes e aos meus colegas da ALPL (Associação Livre – psicanálise em Londrina).

Em meados de abril com o caos instalado e já anunciada sua delonga, saber da falta de opção e, mesmo, levantar a bandeira junto à instituição da qual sou membro para sustentarmos o trabalho com a psicanálise neste espaço virtual, não acalmou o incômodo frente às novas dificuldades e limites impostos à clínica psicanalítica em intensão e em extensão nos nossos dias. Ao contrário, o mal-estar foi ganhando contorno e consistência de questionamento a cada atendimento on-line, reunião institucional,  atividade de ensino e tentativa de participação em alguma das centenas de lives e eventos na internet ao longo desses meses tão bizarros e tristes. Desde Freud somos subversivos, nadamos contra a maré e, como reza a lenda temperada com uma boa pitada de ironia para o momento, disseminamos a peste. Críticos contumazes das redes sociais e do desencontro e alienação produzidos pelos canais virtuais, cá estamos nos apoiando nesses meios para tentar sustentar a transferência e manter viva a psicanálise. Enfatizo que do mal-estar frente à inevitável e necessária adesão ao trabalho virtual, nasceu o chiste em forma de pergunta e composto por uma pequena transliteração: “a transmissão a-live?” Embora a angústia a respeito da transmissão da psicanálise se refira tanto aos atendimentos on-line quanto às atividades  de ensino pela internet, meu recorte hoje se aplica especialmente ao último.

A dúvida a respeito da sobrevivência da psicanálise é tão antiga quanto sua existência (Freud já se questionava sobre isso) e Lacan previu e nos advertiu do triunfo  da religião e de que a difusão da psicanálise não equivaleria à sua permanência e longevidade. Considero esse um ponto muito importante e delicado atualmente. É certo que a difusão da psicanálise nunca foi tão grande, mas, poderíamos dizer o mesmo sobre o alcance de sua transmissão? Tenho sinceras e preocupadas dúvidas a esse respeito. Temo que os jatos de dispersão em massa nas redes colaborem mais para a pulverização da psicanálise e o aumento dos riscos de distorção em sua concepção de ensino do que para a sua continuidade e necessária reinvenção. Considero imperativo nos ocuparmos de quais são e serão os efeitos de nós analistas nos lançarmos nas redes. Bem, uma consequencia possível do ato de jogar-se é cair. Pois é, e diz o ditado: “caiu na rede, é peixe”.

Ora, Zeila (diria minha faceta coach), não seja tão pessimista, veja o lado bom das coisas: é obvio que algo se perde, mas foquemos nos ganhos (que são muitos) e vamos usar a tecnologia a nosso favor! Pois é, face coach, anda difícil manter o otimismo nesse mundão, mas não acho que seja o caso de simples pessimismo pandêmico. Trata-se de análise crítica e, em minha defesa, te digo que aí onde você indica vantagens (que são reais, não nego) é também onde mora o perigo… A propósito, seria o peixe capaz de usar a rede a seu favor? É possível que esse tipo de tecnologia, numa via de mão única, nos sirva sem que sirvamos à ela ou sem que ela cobre um preço muito alto e torne desvantajoso o negócio? E, ainda, se no conceito de transmissão o que conta é mesmo a perda, o resto, o intransmissível, quais são os ganhos que nos interessam aí?

Não são os ganhos advindos do sucesso da difusão, da repercussão e da popularidade que balizam a transmissão e o ensino na psicanálise. Também não são as agendas lotadas, inclusive daqueles em início de carreira, que atestam a sobrevivência da psicanálise em tempos de cólera. É óbvio que é ótimo o acesso facilitado a nomes e instituições distantes e interessantes. Ampliamos horizontes, fazemos novos contatos, podemos estar aqui hoje trabalhando ainda que com limites. Ok, tudo bem, muito legal. Excelente a maior procura das pessoas por algum tratamento psi (digo algum, pois nem sempre sabem o tipo de terapêutica que buscam e não são apenas as agendas de analistas que estão movimentadas) e fico feliz que os jovens iniciem suas clínicas com muito mais tranquilidade do que a minha geração ou as anteriores. Entretanto, tais fatos não calam ou respondem à indagação em voga sobre o alcance e a sobrevivência da transmissão e, portanto, da psicanálise. Ao contrário, como procurei delinear até aqui, a fomentam. Visionário, Lacan (2002) já instigava seus ouvintes e tocava no tema em 1974, muito antes de se imaginar a existência da internet, a velocidade e os embustes gerados pelas redes:

“Convencionou-se chamar de sucesso o bruaá, isto é, o que faz multidão. Convencionou-se isso no público. Mas para nós, analistas, este sucesso não tem nada a ver com o que nos interessa; e este sucesso é algo bem diferente do que seria o nosso, quero dizer, aquele ao qual nós nos referimos quando falamos daquilo que somos feitos para registrar, ou seja, o fracasso. O sucesso, para nós, limita-se ao que eu chamarei de resultado. Devo dizer que sobre isso, sobre resultados, aqueles que contam, eu registrei alguns, até bem recentemente. Aconteceu de me enviarem um magnífico trabalho sobre a escritura e a psicanálise. É de um autor que mora no sul da França. E, por causa disso, ele só consegue ecos do que eu ensino. Não pode estar presente todo o tempo quando falo. Então, há de certo modo uma coisinha que não tem nada a ver, o que me garante, pois, que o resto é bem de sua autoria.”  (Abertura do Congresso da Escola Freudiana de Paris, 1974. Cadernos Lacan, volume 2, APPOA, 2002)

Nosso sucesso tem relação com o fracasso inerente à transmissão em função do impossível de transmitir (profissão impossível de Freud) e não com o bruaá característico das redes. Lacan identifica a distância e o alcance apenas dos ecos de seu ensino como favorecedores do sucesso, do resultado e, portanto, da transmissão. O sucesso da transmissão em seu ensino, não estava na multidão, nas ondas de burburinho em torno de seu nome ou, muito menos, na reprodução de suas formulações. O sucesso estava no resultado de uma nova transmissão, um bom texto autoral que, na aposta de Lacan, fora garantido pela distância com a qual o autor do texto alcançava apenas os ecos de seu ensino.

Essa fala de Lacan me parece muito articulada à ultima intervenção de Carlos Ruiz, pouco antes de sua morte, a qual tive a grata oportunidade de escutar presencialmente, ao vivo e a cores. Assim que aceitei o desafio para o trabalho de hoje com vocês e, como disse no início, já ocupada com minha pergunta tema, fui invadida pela lembrança da apresentação de Carlos Ruiz na Lacanoamericana de 2013 em Buenos Aires. Fazia uns três ou quatro anos que começara uma nova fase em meu percurso como analista com mudanças em algumas concepções a partir da prática clínica vivida ainda com mais intensidade e dedicação. Esse tempo foi coroado com o movimento para a fundação da ALPL (Associação Livre – psicanálise em Londrina) em 2012, um ano antes de ouvir o trabalho referido. Assim, naquela Lacano, maratonei especialmente os trabalhos sobre o ensino, a transmissão, as instituições. Portanto, já havia selecionado a apresentação de Carlos Ruiz sobre a transmissão e também porque conhecia seu nome como um grande mestre, figura pioneira da psicanálise na Argentina. Mas, não sabia que ele era ele. Explico, contando com a paciência de vocês para continuarmos um pouco mais neste pequeno desvio e para ouvirem uma historinha.

Cresci com pais velhos, temporona de oito irmãs, meu pai tinha cinquenta anos quando nasci e minha mãe, quarenta e seis. Assim começou meu amor pelos velhos (e não tenho necessidade de amenizar com o termo idoso, porque não acho feio ser velho, apenas um pouco triste) gosto deles e eles de mim, a gente se atrai e se dá bem, simples assim. Sempre enxergo os velhos, para mim eles não são invisíveis como costuma acontecer socialmente. Então, perambulando sozinha por um dos intervalos na Lacano enxerguei o velho Carlos Ruiz, sem saber que ele era ele. Solitário, muito debilitado, pálido e tão magro que parecia que o vento o levaria, sentado num canto e cabisbaixo. Estarrecida e intrigada, paralisei e não conseguia tirar os olhos dele. O que fazia ali aquele senhor visivelmente muito adoentado, cansado e com ar triste? Como tinha energia para uma Lacano, com aquele corre-corre o tempo todo de um lado para o outro? Despertei do transe com alguém da multidão esbarrando em mim e pedindo “perdon” e fui para a próxima sala de conferências para ouvir, adivinhem: Carlos Ruiz. Ele era ele e eu chorava na platéia.

A voz fraca emitiu uma fala breve e pontual com uma clareza e simplicidade invejáveis. Matemático de formação inicial e mestre na topologia de mais de uma geração de psicanalistas, não precisou recorrer a nenhuma referência direta à ela para que a mesma operasse em sua fala. Poucas palavras a partir de uma posição segura de quem sabe do impossível de falar tudo e, por isso mesmo, com um peso de transmissão difícil de mensurar. O título da apresentação foi: “Forçado a reinventar a psicanálise” e vou reproduzir aqui um de seus poucos, curtos e densos parágrafos:

Havia pensado intitular esse trabalho “Fim da transmissão”, jogando com a frase com que se encerravam à meia-noite as transmissões de rádio, para haver tempo de realizar os ajustes necessários para a transmissão do dia seguinte. Mudei o título, mas o tema da pausa para realizar os ajustes segue presente.

Sim, a pausa para realizar os ajustes, seja na clínica em intensão ou em extensão, segue fundamental. Mas, em especial no recorte sobre o ensino que aqui me interessa, essa pausa não estaria comprometida, afetada pelo excesso de ofertas, de imagens, pelas gravações que podem ser vistas quando e quantas vezes quisermos, pela ilusão de toda a transmissão, pela falta do intransmissível, pela falta do “fim da transmissão”? Também visionário Ruiz, não acho que foi ao acaso que em 2013 (com a presença mais do que estabelecida da internet e sempre prometendo ampliar seu domínio) elegeu, como metáfora para falar da transmissão da psicanálise, fazer alusão ao rádio (onde temos apenas a transmissão sonora) e de uma época em que o limite temporal diário era estabelecido pondo fim à transmissão. O rádio de outrora e com um tempo de funcionamento bem diferente do que estamos hoje habituados parecia mais apropriado para falar da transmissão no campo psicanalítico. Além disso, me parece pertinente ler em sua escolha o fato de que o meio da transmissão também conta, do contrário ele poderia ter usado como exemplo a televisão no tempo em que a transmissão também se encerrava à meia noite e ficávamos apenas com a tela listrada. A esse respeito, de que o meio conta e com isso não vale a máxima “os fins justificam os meios”, cito Porge (2009) sobre a transmissão via escrita:

Na transmissão da clínica psicanalítica, é preciso contar com o que se transmite – o fato clínico ou assim suposto – e com o meio de transmiti-lo.

O meio de transmitir faz parte do que é transmitido, e às vezes é difícil distinguir um do outro; ele atua sobre o leitor, chegando mesmo ao caso em que o meio de transmissão, o suporte da mensagem é a própria mensagem. (p.14)

Meus questionamentos parecem encontrar ressonância no posicionamento desses autores. O meio da transmissão não é sem consequências, faz parte da transmissão e o suporte da mensagem pode chegar a ser a própria mensagem. O meio de transmissão afeta o leitor e sabemos que a função leitor ou o lugar de leitor é fundamental na transmissão.  Será que o trabalho pelas telas, lives, videoconferências,  postagens, grupos de estudo e cursos on-line de psicanálise favorecem a função leitor ou convocam mais facilmente o lugar de expectador? Aposto mais na segunda opção, o que não exclui a possibilidade da primeira operar em alguns casos, mas não creio que ela seja favorecida pelo meio de transmissão em questão. A propósito, o lugar de expectador ou de aluno, no sentido daquele que recebe o conhecimento do mestre, está presente nos já antigos (e criticados pela maioria de nós) cursos de formação ou de especialização em psicanálise. Me parece que o uso dos canais virtuais para o ensino da psicanálise tem maior potencial para facilitar a aproximação desse mercado de especialidade do que para viabilizar a necessária e forçosa reinvenção da psicanálise. Além do mais, o meio em questão é favorecedor do bruaá, sucesso que não nos interessa, barulho que pode abafar o desejo de transmitir o impossível de transmitir e o despertar da invenção.

Ainda destaco a inflação imaginária e sua exploração pelo marketing digital, a proteção fornecida pela tela, as gravações que prometem nada perder, o conforto do não contato com o outro, o comodismo advindo de tudo isso, a síndrome do não ficar de fora (FOMO – fear of missing out). Condições mais do que propícias para a ausência da pausa necessária aos ajustes e para a destituição da essencial posição de leitor, comprometendo os elementos centrais na transmissão que são o intransmissível e a transmissão do desejo de transmitir. Com isso, o a fica apartado, fica de fora da live.

Nessa direção, Porge (2009) se encontra mais uma vez com Ruiz na pausa associada ao instransmissível e à reinvenção: “o intransmissível está no coração do desejo de transmitir, não como inefável perdido nas areias do deserto, mas como soleira para a invenção” (p.15). É o intransmissível que opera na transmissão como motor para a invenção e sobrevivência da psicanálise. Claro que é possível estudar as obras de Freud e Lacan na universidade ou num curso de especialização de alguma instituição ou em alguma proposta parecida presencialmente ou on-line. Mas, os efeitos disso costumam ser a redução da psicanálise à uma teoria a ser dominada e posteriormente aplicada. E de nada adianta que nesses meios se sustente um blá-blá-blá mecânico e repetitivo de que a teoria é  insuficiente, de que análise pessoal é o fundamental para a produção de um analista, etc, etc. Esse bordão como conhecimento ensinado pelo amo e adquirido pelo discípulo só serve para sustentar a cisão entre teoria e prática e para a instituição do expectador no lugar do leitor, ambos elementos que condenam à morte a transmissão da psicanálise.

Bem, então os problemas levantados não são novos e nem exclusivos do trabalho via internet? De acordo. Lembro-os de que a preocupação com a sobrevivência da psicanálise é tão antiga quanto a sua existência e um dos questionamentos levantados é a semelhança de algumas propostas on-line que proliferaram a partir da pandemia com modelos anteriores, presenciais ou não. Mas, a despeito da antiguidade da questão, entendo que ela ganhou peso com as circunstâncias que nos conduziram à necessidade das práticas via internet e, talvez, tal necessidade (que nesse caso não é a mãe da invenção) tenha produzido algum afrouxamento ético e pouca reflexão crítica. É o que tenho escutado, inclusive numa pequena e informal sondagem que fiz com alguns colegas a respeito do tema. As observações que recolhi foram sobre certa dificuldade de concentração, falhas na tecnologia e restrição na interação, um caráter mais de queixa do que de análise crítica. No geral, a ênfase foi em comentários sobre ganhos (meu lado coach está exultante com esse resultado) em especial pelo acesso à cursos e grupos de estudo dos mais diversos lugares. Os mais jovens, para quem a internet é praticamente um habitat, chegam a considerar esse um ponto positivo da própria pandemia: fazer inúmeros “cursos de psicanálise”, assistir às “aulas” quase todos os dias, geralmente de variadas instituições no afã bem intencionado, mas equivocado, de adquirir um saber sobre a teoria que sirva para a prática clínica.

Talvez não seja falta de análise crítica e a equivocada seja eu que sou cinquentona, não nasci conectada e gosto de velhos. Quiçá, mas para tirar a teima será necessária uma pausa para os ajustes necessários. Assim, por hoje, fim da transmissão.

 

 

 

 

 

 

 

O analista na estrutura

Um analista é ao menos dois.

Essa formulação de Lacan, foi a primeira frase que me ocorreu no momento inicial da tela em branco para a redação deste texto. Decidi escutá-la, ampliando um pouco o caminho antes traçado e parcialmente trabalhado, em um de nossos fóruns dedicados ao tema do objeto da psicanálise, ainda em 2021. Entendo a produção para nossa Jornada, que sempre marca o encerramento de um eixo temático, de forma similar ao trabalho de desenlace de um cartel: fruto singular dos efeitos, das ressonâncias de um tempo de trabalho na companhia dos colegas de escola. As letras que se precipitarem efetivamente como resto desse percurso, serão testemunho da legitimidade do funcionamento único e peculiar de uma escola de psicanálise, onde um a um, mas não sem outros, sustentamos nossa práxis no enlace entre intensão e extensão. Só assim, acredito, há alguma transmissão possível da psicanálise.

No marco dos 10 anos da Associação Livre – psicanálise em Londrina e na Jornada cujo tema é o objeto da psicanálise, dar ouvidos à frase que se impôs como necessária de ser escrita, estendendo os horizontes iniciais é, para mim, seguir uma ética do que faz escola. Não por acaso, sou tomada nesse momento pela necessidade de trabalhar, ainda que de forma breve e tangencial, sobre o um ao menos dois. Um analista, mas duas funções e/ou dois espaços que habita e transita de forma articulada, a saber, a intensão e a extensão. Assim, em um primeiro tempo (quando do trabalho no fórum e da escolha do título), o analista na estrutura fazia alusão à presença de um analista compondo o quadro clínico (em intensão, portanto) fazendo parte da estrutura que se arma ou se escreve em transferência, indicando que o objeto da psicanálise não é sem a presença de um analista. Agora, levando em conta o um ao menos dois, o analista na estrutura também se refere à um analista na escola (em extensão, portanto), fazendo parte, arrisco dizer, da estrutura da escola, espaço por excelência para a transmissão da psicanálise através do inexorável enlaçamento entre intensão e extensão.

Vejam, se o objeto da psicanálise é o sujeito do inconsciente e sua estrutura fantasmática e sintomática como efeito do discurso analítico, tal objeto só pode ser concebido em intensão e atrelado à função presença do analista e ao operador desejo do analista na direção da cura. Mas, se um analista é ao menos dois, a intensão não é sem a extensão e vice-versa. Portanto, o objeto da psicanálise, insisto, aquele concebido em transferência, não exclui os efeitos de trabalho de um analista em extensão, ou seja, do trabalho de transmissão da psicanálise que é o que faz escola. Assim, no texto de hoje, meu interesse é desdobrar a proposição contemplada no título (o analista na estrutura) nos campos da intensão e da extensão, acompanhando a premissa um analista é ao menos dois.

Foram as lições de maio de 66 do Objeto da Psicanálise, onde Lacan (2018) trabalha temas centrais do seminário a partir da obra As meninas, de Velasquéz, que me permitiram fazer o recorte em questão. Ali, foi possível ler que o analista participa (através da função presença) do inconsciente, do fantasma, do sintoma do analisante, ou seja, da estrutura do quadro clínico que se arma em transferência. São lições tão capturantes quanto a tela magistral e com implicações de extrema importância clínica, desde a diferença radical em nosso campo quanto à questão diagnóstica até a novidade conceitual e a singularidade do que concebemos como inconsciente, sujeito, fantasma e ato analítico. Ou seja, são os fundamentos de uma ética e de uma direção de cura que são contemplados nessas aulas.

A tela de Velasquéz convoca vários enigmas, comentados e interpretados diferentemente em várias áreas de saber. Um deles é o efeito de arrebatamento que a obra produz, dentro e fora parecem em continuidade e temos a impressão de participar do quadro. Além do tamanho da tela, colaboram para tal sensação o trabalho de perspectiva (considerado inovador), o uso muito particular de luz e sombra e o jogo de olhares. Os olhares dos personagens não se cruzam, parecem olhar alhures e, ao mesmo tempo, na direção do expectador. Olhamos e somos olhados pelo quadro. Lacan (11/5/66) observa que esses olhares aparentam focar num mesmo ponto invisível que não se sabe qual é, nem se está dentro ou fora do quadro. Ele associa o objeto a, o olhar como objeto a, a esse ponto invisível grafado pelo visível dado a ver na composição da tela.

No Seminário, também é sublinhada a relevância do quadro dentro do quadro (aquele que vemos em reverso na tela) e proposta sua função de tela, em dois sentidos. Primeiro, como suporte onde seria projetada, por um jogo de espelhos e de luz, a imagem do casal real que se encontraria em um aposento adjacente. O reflexo no espelho, atrás de Velasquéz, seria de uma imagem do casal real projetada nesse quadro que vemos o reverso, uma espécie de protótipo da televisão. Em segundo lugar, a função de tela no sentido de anteparo, daquilo que barra, faz escansão, cava um buraco, um hiato entre o olho que vê e o olhar que escapa. Mais uma vez, um visível que marca o invisível e excluído.

Outro ponto enigmático é o que Velásquez, presente no quadro, estaria pintando. Na contramão da maior parte dos comentadores da obra, Lacan não compartilha desse enigma e afirma que ele pinta a cena que vemos, mas em outra tela fora da nossa visão e escondida pelo quadro em reverso, o que justificaria o pintor estar distante deste. Observem que a presença de Velasquéz e da tela em reverso marcam a entrada no quadro do que deveria estar de fora e, portanto, invisível. Elementos que reafirmam um exterior no interior, um invisível no visível, um fora-dentro-fora em continuidade.

Ainda há destaque para o efeito de descentramento produzido na obra por duas linhas de estrutura que cortam o quadro e estabelecem dois centros. Um deslocado pelo ponto de fuga projetado na porta onde está Nieto e o segundo no espelho, onde se reflete a imagem do casal real, como centro do quadro. Por sua vez, o pintor participando da cena também tem efeito de descentramento, tanto pela introdução de um êxtimo, quanto pelo fato histórico de haver uma primeira versão do quadro em que ele não estaria ali. Originalmente, a princesinha recebia um cetro como símbolo de seu futuro reinado, por ser filha única do casal. Com o nascimento de um irmãozinho, novo herdeiro do trono, Velásquez pintou-se na tela para deslocar (descentrar) a questão original do quadro e amenizar o desencantamento da princesinha.

Além da condição de êxtimo e de descentramento, Velázquez está no quadro em uma situação de pura presença, em suspenso, en souffrance, em espera. Presença que funciona como tela em branco para projeção. Ele olha alhures, para o referido ponto invisível que não se sabe qual é, participando (a partir da condição de tela, fazendo quadro) da montagem pulsional escópica do olhar como objeto a. Pura presença, êxtimo, descentramento que produz corte, fratura. Velásquez é um elemento da estrutura do quadro, cuja presença em espera faz tela e abala as certezas, o centro, corta e inova. E não é essa a posição, o lugar do analista na direção da cura: fazendo tela, abalando as certezas, o centro, cortando e inovando?

O trabalho de Velásquez na construção da estrutura do quadro é apoiado em leis da geometria projetiva que permitem questionar o campo da representação. Assim também é o nosso trabalho, apoiado em certas “leis”, no sentido de operadores que legalizam e orientam nossa práxis. É o desejo do analista que opera, sustentado pela presença do analista, e põe em marcha nosso campo, sempre subversivo de uma realidade representacional. Lacan ainda indica que, para além da representação de uma realidade, são os representantes da representação que temos no quando de Velasquéz. E é o conceito freudiano de representante da representação que permite à Lacan subverter a fonte linguística com a sua proposição de significante com função de operador estrutural do vazio como causa, fundamento da noção de sujeito e do inconsciente estruturado como uma linguagem. Assim, fazendo tela que opera como representante de uma representação e suporte de a compomos o quadro clínico na escrita do fantasma, do sujeito do inconsciente e do sintoma na transferência. Portanto, não é possível ser analista de uma posição exterior, interrogatória como faz um psiquiatra ou um psicólogo. Para que um analista advenha, é necessário fazer parte da experiência, parte do quadro clínico.

Até aqui, o analista na estrutura no que tange à clínica propriamente dita, à intensão. E o que dizer do analista na estrutura da escola, em extensão, seguindo a pista do um analista é ao menos dois? Minha proposta é verificar se podemos pensar alguns desses pontos trabalhados por Lacan, a partir da obra de Velasquéz, como indicadores para escriturar nossa práxis em intensão, como passíveis de desdobramentos para a escritura do campo da extensão. Convido-os a me acompanharem nessa segunda volta do texto.

Logo no início da fala de hoje, relembrei que uma escola de psicanálise não se configura como um agrupamento de analistas. Os analistas de uma escola são contados um a um, não são elementos a serem somados na composição de um todo, de um conjunto. Sustentam uma ética comum, se orientam pelos princípios que regulam o campo psicanalítico e sua escola, mas a práxis é única. Ressalto que não se trata da singularidade ou individualidade dos membros. O um diz respeito à práxis analítica que é inventada por cada um, ainda que rigorosamente fundamentada nos parâmetros de uma ética e de uma lógica da qual os colegas de escola compartilham. Essa premissa, já é por si produtora de descentramento, de abalo, de inovação, de corte no que faz lei para os grupos em geral e também para outras propostas de instituições psicanalíticas. Tal qual a presença de Velasquéz no quadro como alusão à presença do analista na direção da cura: descentramento, fratura, corte, inovação. Aqui temos um primeiro desdobramento para o campo da extensão de um dos pontos trabalhados a respeito da intensão.

Uma escola opera através de dispositivos que colocam em prática o princípio de não agrupamento: cartéis, reuniões clínicas, rede clínica, redes de estudo e transmissão, o passe, jornadas de escola… São espaços destinados à convocação do trabalho de passar em ato a experiência clínica de cada um, teorizando, escriturando uma prática, enlaçando intensão e extensão. Contamo-nos um a um através do suporte desses dispositivos que põem em marcha a estrutura de funcionamento da escola, a qual não é sem o analista. Assim como na clínica, não é possível ocupar uma posição exterior à escola, meramente interrogativa, explanativa ou passiva. Como um e entre outros, participamos da estrutura da escola e fazemos ao menos dois do um. Assim, intensão e extensão se colocam em continuidade e com caráter de êxtimo, tal qual os elementos comentados na obra de Velasquéz como referência para pensarmos o analista como compondo o quadro clínico na direção da cura.

Tomo agora o quadro em reverso na obra em questão e sua dupla função de tela, como lugar para projeção e como anteparo que barra e faz cisão entre o visível e o invisível com efeito de descentramento. Como vimos, o pintor retratado no quadro, em posição de espera, também possui essas duas funções de tela, numa alusão à presença do analista: tela para projeção, suporte do objeto a no fantasma e tela que cinde e produz descentramento, abalo, corte e inovação. A escola, por sua vez, não comportaria também essa dupla função de tela? Já observei que o princípio de funcionamento de uma escola é por si inovador e produtor de um corte com aquilo que faz grupo. Além disso, entendo que para haver efeito de transmissão, algo novo deve se produzir e não há novo sem abalo nas certezas, sem rachadura, sem corte com o já sabido ou já dado. Um a um, com o trabalho de transmissão produzimos corte, fratura e abalo na tendência ao agrupamento e na tentação das certezas e suas falsas garantias. E, um a um entre outros, em posição de espera, en souffrance, cumprimos função de tela como suporte para as conjecturas, as dúvidas, as construções, as desconstruções, os erros, as angústias… Enfim, suporte para o processo sempre árduo e prazeroso que caracteriza o trabalho com psicanálise, seja na experiência do inconsciente ou na experiência de transmissão. Acredito que a escola também cumpra função de tela como suporte no sentido de sustentar uma ética através dos dispositivos que legalizam sua posição, dando consistência ao lugar, ao espaço da transmissão.

Nessa direção, lembro a relação entre o trabalho de construção da estrutura do quadro, através das leis da geometria projetiva que permitem questionar o campo da representação, e o trabalho do analista, apoiado em certas “leis”, em operadores que legalizam e orientam a direção da cura, sempre subvertendo o campo representacional. Como já observei, os dispositivos de funcionamento de uma escola são operadores que legalizam sua prática de transmissão e também subvertem as representações e o imaginário de um conjunto fechado e protetor, de dogmas a serem seguidos, de um conhecimento acabado e de um status quo a serem alcançados e/ou recebidos de um amo.

Para finalizar, sem nunca terminar, uma pequena e fundamental observação sobre o termo estrutura, com o qual tomo alguma liberdade quando falo de estrutura da escola. Clara Cruglak (2021), a partir da resenha de um colóquio coordenado por Roger Bastide[1] e intitulado “Sentidos e usos do termo estrutura”, indica que o termo vem das artes, em especial da arquitetura e que a palavra deriva de struere: construir. A autora sublinha a origem da palavra à um verbo, o que indica uma ação e não um estado e segue com a seguinte citação do matemático Guilbaud, também presente no referido colóquio:

Em matemática, a palavra estrutura não é o contrário de algo, é um andaime, sempre algo oculto, interno, uma gênisis, um princípio, um esquema, um padrão, pois a melhor maneira de compreender uma construção é fazê-la (frente a objetos matemáticos, para compreendê-los, temos que construí-los). (Bastide apud Cruglak, 2021, p.29, livre tradução)

A melhor maneira de compreender uma construção é fazê-la, diz o matemático. A obra de Velasquéz é comentada por Lacan (2018) em seu processo de construção através da geometria projetiva, mostrando que a melhor maneira de compreender o conceito de estrutura em psicanálise é não o substantivar (através dos diagnósticos, por exemplo) e sim lê-lo como efeito da ação de construir em transferência, da qual o analista participa. Acrescento, com os desdobramentos propostos para o campo da extensão, que não apenas a melhor, mas a única maneira de conceber uma escola de psicanálise é fazê-la. Struere, construir uma escola, não há outra forma e não há como um analista não participar desta ação quando, a partir de sua experiência com o inconsciente, leva a sério e às últimas consequências, a proposição de que um analista é ao menos dois.

IX Jornada da ALPL – O objeto da psicanálise

Referências

1.Cruglak, Clara (2021). Lo Real a la Huella: em la experiencia psicoanalitica. Ciudade Autonoma de Buenos Aires: Escuela Freudiana de Buenos Aires.

 

2.Lacan, Jacques (2018). O objeto da psicanálise. Seminário, livro 13 (1965-66). Texto original disponível em staferla.free.fr; tradução: Luc Matheron; revisão técnica: Glaucia Nagem e Luciana Guarreschi. São Paulo: Fórum do Campo Lacaniano.

 

[1] AAVV; Roger Bastide: Sentidos y usos del término estrutura em las ciências del hombre. Buenos Aires: Paidós, 1978

É lendo que se escreve

Ao receber o convite para a XXX Jornada de Psicanálise do Espaço Moebius e
ler seu título/tema recortei as primeiras letras de cada conceito (S,o,l), fiz o meu ternário,
e escrevi Sol. Na sequência, ainda com o três, escrevi Sal, uma vez que esse objeto se
escreve abjeto, com a. Depois, uma série se escreveu: Sol, Sal… Salvador! Olha aí o
litoral da letra, fazendo furo na captura significante. Ao ler, não pude deixar de escrever,
contingente que traça um contorno possível sem cair no desfiladeiro do necessário e sem
deixar de contemplar o impossível marcado pelo redobramento do não3. Esse é para mim
o processo na experiência da escrita, percurso moebiano e em duas voltas, partindo da e
terminando na leitura. E no caso de um texto como esse, um texto de transmissão, a escrita
é também da ordem da escritura por formalizar ou, ainda, legitimar uma experiência que
passa em ato sempre a partir da intensão.
Não sei localizar a fonte, perdão ao autor, mas alguém já disse que um texto só
termina quando é lido por outrem (lido “outramente”). E ao acordar com essa afirmativa,
concluo que um texto é sempre plural ao ser lido e, portanto, finalizado diversas vezes,
inclusive pelo mesmo leitor. Reler um livro ou um artigo de forma diferente da(s)
anterior(es) é uma experiência fascinante que não é novidade para ninguém. E se o texto
original não foi modificado por aquele que o imprimiu no papel, quem escreveu tais
diferenças? Temos aí a função leitor entrelaçada à função autor, ler e escrever não são
tarefas estanques e independentes, ao contrário, participam da mesma estrutura. As
seguintes palavras de Foucault (1969) numa conferência intitulada “O que é um Autor?”,
que contava com Lacan na plateia, são extremamente precisas a esse respeito:
Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever;
não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura
de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer…. a marca do

Seguindo essa trilha, mas naquilo que concerne ao campo psicanalítico, à nossa
práxis em suas vertentes de intensão e de extensão, podemos brincar um pouco com a
topologia e pensar intensão e extensão operando na estrutura unilateral e de uma só borda
da banda de moebius. Vamos da intensão à extensão num continuum e assim também são
as funções de leitura e escrita, inclusive no que concerne às referidas vertentes. Leitura e
escrita na intensão, leitura e escrita na extensão, leitura e escrita no continuum da intensão
à extensão produzindo uma escritura.
Escrever Sol ou Sal é uma maneira seriamente divertida4 de ler e escrever a
articulação entre os conceitos enunciados em série para o trabalho de hoje. Sujeito,
(a)objeto, letra e, nessa proposta, é ao pé letra que traço, que escrevo a dita articulação
com o meu ternário. Também foi com um ternário, com três letras (R,S,I) que Lacan
escreveu uma articulação dos mesmos conceitos. Na escritura da cadeia borromeana,
onde RSI se pode ler héresie, temos uma escritura com sua particular amarração e
produção de buracos. E nessa héresie (RSI) leio meu Sol ou Sal, pois ali se articulam
Sujeito, objeto e letra. Afinal, a letra faz contorno de forma litoral (faz borda) no buraco
central da cadeia (cadeia cujos efeitos de amarração podem ser lidos como a estrutura do
sujeito), buraco no qual se escreve o objeto a ou ainda, como leem alguns, onde se escreve
o próprio sujeito numa equivalência a esse (a)objeto. Escritura onde também se pode ler,
como propõe Lacan (2011) no Seminário 19, o enodamento de três verbos que orientam
o sentido da demanda: pedir, recusar, oferecer5. “Eu te peço que recuses o que ofereço,
porque não é isso” (Lacan, 2011, p.69).
Dessa forma, me divertindo seriamente, escrevo uma pequena leitura partindo
de outra(s). Aliás, e em mais de um sentido, são sempre muitas e muitas as leituras que
fazemos quando do estudo de um tema para um recorte de escrita, não é? Centenas de
páginas lidas que devem ser deixadas em suspenso (en souffrance) para que a escrita
opere como corte na produção de uma nova leitura de algumas poucas páginas de um
trabalho de transmissão como este. E, ainda, para que na volta da extensão essa leitura de
transmissão se escreva, a suspensão das leituras e mesmo de um saber já operaram como
corte através da função analista. Dessa maneira, se produz na intensão uma leitura do
analista para escrever a direção da cura em articulação ao trabalho do analisante de ler e
escrever as suas ficções, seu sintoma, seu fantasma em transferência até o ponto em que
faça as pazes com o incurável do troumatisme, o impossível sempre à espera de ser
escrito. Como, certa vez, ouvi de uma analisante: “para mim, a existência nunca vai deixar
de ser traumática”.
Trabalho conjunto, analista e analisante participam, assim, da mesma estrutura
do quadro clínico que se arma na transferência, como propõe Lacan (2018) no seminário
13 quando metaforiza a presença do analista como a presença de Velásquez no quadro
“As meninas”6. Nessa intrigante obra, temos a entrada no quadro do que deveria estar de
fora, invisível, exterior: a presença de Velásquez e a tela. Um exterior no interior, um
invisível no visível, tal como o efeito de arrebatamento que o quadro nos propicia como
espectadores, um fora-dentro-fora. O trabalho de perspectiva na obra produz um
descentramento através do estabelecimento de dois centros em duas linhas de estrutura
que cortam o quadro: um geométrico com o deslocamento do ponto de fuga para a porta
num canto da tela que daria para um outro espaço e um centro imaginário num espelho
que compõe a cena, como centro do quadro.
A própria introdução do pintor na cena também pode ser atrelada a um
descentramento, um abalo no centro do quadro, a inserção de um êxtimo. Além da
condição de êxtimo, Velázquez está no quadro em uma situação de pura presença, em
suspenso, en souffrance, em espera. Presença que funciona como tela em branco para
projeção. Ele olha alhures, para um ponto invisível que não se sabe qual é, participando
(a partir da condição de tela, fazendo quadro) da montagem pulsional escópica do olhar
como objeto a. Pura presença, êxtimo, descentramento, corte, fratura. Velásquez, como
o analista, é um elemento da estrutura do quadro que abala as certezas, o centro, corta e
inova. O analista participa da estrutura do texto, arrisco dizer numa transposição da leitura
de Lacan no Seminário 13, onde as funções autor e leitor se articulam tal qual a do pintor
e do expectador do quadro de Velásquez. Quem pinta e quem observa o quadro? Nos
interrogamos com Velásquez e Lacan. E pergunto, quem lê e escreve o texto em intensão
e em extensão?
Sabemos que a autoria do ato não é do analista, que “entre analista e analisante
só se intercambiam letras” e que “…o analista corta. O que ele diz é corte, quer dizer,
participa da escritura” (Lacan, 20/12/77, p. 12, livre tradução)7. Letras que circulam, são
intercambiadas entre analista e analisante… como isso se dá? E o que essa troca produz?
Cortar é participar da escritura, cortar é ler para escrever, no sentido de dar suporte,
propiciar que se escreva. Que se leia e que se escreva em intensão e que se leia e que se
escreva no après coup da extensão. Nesta altura da produção do texto, alguns fragmentos
da clínica do tempo em que trabalhava em um hospital escola (há mais de 20 anos)
insistiam. Segui o fluxo das lembranças e traço aqui a construção de dois fragmentos
clínicos.
O primeiro é de uma mulher por volta dos 40 anos. Tinha dores corporais
inexplicáveis, ataques de ansiedade, irritabilidade, agressividade e ideias paranoides.
Recorto a seguinte frase proferida por ela a respeito de seus pensamentos persecutórios:
“Acho que estou ficando painel, doutora”. Com expressão interrogativa, pedi que me
explicasse o que era ficar painel. Ela me olhou com a estranheza de quem pensa: “Como
é possível a doutora de cabeça não saber o que é ficar painel!?” Cansada, mas habituada
com o fato de que eu nunca entendia nada mesmo, suspirou e disse: “Ficando painel,
doutora, por causa daquele médico, o Painel, que trabalhava com gente maluca…” Ela
escrevia Pinel, mas lia Painel amparada pelo conhecimento de que a letra i em inglês se
lê ai (imagino que pensava que ele era americano). Painel era sua tradução, sua leitura de
Pinel. Como lemos à letra e não a letra de forma literal (Vegh, 2006) tive a felicidade de
não corrigi-la, segui sua forma de ler o i e aí foi eu quem suspirou dizendo: “Ah, o Pai/nel,
ficando painel, ai, ai…” As associações seguiram seu curso a respeito das dores corporais
enlaçadas a outras dores, as relativas ao pai.
O segundo fragmento é, acredito, muito ilustrativo de como uma leitura
enviesada, deslocada da função do analista, uma leitura infeliz, impede uma escrita de
algo novo para o sujeito. Tratava-se de uma jovem diagnosticada como esquizofrênica,
sendo que o primeiro surto teria ocorrido após uma experiência sexual na adolescência,
7Dire est autre chose que parler. L’analysant parle. Ιl fait de la poésie. Ιl fait de la poésie quand il y arrive…
c’est peu fréquent – mais il est « art ». Je coupe parce que je veux pas dire « il est tard ». L’analyste, lui,
tranche. Ce qu’il dit est coupure, c’est-à-dire participe de l’écriture…
5
segundo relatos da família. Medicada até a raiz dos cabelos, se apresentava catatônica,
olhar distante, falava pouquíssimo e de forma superficial e fragmentada. Geralmente
relatava algum acontecimento familiar, repetia que precisava retomar os estudos ou que
pretendia trabalhar. Um dia me olhou firmemente nos olhos, o que nunca acontecia, e
disse que estava muito preocupada com sua “dentidade”. Na minha ignorância da época,
que não era nada douta, afundada nos equívocos psicopatológicos, fiquei feliz e surpresa,
afinal não esperava tamanha “profundidade”. Como poderia estar ocupada de questões
identitárias ou do campo da identificação se além da apatia e da fala cortada, “gente dessa
categoria” (os psicóticos) leva tudo, literalmente, ao pé da letra?
Quando perguntei “Como é que é isso, preocupada com a (i)dentidade?”, ela
respondeu “É que procurei em tudo que é lugar, e não encontrei”. Respondi: “Ah, você
não sabe onde está o seu documento!” E, dessa vez, infelizmente, achei mesmo que tinha
entendido: claro, ela falava literalmente do documento de identidade, não podia ser uma
alusão à identidade a partir do documento se era psicótica! Ai, ai, pobre de mim… Eu é
quem estava aprisionada ao literal e não pude acompanhá-la no literário do pé da letra
que o enunciado trazia. Ela falava mesmo de uma preocupação com sua “dentidade” e
deixando cair o i do idem, do estado de igual ou mesmo da imagem, talvez tentasse se
descolar das insígnias da loucura que todos nós lhe imputávamos como estável, como
mesmidade. Seria possível ler uma preocupação em não se deixar capturar completamente
pelo idem, mas o aprisionamento ao literal da psicopatologia não me permitiu alcançá-la
em seu literário.
Vocês poderiam objetar: “Escute, você está viajando, forçando a barra… Eram
“pessoas simples”, sem estudo. Não seriam apenas “erros” em relação ao que é
considerado formalmente correto ou culto em nossa língua portuguesa? Ou melhor, não
seria só a língua se manifestando em sua forma coloquial? Portanto, não seria uma questão
do campo da linguística?” Bem, eu responderia, primeiro que ser gente já é sinônimo de
complicado, então, não entendo bem o que seriam “pessoas simples”. A falta de estudo
ou de erudição tornaria o humano simples? Se fosse assim tão fácil, era só pararmos de
estudar! Segundo: para um leitor externo ao quadro clínico, externo à cena analítica, não
deixa de ser a língua em sua forma coloquial ou algo do campo da linguística. Linguística
como a ciência que tem a linguagem como objeto e suas variações naquilo que se
denomina língua. E nós, analistas, bebemos dessa fonte desde Freud, mesmo antes da
formalização da linguística como ciência, mas somos leitores fazendo parte da estrutura
do quadro, da escritura do texto, e nos ocupamos não das variações ou desvios da língua,
não das regras gramaticais ou ortográficas, mas do que esses desvios e desvarios escrevem
como letra em lalangue (“ele escreve de maneira diferente daquela da graça da
ortografia…”). Por último, mas não menos importante, nosso objeto não é o indivíduo, o
homem. Nosso (a)objeto é o sujeito e esse não tem idade, sexo, cor, nacionalidade ou
grau de instrução. É ele que se escreve, sempre de forma evanescente, no corte da prática
de leitura em transferência, com os efeitos de verdade que a letra pode produzir como
furo no saber. Dez anos lendo o discurso sem palavras de muita “gente simples” me
ensinou, entre outras coisas, um pouco sobre o sujeito, o objeto e a letra, compondo a
escrita, tantos anos depois, deste texto.
Nas voltas moebianas da leitura e da escrita, da intensão e da extensão, onde o
tempo e o espaço operam de maneira particular, vamos tecendo nossa práxis, ponto a
ponto, letra a letra, sempre dispostos a puxar o fio das letras, desfazendo e refazendo o
tecido. À la Penélope, diríamos, mas não pelo mesmo motivo, pois não estamos à espera
de nada, nem de ninguém. É o que tentei transmitir para vocês nesse pequeno exercício
de leitura e escrita.

 

Referências
1.Foucault, M. (1969). O que é um autor?, Bulletin de la Societé Française de
Philosophic, 63º ano, no 3, julho-setembro de 1969, ps. 73-104.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/179076/mod_resource/content/1/Foucault%20
Michel%20-%20O%20que%20%C3%A9%20um%20autor.pdf
2.Lacan, J. (2011). …Ou pior. Seminário XIX (1971-1972). Salvador: Espaço Moebius
Psicanálise.
3.Lacan, J. (2018). O objeto da psicanálise. Seminário 13 (1965-66). São Paulo: Fórum
do Campo Lacaniano de São Paulo.
4.Lacan, J. Le moment de conclure (1977-78). http://staferla.free.fr/S25/S25.pdf
5.Vegh, I. (2006). Las letras del análisis. Buenos Aires: Paidós.
8 Ιl écrit différemment de façon à ce que de par la grâce de l’orthographe, d’une façon différente d’écrire,
il sonne autre chose que ce qui est dit, que ce qui est dit avec l’intention de dire, c’est-à-dire consciemment,
pour autant que la conscience aille bien loin. C’est pour ça que je dis que, ni dans ce que dit l’analysant, ni
dans ce que dit l’analyste, il y a autre chose qu’écriture. (Lacan, 1977, p.12)

NOTAS

1 Texto originariamente apresentado na XXX Jornada de Psicanálise do Espaço Moebius: “O Sujeito, o
objeto e a letra na psicanálise”, novembro de 2021 e publicado em
https://www.espacomoebius.com.br/_files/ugd/3a2ce3_a723ccb0d2c24948b6dd62972e136ddd.pdf
2 Psicanalista, membro fundadora da Associação Livre-psicanálise em Londrina, doutora em psicologia
pela Universidade Federal de Santa Catariana. Contato: zeilatorezan@gmail.com
3 O impossível é “o que não cessa de não se escrever”; O necessário é “o que não cessa de se escrever”; O
contingente é “o que cessa de não se escrever”; O possível é “o que cessa de se escrever”.

2 escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça
o papel do morto no jogo da escrita….Por outro lado, esse retorno se dirige ao
que está presente no texto, mais precisamente, retorna-se ao próprio texto, ao
texto em sua nudez e, ao mesmo tempo, no entanto, retorna-se ao que está
marcado pelo vazio, pela ausência, pela lacuna no texto. (Foucault, 1969, p. 6)

4 “Como disse em outro lugar muito seriamente, eu me divirto.” (Lacan, 2011, p.60)
5 “Mas demanda, recusa e oferta, é claro que nesse nó que avancei hoje diante de vocês, não tomam seu
sentido senão um do outro, porém o que resulta desse nó, tal como tentei desnodá-lo para vocês, ou
melhor, dar a prova de seu desnodamento, dizer-lhes, mostrar-lhes que isso não se sustenta jamais
somente a dois, que está aí o fundamento, a raiz do que diz respeito ao objeto pequeno a.” (Lacan, 2011,
p. 71)

6 São 5 lições que se encontram quase no final do seminário 13, de 11/5 a 8/6 de 1966, onde ele faz uma
detalhada análise do quadro “As meninas”, de Velásquez.

Do desamparo à liberdade.

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Texto apresentado na VIII Jornada ALPL – A Angústia 17 e 24 de abril de 2021.

RELAÇÃO DE OBJETO E AS VIAS PERVERSAS DO DESEJO

Por: Maria de Fátima Oliveira
A relação de objeto concerne a uma posição subjetiva e ambígua entre o natural e o simbólico, que baliza o desejo desde a amamentação, vista uma posição natural do feminino; embora, não se defina um sujeito feminino pela ótica do corpo biológico, uma vez que o sujeito é instituído pela linguagem, o que por meio desta enoda o sujeito numa instituição entre real, o imaginário e o simbólico. Tal visão retira a mulher do encargo de responder sua posição no mundo em resposta ao corpo biológico, em que pese, a homossexualidade feminina transite no simbólico. Assim, para discorrer acerca do tema relação de objeto, proponho a articulação entre os seguintes textos: A jovem homossexual, O caso Dora e bate-se numa criança.
Freud em 1923, em “a organização genital infantil”, discorre sobre a organização fálica, afirmando que essa organização atinge tanto o sexo masculino quanto o feminino acerca de ter falo ou não, mas aquele que é desprovido dele equivale a ser castrado. Em 1931, Freud para resolver esse debate sobre a questão fálica na menina, refere que ela quando entra no Édipo começa a desejar o pai como substituto do falo faltoso, e a decepção de não receber o falo do pai, faz com que ela volte atrás com sua identificação a ele e retorna a direção feminina. Diz também que inconscientemente institui uma privação de menina desejada, por meio do debate edípico. Já na visão de Lacan, o falo entra em jogo ao alcance daquilo que foi dito, e o modo que o sujeito lida com o que foi instituído gira em torno do simbólico respectivo à experiência vivida e articula-se inclusive com a problemática dessa vivência. Porém, o que prevaleceu da fase fálica tem-se o efeito da frustração, instituída no campo do inconsciente, assim como suas resoluções estruturais. Mas a frustração só tem função a partir da vivência do sujeito na fase de castração articulada com a privação, em que necessita também da frustração como uma condição para o sujeito lidar com a castração pela via da frustração, visando a privação como uma representação, que não tem relação com o concreto uma vez que articula – se no simbólico. Vale dizer, que a frustração é a falta de objeto e não privação. O que faz menção à frustração incide naquilo que o sujeito foi privado, a partir de uma demanda dirigida a alguém que faz parte do jogo – é a privação ou atendimento do pleiteado que enoda ao valor conferido ao sujeito pelo Outro. Nessa dialética, entre satisfações e decepções, no momento em que o sujeito entra na ordem simbólica, entra
também na ordem da dívida, a partir do vivenciado em que inaugura o sujeito na cadeia significante e ordena seu posicionamento. A psicogênese de um caso de homossexualidade feminina reporta à articulação desses elementos.
À saber, inicia-se com o caso da jovem homossexual em que Freud começa com as entrevistas preliminares, lida com as resistências, com a sensação que nada está operando; em contra partida, vê o que se passou e põe em evidência algumas etapas. A primeira delas é que para a jovem o seu irmão mais velho não tinha objeto fálico, até ali a menina nunca foi neurótica, não mostrou sintoma histérico e nada de patológico em sua história infantil. Mais tarde, uma posição singular que ela ocupa diante de uma mulher um tanto destituída socialmente e após o desenlace entre ela e essa dama, vai levá-la à consulta com Freud. Contou a Freud que certo dia seu pai a viu passeando com a dama e lhe lançou um olhar reprovador. A dama ao saber que o pai da jovem ficou aborrecido, disse a jovem que não se veriam mais. Então, a jovem se joga numa ponte de uma linha férrea, cai, tem algumas fraturas, mas não morre. Apesar dela apresentar um desenvolvimento normal até 13/14 anos, nos moldes de uma mãe por cuidar de uma criança de amigos da família, inesperadamente, começa frequentar mulheres qualificadas como maduras, o que para Freud seria tipos de substitutos maternos, em que a partir da orientação normal do sujeito leva a menina ao desejo de ter um filho do pai. Assim, Freud diz que o sujeito deve conceber a crise originária que o fez engajar no sentido oposto. Houve uma inversão subjetiva, em que Freud tenta articular como decepção relacionado ao objeto de desejo, que se traduz por uma inversão da posição do sujeito, pois ele se identifica com este objeto, o que equivale a uma regressão ao narcisismo. E o que opera nessa posição de inversão é que por volta dos 15 anos, a menina se engajava no caminho de tomar posse da criança imaginária – sua mãe tem outro filho, um terceiro irmão. Para Freud é aí que está o ponto chave, uma vez que é na chegada de um irmão que precipitou uma inversão na orientação sexual da menina em questão, pois coincide com o momento que ela muda de posição, considerado por Freud fenômeno como reativo, supondo que a jovem continua ressentida com o pai, uma vez que se mostra agressiva a ele.
Freud interpreta que a tentativa de suicídio ocorre após a decepção produzido pelo objeto de seu apego, ou seja, a dama que se opõe a ela. Logo, a agressão dirigida ao pai, nesse ato simbólico, ao cair da pequena ponte, reflete o niederkamnen de uma criança no parque, ou seja, traduzido do alemão “o que foi posto para baixo”. Embora para Freud foi um caso em que a resistência não foi vencida, uma vez que ela manteve sua posição subjetiva e não
conseguiu ir muito longe com o tratamento desta jovem, articula sobre o amor idealizado que a coloca à disposição da dama, tida uma referência e uma atração sentida para não satisfação como instituição da falta na relação com o objeto. No entanto, este caso ilustra o funcionamento que categoriza a falta de objeto. A crise ocorre por que intervém o objeto real, pois a criança é instituída no plano simbólico, não mais imaginária que o filho lhe seria dado e dado a outra, no caso à mãe, e o fato de objeto real materializado pela falta de ser sua mãe quem a tem a seu lado, a conduz no plano da frustração. Com efeito, seu amor cortês entra em questão a saber que o que é buscado na mulher é o que falta a ela, que concerne ao falo, o objeto em questão. Para Lacan, a constituição do sujeito está engendrada com a inscrição da falta, intrínseco a perda do objeto, que inaugura o sujeito no universo da falta, desejo e finitude. Ainda em Lacan (1957-58/1999; pag. 198), tem-se a primazia do falo instituído no campo do simbólico por meio da linguagem e introjeção da lei, que se anuncia o incesto e insere-se uma lei que ultrapassa a relação falo- mãe- criança.
Seguindo pelas vias perversas do desejo temos os três tempos do Édipo: 1º privação; 2º frustração; 3º castração – são os tempos edípicos que Lacan faz menção aos três tempos da inscrição da falta – e o primeiro tempo do Édipo compõe a posição de objeto de desejo da mãe ocupada pela criança, a qual, de acordo com o desejo da mãe, busca ser o próprio falo a partir da construção fantasmática do assassinato do pai. Deste modo, o pai não aparece, mas de maneira velada o pai simbólico surge como um significante, “nome do pai”, com a função de fundar a lei no Outro, que visa substituir o significante materno, o qual interdita a mãe e insere o sujeito na cadeia significante a partir da produção da metáfora. Nesta via, instaurado na ordem simbólica, a castração barra o gozo absoluto e engendra o desejo, instituindo no sujeito uma frustração imaginária na relação ao objeto da mãe. Temos então a primeira etapa fálica, em que insere a metáfora, em que Outro se organiza no lugar de simbólico com a lei do desejo.
No segundo tempo do Édipo, remete a mãe à lei conforme o pai imaginário, com a função de barrar a mãe, constituindo seu discurso por meio da lei simbólica. Assim, a lei já inscrita é tida a partir do discurso em que o pai fora excluído, mas à medida que a mãe é privada de manter a criança em posição de objeto, o sujeito (criança) submete-se a onipotência do pai, onde se ergue hipoteticamente em onipotência diante do desejo materno.
Já o terceiro tempo a castração e privação podem dizer de um pai potente, uma vez que o sujeito castrado, por meio do suposto detentor do falo, se abre a partir do ideal do eu, e conferido pelo valor simbólico inscrito no primeiro tempo se intercambiam entre pai real e pai
imaginário – castrador e privador, conforme o sujeito atravessa do segundo tempo para o terceiro tempo, ele, privado de ser o falo da mãe – sustenta-se o pai real. Para Freud (1933-1996) o sujeito conduz a uma saída ideal instituído como uma figura de autoridade, pois para não perder o amor do pai diviniza-o. Mas Lacan, (1959/1960 – 1997) vai dizer que esse pai imaginário é ele e não o pai real que é o fundamento da imagem providencial de Deus.
Contudo, para articular a falta do sujeito a partir dos casos de Freud, com a reformulação de Lacan acerca da instituição da falta e com o texto bate-se numa criança, Freud diz da fantasia, cuja função é substituir por uma série de transformações outras fantasias, as quais se compreendem na evolução do sujeito, bem como estrutura subjetiva e situar o que revela o fenômeno. Logo na primeira fantasia, ainda em Freud, quando o sujeito assume a seguinte forma, “meu pai bate numa criança que é a criança que eu odeio”, concerne a uma fantasia que faz menção a história do sujeito em que aparece a irmã ou o irmão como um rival, em que pela presença ou pelos cuidados, frustra a criança da afeição dos pais, em especial o pai. Nessa via, trata-se da menina já constituída pelo complexo de Édipo, nesse caso o pai ocupa uma posição primitiva, num enredo que comporta três personagens.
Para Lacan existe o agente da punição, existe aquele que se submete a ela e existe o sujeito. “Aquele que se submete é, nomeadamente, uma criança que o sujeito odeia, e que ele vê, desse modo, despencar da preferência parental que está em jogo, enquanto se sente, ele próprio, privilegiado pelo fato de que o outro despenca dessa preferência” (LACAN, 1956-1957/1995 PÁG. 117)
Nessa dimensão temos três implicações: primeiro, bate no outro por medo de eu não acreditar que o prefiram a mim. O que já faz referência ao terceiro sujeito, na medida em que o sujeito tem que acreditar ou inferir alguma coisa sobre um certo comportamento que se dirige ao objeto segundo, ou seja ao irmão, já que é em detrimento a ele que o sujeito confere seu desejo de ser amado ou preferido.
Na segunda etapa: “eu sou espancado por meu pai”, enquanto a primeira fantasia é uma fantasia que encerra uma organização, uma estrutura que põe ali um sentido, na segunda etapa, mesmo que ambígua, Freud refere à essência do masoquismo, pois encena que o sujeito participa da ação daquele que o agride e o golpeia. Essa estruturação perversa se compreende no processo em articulação com o complexo de Édipo. Nesta via, o sujeito encontra seu estatuto de objeto, de carácter egóico correspondente ao seu desejo engajado nos trilhos imaginários que formam o que se chama de suas fixações libidinais.
No caso da jovem homossexual, ali pelos seus 13, 14 anos, valoriza um objeto que é uma criança de quem cuida, ligada pelos laços de afeição. Aos olhos de todos, é tida como uma garota bem orientada pelo que é esperado, uma vocação à maternidade. Nesse entendimento, ela produz uma espécie de inversão ao interessar-se por objetos de amor pelos significantes da feminilidade. Apaixona-se por uma dama, na qual investe a amada por meio de uma elaborada atitude masculina e sem exigência característica de uma relação amorosa. Essa dialética subjetiva, que concerne ao ter o falo, é tida como algo inconsciente a partir do que foi escrito, ou seja, a castração, o que no caso do perverso é desmentido. Nessa via, como um mecanismo de defesa, a jovem homossexual, pela via do real imaginário e da dialética simbólica, toma o falo como um elemento imaginário, o que na fantasia assume como dom daquilo que tem. Nesse ponto, Freud afirma ser o que inaugura a menina no complexo de édipo. Para ele, a menina na primeira fase do édipo se liga ao fato de que o pênis que ela deseja é a criança que ela espera receber do pai, como um substituto, o que na jovem homossexual trata-se de uma criança real. A menina cuida de uma criança que está em jogo.
Gráfico Mãe imaginária Criança real
Pênis imaginário Pai simbólico
A criança é para ela substituição fálica que se constitui sem saber a mãe imaginária, assim frustrada pelo pênis imaginário num nível menor. Essa frustração originária põe o sujeito em posição de objeto, pertinente ao seu próprio corpo. Segundo Freud, a jovem homossexual ama como homem por estar numa posição viril.
Gráfico. Criança Dama real
Pai imaginário Pênis simbólico
Onde era mãe imaginária, temos a criança. Em a’ está a dama, objeto de amor que substitui a criança. Em A não barrado, o pênis simbólico é o que está para além do amor, com efeito, está para além do sujeito, justamente o que ela não tem. Se a dama é amada, é na medida em que ela não tem o pênis simbólico, produzindo, assim, uma permutação que fez passar no imaginário para o par simbólico, por identificação do sujeito na função do pai.
Assim, na primeira estruturação simbólica imaginária, equivale pênis imaginário – criança, instaura o sujeito como mãe imaginária, com referência a este mais além que é o pai. Por meio desta função simbólica, pode dar o falo. Quando o pai ‘’intervém do real para dar uma
criança a mãe, ou seja, fazer dessa criança diante de quem o sujeito está em relação ao imaginário da criança real” (LACAN, 1956 -1957 /1995, PAG. 135).
Algo se institui onde ela não se sustenta, mas na posição imaginária. O que passar para o segundo tempo, pela intervenção do pai real no nível da criança frustrada há uma transformação na lógica a partir do pai imaginário, a dama, o pênis simbólico, como uma inversão em que a relação com o pai também se relacionava com a ordem simbólica ao mesmo tempo que se desloca no sentido imaginário, onde se tem a projeção inconsciente do que concerne ao primeiro tempo, uma relação perversa, numa relação imaginaria, a saber sua relação com a dama. Temos então o terceiro tempo.
Gráfico. Criança Dama
Pai imaginário Pênis imaginário
Para terminar, tanto no caso Dora quanto da jovem homossexual, temos os mesmos personagens. O pai, o filho e uma dama, e é em torno da dama que gira a inversão. Dora também faz identificação com o personagem viril, e ela por intermédio do senhor K., e na medida em que ela é o senhor K., nesse ponto imaginário, a partir dessa identificação se liga a senhora K. Esse fato ocorre porque seu pai é um homem impotente; assim, toda dialética está na impotência do pai, fazendo referência à falta fálica. Então, a criança é frustrada, onde a mãe intervém noutro aspecto – ela dá ou não dá. Nessa dialética, em que a mãe na medida que o dom é signo de amor, o pai atravessa como falo faltante, fundamental constitutiva da posição do sujeito em questão. Por outro lado, o dom é dado por nada, nada é o imaginário dessa troca, mesmo que seja pelo interesse é também pura gratuidade. Por detrás do que se dá existe tudo que lhe falta. Dora ama seu pai, precisamente pelo que ele não dá, assim o desejo se dá a partir de falta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FREUD, S. (1996). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
______ (1914) “Sobre o narcisismo: uma introdução”. v.XIV, p.77-110.
______ (1923) “O ego e o id”. v.XIX, p.15-82. (1926) “Inibições, sintomas e angústia”, v.XX, p.81-174.
_____ (1930) “Mal-estar na civilização”, v.XXI, p.73-150. (1933) “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”, v.XXI, p.63-84.
LACAN, J, (1956-1957/1995) O Seminário livro 4, A relação de objeto.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_____ (1957-1958/1999) O Seminário livro 5, As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_____ (1959-1960/1997) O Seminário livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_____ (1963/2005) Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_____ (1969-1970/1992) O Seminário livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______ (1973/1993) O Seminário, Livro XX, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Quintella, Rogerio. O desmentido da privação na atualidade- PDF (PPGTP/UFRJ). Rio de Janeiro, abril 2018.

SOFRIMENTO, MORTE, PSICANÁLISE E ARTE NA PANDEMIA: UM TRATAMENTO PARA A ANGÚSTIA

 “A gente não pensa na morte. Até que ela nos pega” (Matheus Nachtergaele em “Desconserto”).

 

Durante o período da pandemia, assisti o monólogo de Matheus Nachtergaele, intitulado “Desconserto”, onde ele faz uma releitura de sua peça “Processo de Conscerto do Desejo”. Ele trabalha com os escritos de sua mãe, que se suicidou quando ele ainda era um bebê (Maria Cecília se suicidou aos 22 anos quando Matheus tinha três meses).

Neste período de pandemia, em que estamos vivendo a experiência da morte de forma tão próxima, me impactou demais tanto o espetáculo quanto o processo de criação de Matheus. Eu já havia ficado impactada na primeira vez em que a assisti a peça “Processo de Conscerto do Desejo”, ao vivo, no teatro Marista, aqui em Londrina, num Filo de uns três anos atrás. Desta vez assisti há cerca de uns três meses, de forma virtual, pelo canal do sesc.

Sendo sua mãe dramaturga, Matheus, se apoia nos fragmentos dos escritos deixados por ela, nas histórias que seu pai lhe contava, nas músicas que ela gostava de ouvir, nos objetos de que ela gostava; para dar vida a ela. Ao longo da peça ele diz que quis “construir uma imagem da mãe”. Dá pra imaginar o que é pra qualquer um de nós perder a mãe sendo um bebê tão pequeno, e de forma tão violenta? Que lembrança ele poderia ter dela? E mais, que mensagem ele recebeu dessa mãe sobre quem é ele próprio? Matheus conta que isso o marcou ao longo de toda vida, e que a peça foi justamente uma forma de lidar com esse luto da mãe.

Com o que ficou após a morte dela, ele dá contorno, fantasmariza a mãe, construindo uma resposta às suas perguntas: “mãe por que você me abandonou? Por que você se matou?” Em Psicanálise, “Che voi?”, o que desejas de mim? Na pergunta da criança desvela-se a necessidade de um Outro que a reconheça para justificar a sua existência. Lacan nos lembra que o Outro é o lugar do significante, ou seja, retomando o estádio do espelho, a criança, ao reconhecer, jubilatoriamente, a própria imagem no espelho, volta-se para o adulto que a segura, em busca da confirmação “tu és”. A criança se identifica com essa imagem, e esta é assegurada pela mãe, que lhe diz que aquela ali é ela. A criança se vê então a partir do olhar desejante da mãe.

O Estadio do Espelho lacaniano (1949/1998) nos diz que a subjetividade do humano nasce a partir do desejo do Outro. Segundo a teoria freudiana, o nascimento de um filho implica para os pais na possibilidade de uma restituição narcísica. Para o bebê, estar colocado antecipadamente nesse lugar, na fantasmática parental, permite a ele não somente sua sobrevivência biológica, mas também uma inserção no mundo humano, a partir de seu enlace a esse desejo parental. O bebê humano, diferente dos animais, que possuem um modo único e determinado de realizar as funções para sua sobrevivência, nasce biologicamente imaturo, incapaz de dar conta de cuidar de si e de entender sozinho o que se passa a sua volta e em seu próprio corpo. Ao puro grito do bebê, decorrente de um incômodo gerado por um excesso de excitação, é necessário que uma mãe o tome como um apelo, respondendo não apenas com a eliminação dessa excitação, mas pondo palavras nisso que era do biológico. Dessa forma, a partir do encontro com o Outro, começa a se inscrever na criança um outro registro, que produz uma marca a partir de uma experiência de satisfação. A relação com a mãe possibilita uma antecipação de uma unificação do corpo do bebê e a precipitação de um eu.

Ao longo de seu monólogo, Matheus conserta, com s, o próprio desejo: o luto permanente de sua mãe, em suas próprias palavras, em uma entrevista sobre a peça: “esse abandono, esses caguetes que carrego, eu queria deixar na peça, e a partir daí ver o que eu quero”. Ele resgata as vivências dessa mulher, a tristeza permanente que ela carrega, as pequenas alegrias, a tentativa de buscar saídas, e o empuxo à morte. Freud pontua que estar enlutado implica em identificar-se com o objeto perdido. Matheus, um bebê abandonado, cujo primeiro espelho lhe refletiu a imagem de desesperança e tristeza, (quem sabe desespero?).

Porém, nos escritos da mãe, ao falar dele, a mãe diz que o desmamou, que ele passa a se interessar em brincar com o sininho, e faz recomendações de cuidados com ele. Ele reconhece nisso que ela o separou dela antes de ir para a morte. Desta forma, ele encontra uma mãe que o separa de si e o abandona para ser cuidado por outros que pudessem fazê-lo. A partir dos significantes do Outro ele constrói a sua narrativa, uma interpretação acerca de sua própria história e de seu lugar no desejo do Outro.

Da fala de Matheus sobre o processo de criação da peça, não consigo deixar de pensar no processo do conscerto do desejo com uma a analogia ao processo de análise, onde acompanhamos Matheus da angústia ao desejo. Para falar da angústia, Lacan (1962-63) traz a imagem de estarmos diante de um louva-deus gigante travestidos de algo que nós próprios desconhecemos. Nesta situação não sabemos que objeto somos diante do desejo do Outro, correndo o risco de sermos um objeto apetecente aos olhos dele, podendo então ser devorados. Ele traz, retomando o grafo do desejo, na relação do sujeito com o significante (do Outro), a pergunta que se coloca “che voi?”, desdobrando em “o que ele quer comigo?” e “como me quer ele?”

 

Fazendo referência à situação vivenciada por todos nós neste momento, e que nos tem posto em angústia, podemos desdobrar algumas perguntas: o que esse vírus quer comigo? Serei do grupo de risco? Vou morrer? Como pagarei minhas contas? Poderei trabalhar? O que faço com meus filhos? Quero este marido? Lacan diz que a angústia é sinal do real. O real, para Lacan, seria o que nos coloca diante da castração, ou seja, da falta. Diante da falta no Outro, o sujeito responde com a própria falta, em outras palavras, frente ao encontro com o Real, o sujeito responde como objeto, e isso causa angústia.

Diante disso, o que faz uma psicanálise? A ideia de que é possível o preenchimento da falta, por meio de algum objeto, é consequente de uma outra, a de que falta é algo a ser corrigido. Por meio das intervenções, o analista visa possibilita surgir o lugar da falta como não tamponável. Assim possibilita ao analisando perceber-se nas relações que o configuraram enquanto sujeito na vida, e que posição tomou diante delas. Isso possibilita a passagem da angústia ao desejo.

Trago uma citação de Lacan (1974), que tem sido bastante utilizada nesses tempos, ouvi em lives de Colette Soler e Marcelo Veras a lembrança: “A Psicanálise é o pulmão artificial, graças ao qual tentamos assegurar o que precisamos encontrar de gozo no falar para que a história continue”. À ocasião ele diz da psicanálise como um discurso avesso ao discurso da ciência.[1] O que estes psicanalistas destacam, e eu, no ensejo deles, é o que pode a psicanálise diante disso que estamos vivendo? Sim, é inegável a importância da ciência neste momento, ela é que nos tirará da condição de perda sem perspectiva de fim que estamos vivendo. Porém, penso que tão importante quanto assegurar a vida, é possibilitar continuar vivendo, num mundo que não é mais o mesmo. “…encontrar de gozo no falar para que a história continue”. Eu troquei, sem querer, história por “vida”. Acho que, realmente acredito, que a psicanálise, assim como a arte, de Matheus, é o que possibilita que a vida continue.

Me lembrei de uma outra coisa que assisti durante a pandemia que é o episódio de um programa do Gregório Didivier, chamado “Leveza”, onde ele trata exatamente disso. Ele diz que uma das coisas que tem ajudado as pessoas a ficarem leves nesse período de pandemia, a enfrentar a solidão, a separação, a ansiedade, o medo, são produtos da cabeça dos artistas: “a série que eu estou vendo, o livro que eu estou lendo, as músicas que eu ouço todo dia de manhã, as lives da Tereza Cristina…”.

E o mais interessante é a leitura que ele faz sobre a função da arte, ele diz que ela não vem no sentido de desviar a atenção da morte, do sofrimento e de tudo o que estamos vivendo, é justamente o oposto. Ele defende a tese de que arte é principalmente sobre morte, seja pra lembrar que muita gente já morreu, seja pra lembrar que você vai morrer. Ele cita uma expressão em latim Memento mori, muito utilizada em uma determinada época: “lembre que você vai morrer”. E daí ele começa a desdobrar filósofos, escritores, roteiristas, compositores, pintores que tratam sobre a morte e o morrer ao longo de toda a História.

Ele diz que além de ajudar a gente a lidar com a morte, a arte possibilita processar a morte coletivamente. Não falar sobre a morte é ficar refém da morte. A arte é a memória viva em movimento, e ao falar da morte de alguém, a gente impede que a morte encerre a vida da pessoa. A arte é um jeito que a humanidade inventou de superar a morte e valorizar a vida.

Voltando ao “Processo de Conscerto sobre o Desejo”, entendo que Matheus, com música, poesia e muita sensibilidade, ele faz um concerto, com c, uma obra de arte, uma celebração do que foi possível, frente ao inexplicável, destila o ressentimento, a dor, a raiva, o medo, o amor. Assim, atuando a peça de sua mãe, ele se torna obra dela, respondendo a que veio ao mundo. Para ele, que se reconhece como um ator de teatro, “O teatro é uma prática que deriva de emoções”. Matheus cria uma obra que nos emociona, nos arrebata, nos implica, nos instrumentaliza para lidar com nossos próprios ressentimento, dor, raiva, medo e amor. Ou seja, deixa de ser dele, o ultrapassa e cumpre sua função de obra de arte. Matheus nos desconcerta.

 

REFERÊNCIAS

LACAN, J. O Estadio do espelho como formação da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.96- 103.

 

LACAN, J. (1962-63).O seminário, livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

LACAN, Le Coq-Héron, 1974, nº 46/47, p. 3-8 – Declaration à France Culture.

 

[1] discurso do mestre.

“DECIFRA-ME OU TE DEVORO”: REFLEXÕES SOBRE A ANGÚSTIA E OS ATENDIMENTOS ON LINE NOS TEMPOS DE PANDEMIA

“DECIFRA-ME OU TE DEVORO”:

REFLEXÕES SOBRE A ANGÚSTIA E

OS ATENDIMENTOS ON LINE NOS TEMPOS DE PANDEMIA

 

Mônica Fujimura Leite

 

Diante da imposição do isolamento social, precisamos fechar as portas de nossas clínicas e passar a atender on line. Neste momento, era a única forma de dar seguimento ao trabalho, sustentando uma posição e um anteparo frente aos desdobramentos que a situação impunha.

Frente ao desamparo vivenciado, o tema veio muito a calhar com o seminário que eu vinha estudando com colegas da ALPL, na modalidade de cartel. Assim, me propus a pensar se os fenômenos experienciados poderiam ser articulados ao conceito da angústia, conforme Lacan o propõe, e como se daria o tratamento disso numa análise on line. Gostaria de agradecer as interlocuções realizadas, com minhas colegas de cartel, bem como com os demais membros, nos fóruns, reuniões de eixo e seminários.

A pandemia trouxe uma condição de sofrimento. Fomos afetados nos três pilares de nossa existência e que Freud (1929/1996) aponta como fontes de sofrimento: nosso corpo, o outro e a natureza. Ouvimos relatos das perdas (da liberdade, dos objetos de gozo, do trabalho, da morte, da saudade); de o contato com o outro, tão primordial ao humano, ser a fonte do contágio; de o vírus ser uma resposta da natureza frente às intempéries humanas ao planeta.

Porém, dizer que este sofrimento afeta a todos da mesma forma não é verdadeiro. Colette Soler, em uma live, diz que o sofrimento, para além da circunstância que o produz e desencadeia, é relacionado ao inconsciente de cada um, e participa do gozo inerente ao sintoma.

De que forma isso se dá? Retornando à letra de Freud, no texto supracitado, ele diz que, quando somos atingidos em uma dessas direções, nos deparamos com o nosso desamparo primordial, contra o qual tentamos fazer frente através da civilização. Freud localiza esse desamparo à condição própria do humano que, diante de sua fragilidade e despreparo constituintes, é totalmente dependente de um outro humano para sobreviver. Isso é traumático. Diante da falta de resposta instintual do bebê, o adulto codifica as vivências infantis por meio da linguagem, armando o circuito pulsional, tirando o infans da condição de ser vivente e ascendendo-lhe à condição humana. Ter sua existência atrelada ao desejo de um outro traz ao infante o temor de perdê-lo, ficando para ele a interpretação de que o outro é a fonte de seu sofrimento. Dentro deste circuito, onde podemos situar a angústia?

Freud, em “O Estranho” traz duas ideias, a de que a angústia seria um sinal de uma ameaça ao eu, ameaça da castração (entendendo castração como perda), sendo consequência, portanto do recalque; e, posteriormente, que a angústia é que produziria o recalque, que seria então uma defesa contra a angústia. Lacan, no seminário 10 (p. 153) retoma o dito freudiano, questionando-o, de como a angústia[i] poderia ser defesa, e ao mesmo tempo, algo contra o qual o eu se defenderia? Ele traz então a ideia de que a “defesa não é contra a angústia, mas contra aquilo de que a angústia é sinal” (p. 153). Não se trata de defesa contra a angústia, mas de uma certa falta. Falta de que?

            De acordo com Lacan (seminário 10), a angústia aparece quando a falta do Outro falta. Partindo exatamente de onde Freud nos deixou, em termos lacanianos, para existir, o humano precisa ter sua existência reconhecida por outro humano, ou seja, se engajar no desejo do Outro. “O desejo do homem é o desejo do Outro” (p. 31). Na medida em que o Outro falta, e não sabe o que lhe falta, o sujeito é implicado, a partir de sua própria falta, a ocupar o lugar de objeto que supostamente completaria ao Outro, e consequentemente a ele mesmo (p. 32-33).

 Lacan nos lembra que o Outro é o lugar do significante, ou seja, retomando o estádio do espelho, a criança, ao reconhecer, jubilatoriamente, a própria imagem no espelho, volta-se para o adulto que a segura, em busca da confirmação “tu és” (p. 41)[ii]. Ele diz, porém, que nem todo investimento libidinal passa pela imagem especular, resgatando o conceito de falo, enquanto uma lacuna que fica na imagem, ou seja, uma falta.

É isso que possibilita o desejo: na medida em que algo escapa da significação do Outro, o sujeito fica impedido de identificar o objeto que completaria a falta. Assim, constitui-se a cena fantasmática, que implica no sujeito separado do objeto de desejo, na esperança de alcançá-lo. Nas palavras de Lacan: “o a[iii], suporte do desejo na fantasia, não é visível naquilo que constitui para o homem a imagem de seu desejo” (p. 51). Isso que resiste à significantização é o que possibilita ao sujeito ser desejante.

Então, respondendo à pergunta, a angústia surge quando algo aparece no lugar em que deveria estar preservado o lugar da falta. (p. 51)[iv]. Ou seja, o sujeito se vê na iminência de ver-se como objeto que completa o Outro, colocando a sua castração a serviço do que falta ao Outro (p. 56).

Observem que Lacan diverge radicalmente de Freud neste ponto, uma vez que para ele, conforme foi falado (e que ele retoma em Inibição, Sintoma e Angústia), a angústia seria uma reação frente à perda do objeto. Para Lacan, o sinal que a angústia introduz é frente ao desejo do Outro, que lhe dirige uma demanda que o anula, questionando o sujeito em sua própria perda, seu próprio desejo, na qual ele fica aprisionado (p. 169).

 

Além desta questão da demanda, Lacan situa a angústia frente a outros dois pilares: o gozo do Outro e o desejo do analista. Com relação ao gozo do Outro, Lacan refere que a angústia surge quando o objeto a (privado e incomunicável) torna-se um objeto intercambiável (comum, socializado, situável e reconhecível) (p. 100 e 103). Os objetos intercambiáveis são os objetos da pulsão, objetos parciais, que servem para preencher uma falta, sendo gozado pelo Outro.

 

Para tratar disso, Lacan traz o exemplo de estarmos diante de um louva-deus gigante, travestidos de algo que nós próprios desconhecemos. Nesta situação nossa angústia refere-se a não sabermos que objeto somos diante do desejo do Outro, correndo o risco de sermos um objeto apetecente aos olhos dele, podendo então ser devorados. Ele traz, retomando o grafo do desejo, na relação do sujeito com o significante (do Outro), a pergunta que se coloca “che voi?”, desdobrando em “o que ele quer comigo?” e “como me quer ele?” (p. 14).

 

Fazendo referência à situação vivenciada por todos nós neste momento, e que nos tem posto em angústia, podemos desdobrar tais perguntas: o que esse vírus quer comigo? Serei do grupo de risco? Vou morrer? O que acontecerá como meu emprego? Como pagarei minhas contas? Poderei trabalhar? O que faço com meus filhos? Quero este marido? No fórum da Fernanda, em que ela também trata dos atendimentos on line nos tempos de pandemia, Mônica Silva pergunta: frente ao encontro com o Real, o sujeito responde como objeto? Lacan diz que a angústia é sinal do real (p. 178). O real, para Lacan, seria o que nos coloca diante da castração, ou seja, da falta. Penso que seja neste sentido que Colette Soler traz que, diante de um fenômeno mundial (pan), cada sujeito responde individualmente. Conforme vimos com Lacan, diante da falta no Outro, o sujeito responde com a própria falta.

 

Diante disso, o que faz uma psicanálise? Fernanda traz em seu fórum que, por meio das intervenções, o analista visa esvaziar este lugar de objetos intercambiáveis, até que possa surgir o lugar da falta como não tamponável. Assim, o sujeito pode ocupar um outro lugar, diferente do de objeto intercambiável.

Assim, retomando, a angústia surge da relação do sujeito com o desejo do Outro, diante do qual ele responde com o próprio desejo, a partir de uma resposta sintomática. Lacan trata o sintoma, neste seminário, enquanto o que situa ao objeto a enquanto causa do desejo do sujeito (p. 304-305). Uma psicanálise possibilita então, de início, que o sujeito perceba o funcionamento de seu sintoma, ou seja, que há uma causa nele (p. 306).

 No seminário 10, Lacan diz que o caminho de uma análise passa pelo a, e que este é o objeto presente na transferência (p. 307). Assim, o sujeito se oferece nesse lugar de a ao analista (p. 61), pedindo-lhe que demande dele (p. 62). Lacan situa a transferência, neste seminário, que é a partir desta falta que o paciente ama, e repete isso com o analista (p. 122) (amor de transferência). Sabemos, desde Freud, que aceitamos a oferta, porém, não respondemos a partir dela. Desta forma, podemos levar o sujeito ao encontro com a interpretação da castração. Ao se deparar com a falta no Outro (analista), o sujeito é convocado a “dar o troco, através de um signo, o de sua própria castração” (p. 56)[v]. Assim, ao ofertar esse vazio, cuja presença serve de anteparo ao enganchamento das relações primordiais do paciente, o analista possibilita ao analisando perceber-se nessas relações que o configuraram enquanto sujeito na vida, e que posição tomou diante delas.

Isso possibilita a passagem da angústia ao desejo. Lacan diz que a angústia é intermediária entre o gozo e o desejo (p. 193). Na experiência analítica o sujeito retorna à função da falta na estrutura original (p. 151), marcando a falta como irredutível (p. 195), e passa da ameaça de castração para a angústia de castração (p. 195).  Assim, deixa de ver a falta como uma ameaça ou um defeito, admitindo-a como parte de si, desanodando-se da posição sintomática na qual se encontra, possibilitando a queda de a, e ascendendo ao desejo.  

Segundo Soler, isso se dá não tanto pela palavra do analista, mas é possível porque o analista encarna, no pano de fundo de seu silêncio, o objeto causa, a partir do qual o inconsciente se diz. E na análise on line, como o objeto se faz carne?

Lembremos que Lacan, no seminário 11, diz que o inconsciente se produz na análise e […] “não pode ser separado da presença do analista”. Diante disso, é importante compreender o que Lacan chama de presença do analista. Na Nota Italiana Lacan (1973) diz: “Só existe analista se o desejo lhe advir”. Podemos entender então que o analista ocupa determinada posição, a partir de um desejo: desejo do analista (p. 307). Chegamos aqui ao terceiro elemento trazido anteriormente por Lacan. O analista ocupa a posição de objeto causa de desejo.

 Bom, um início de resposta seria então a sustentação do desejo do analista, onde ele ocupa uma função. Além disso, a constituição do inconsciente se dá em transferência, marcando esta presença nos três registros – real, simbólico e imaginário. Existem as palavras e as articulações significantes, existe a cena que se monta, existem os afetos e objetos pulsionais que circulam entre analista e analisante. Essa é a condição para que a análise aconteça.

Comecemos pelo simbólico: em “A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder”, Lacan diz que o poder da psicanálise é o poder da palavra. Do lado do analistante, permanece nosso convite para que ele fale, inaugurando, com a associação livre. Do lado do analista, entramos com as pontuações, equivocidades, escanções, cortes. Mas a fala também comporta a dimensão do real, recupera-se um gozo ao falar.

No seminário 10 Lacan diz que os significantes vocalizados nos colocam diante do objeto a (p. 273). Assim, a voz entra como algo que está entre o sujeito e o Outro, sendo vista como estranha a ele, e instaurando um vazio. O sujeito incorpora os significantes do Outro (p. 301).

Numa situação de interação virtual, os especialistas dizem que a qualidade do som é mais importante que a imagem. Penso na radicalidade disso quando se refere a uma psicanálise, em que a fala não tem função de comunicação. Lacan diz que “o efeito do significante é fazer surgir no sujeito a dimensão do significado” (p. 311), e isso é particular para cada um. As chamadas “falhas de comunicação” decorrem de os objetos do mundo poderem entrar como causa para o sujeito (p. 315)[vi].

A fala está para além do enunciado, é um dos objetos da pulsão. Assim, o dizer implica em uma posição erógena e tem efeitos sobre o corpo. Implica em uma enunciação e um endereçamento, veicula desejo. Na instauração do inconsciente, a linguagem é incorporada pela voz. Como fica isso com a mediação da tela? Aurélio Souza, numa live do Espaço Moebius, diz que numa análise on line, o elemento intermediário que serve de contato entre o analista e o analisante modifica as condições de fala de ambos, modificando o que cada um pode ouvir, e a forma como é escutado o retorno que fazemos da fala do paciente para ele próprio.

 Como trabalhar as escanções, as interrupções, as respirações e os suspiros, quando estamos assujeitados à conexão do provedor da internet? Como garantir uma escuta? Ou um silêncio? Como intervir num mal-entendido sem saber se foi uma falha técnica ou do discurso do paciente? Como saber se ele não escutou por resistência ou por “rede desistência”?

Sobre o silêncio, encontrei em Hernandez (2004) uma citação de Lacan, no seminário A lógica do fantasma que diz existirem duas formas de silêncio. Taceo seria o da palavra não-dita, do calar, do silenciar ou ser silenciado. De outra parte, sileo seria um silêncio fundante, estruturante, do buraco da significação. Quando há palavras para se dizer, mas não são ditas, cala-se; por outro lado, quando faltam palavras para dizer o que se deseja, silencia-se. Pela tela não é possível saber se o silêncio é um ou o outro.

Cristhian Dunker, em seu canal do youtube, diz que numa análise on line a resistência começa a tomar força, sendo mais fácil desencontrar horários, desligar a tela… Eu já vivi atrasos, outros compromissos, esquecimentos. Visitas familiares que chegam, interrupções de setting.

Pelo viés imaginário, em sua clínica presencial, o analista oferece um setting, e isso implica, para além da sustentação de uma função, também a oferta e sustentação de um lugar, um horário, do sigilo, do divã, a disposição dos corpos no espaço, a interrupção do olhar, a interrupção da sessão. Diante destas questões, encontro interlocução novamente com Aurélio Souza, que diz que há efeitos transferenciais numa análise on line, na medida em que não garante a privacidade, e uma exacerbação do imaginário.

Numa análise on line, quem chama? Quem fica na espera? Como lidar com as falhas ou perdas de conexão? Repomos a sessão? De quem é o problema técnico? De quem é a falta? A sua internet não funciona, ou é a minha? Quem se responsabiliza?

São questões, que não sei se têm uma resposta definitiva. Sei que tenho praticado o trabalho clínico com a psicanálise on line, e que tem sido possível a continuidade do tratamento das questões trazidas pelos pacientes, além de situações inusitadas e surpreendentes. Mas esses desdobramentos têm feito ruído. Me vejo muito mais cansada e tendendo a concordar com os psicanalistas que dizem ser possível, contanto que se intercalem encontros presenciais.

REFERÊNCIAS

 

Freud, “O Estranho”

Freud, S. O Mal Estar na Civilização. (1929/1996)

 

Freud, Inibição, Sintoma e Angústia

Lacan, J. Nota Italiana (1973) p. 311-315. In: ________Outros Escritos, RJ, Jorge Zahar Ed, 2003, trad. Vera Ribeiro.

LACAN, J. (1962-63).O seminário, livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

LACAN, J. (1964).O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

 

“A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder”

 

LACAN, Le Coq-Héron, 1974, nº 46/47, p. 3-8 – Declaration à France Culture

 

Lacan, Jacques (2003b). Nota italiana. InOutros escritos. Campo Freudiano no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original transmitido em 1973)

 

Hernandez, Juliana. (2004). O duplo estatuto do silêncio. Psicologia USP, 15(1-2), 129-147. Disponível em https://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642004000100016 Acesso em 19 maio 2018.

 

complementar

Lacan, Jacques (2008a). Lição XVI. Seminário 14: A lógica do fantasma. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife: publicação para circulação interna. (Trabalho original transmitido em 1967).

[i] Para Lacan, a angústia não é uma emoção, mas um afeto. Isso implica em que ela não é passível de recalque, fica à deriva, o que é recalcado são os significantes que o amarram (p. 23)

[ii] Lacan reforça que as coisas do mundo se colocam em cena a partir das leis do significante (p. 42-43).

[iii] O objeto a, Lacan o situa originalmente como suporte do desejo, ou seja, como causador dele (p. 113 e 115).

[iv] Lacan diz que quando o lugar do -ⱷ é preenchido, surge “a angústia de castração, em sua relação com o Outro” (p. 55).

[v] “é na medida em que se esgotam até o fim, até o fundo da tigela, todas as formas de demanda, até a demanda zero, que vemos aparecer no fundo a relação de castração” (p. 63).

[vi] Torneira de Piaget, em que a criança parecia compreender a explicação do funcionamento, proposta pelo adulto, mas quando ia ensinar outra criança, algo se perdia e ela não conseguia explicar.

Angústia e desejo de Freud a Lacan

ANGÚSTIA E DESEJO DE FREUD A LACAN

Angústia, em alemão ”Angst”, embora possa ter outros sentidos, é uma tradução que pode reportar-se ao medo. No viés que delineia o conceito de Angústia em Freud (1916-1917), refere-se a um afeto com reações corporais ou a sensações indefinidas, como um incômodo, por exemplo. O afeto que Freud refere não tem a ver com o sentimento de emoção; por outro lado essa sensação indefinida ou estranha se liga a um fenômeno oriundo do campo psíquico, sendo uma excitação que se refere à energia que investe o psiquismo.
Em 1926, Freud atribuiu angústia a uma energia psíquica, uma excitação, que se liga a uma representação para marcar um funcionamento no psiquismo do sujeito, compondo um representante da pulsão que o sujeito recalca. Esse representante é utilizado como um mecanismo de defesa atribuído a um caráter econômico. E o recalque faz menção a uma representação inconciliável, por exemplo, uma alergia ou um distúrbio respiratório. Freud (1926) ainda atribuiu a fobia como veiculada a um segundo objeto, cuja alusão (cavalo) é enlaçada ao medo, visto no caso do pequeno Hans, um estudo a acerca da neurose de angústia, atendido por Freud em 1909. Freud discute, inclusive, sobre a repetição como fixações que determinam os retornos do recalcado na cadeia pulsional como conteúdo a ser elaborado e que sempre reaparece nos sonhos, nos chistes, atos falhos, entre outros. Mais tarde, em 1933, Freud define que é o ego que recalca para evitar a representação daquilo que o sujeito não consegue lidar por ser assunto ainda intratável. E o afeto que fica fora do campo representacional e que não é nomeado equivale a uma angústia sem representação no corpo.
Sobre o arcabouço da construção teórica desenvolvida por Freud acerca da angústia no sujeito, assim como seus mecanismos de defesa, Lacan (1962- 1963/2005) retoma a teoria freudiana e salienta que as defesas não são construídas para barrar a angústia, mas diz respeito à resposta a algo que ela destina, ao que ele nomeia como signo no seminário “desejo do Outro”; é o que ocorre com a perda do limite do sujeito e faz menção a um vazio que não tem borda, a partir de algo que o captura e o aliena, embora tenha seu aspecto fenomênico, uma vez que se articula com o real, mas também não é sem objeto. Em relação ao termo ‘’objeto’’ me refiro ‘’objeto de desejo’’. Esse tal objeto não existe, uma vez que a pulsão não tem objeto definido, mas articula-
se entre a significação fálica, a falta de objeto e o tamponamento da falta. Pretendo desenvolver um pouco mais à frente deste texto sobre esses últimos conceitos, no intuito de discorrer um pouco mais sobre a angústia, o conceito em questão. Ocorre que, em 1974-1975, Lacan se distancia mais ainda de Freud e conceitua que angústia é invasão do real no imaginário bem como um desejo insabido, ou seja, a falta constituinte que se reporta à estrutura do sujeito articulando o desejo ao campo do gozo, bordejando o gozo do Outro na baila dos significantes e do enodamento borromeano na via daquilo que está no eixo da inibição, do sintoma e da angústia.
Essas saídas do sujeito no processo de castração vão designar três modos de exercer a função de nome-do-pai, dando a ele um nome por meio dos seguintes processos: privação, frustração e castração. Como resultantes, a inibição e o sintoma fazem menção à elaboração do sujeito diante da angústia de castração, dando também ao sujeito um lugar no mundo enquanto significante, de onde se sustenta no gozo através de uma nomeação do real realizada pelo imaginário e pelo simbólico. Por isso, ocorre uma estabilização dos fenômenos para o sujeito instituído, embora o sujeito faça sintoma como mecanismo de defesa.
Ainda ao que refere a angústia, Lacan em (1962-1963/2005), no primeiro capítulo de ‘’o seminário’’, livro 10, diz que a “estrutura da angústia faz menção à fantasia, por assim dizer, a mesma coisa, já que a angústia é invasão do real no imaginário”. Pode ocorrer que a angústia faça sintoma, por exemplo: xerostomia (boca seca), tremores, entre outros. Mas se o sintoma é definido como a invasão do simbólico no real, resultando da bricolagem do significante com o real, no caso da angústia o real presente no sintoma faz referência à satisfação pulsional, que, de maneira indireta, implica o corpo, uma vez que o significante organiza a forma de satisfação pulsional; logo, a falta que aparece no campo do desejo é o que o gozo pretende eliminar, ou seja, impede o sujeito de alcançar o objeto de satisfação. Por exemplo, é comum que o sujeito partilhe com o analista sua vontade de eliminar o sintoma que sustenta seu gozo no “impedimento’’, em contradição com o desejo de se manter impedido.
De acordo com Lacan seminário 10 (1962-1963/2005), “estar impedido é um sintoma (…)”, logo o impedimento que é suscitado no sujeito se liga a uma armadilha, na qual ele se vê embaraçado, ou melhor dizendo, capturado pela imagem especular – falo instituído pelo Outro – assim como dividido entre aquilo que concerne à captura

narcísica, a partir do investimento libidinal e o objeto de desejo, ao qual o sujeito se vê impedido à medida que se aproxima do objeto em questão em decorrência da angústia.
Voltando ao trecho do texto “tal objeto não existe, uma vez que a pulsão não tem objeto, mas articula-se entre a significação fálica, a falta de objeto e o tamponamento da falta” a fim de desenvolver um pouco mais, começo com a significação fálica e sua proximidade com a angústia a partir do exemplo que se segue para explicar de modo mais prático ao que pretendo abordar. Inicio discorrendo sobre a resposta a uma demanda, em que o sujeito se impõe em responder ao que se liga à sustentação fantasmagórica a partir do olhar do Outro e o seu real desejo que ainda está na via do Outro. Por exemplo, um sujeito que responde na posição de um significante negativo (ⱷ – falta mãe), ou seja, não sendo para o Outro o que se espera dele. Entretanto, o sujeito sustenta esse lugar mesmo que de modo conflitante, ao mesmo tempo em que ele faz de tudo para manter-se em tal lugar – gozo – articulado com o desejo do Outro. O impedimento pode aparecer quando o sujeito não consegue sustentar um projeto a partir da escolha de um objeto de desejo como objeto de satisfação. Pode ocorrer que o sujeito ainda não se desembaraçou e insiste em tamponar a falta pela via do desejo do Outro, uma condição em que se faz um nó – um empuxo como impedimento. Não há completude, mas aceitar a falta e buscar os mecanismos necessários para lidar com a angústia por meio de uma mudança subjetiva.
Não faltam casos clínicos para exemplificar, a começar por um discurso quase corriqueiro, principalmente em casos de adolescentes, assim como é possivel também em adultos, com esse enunciado: “eu não consigo fazer nada direito; gostaria muito de ter minha independência, mas sempre fracasso em qualquer coisa que resolvo fazer; eu não aguento mais, eu odeio quando minha mãe fica me cobrando”. Enunciação: “estou impedido de sair desse lugar de fracassado”, por outro lado, eu sou bem sucedido ao manter o significante “fracasso”, uma vez que o preço é alto, mas é desse lugar que me reconheço, tenho medo de saber que nada sou; ‘’fracassado é o lugar em que me sustento como o filho que sou, conferido por minha mãe” – desejo do Outro. Essa rachadura, a separação recalcada entre o Outro e o sujeito e o desejo do sujeito que ainda baila no desejo do Outro – sou ou não sou o falo? – surge como algo estranho nomeado como angústia por ser sentido pelo sujeito como algo inominável, uma vez que é impossivel ser para o Outro. Por outro lado, ‘’não ser’’, a partir do momento que começa tocar no significante da falta, provoca sensação de despedaçamento, ou seja, uma

angústia terrivel experimentanda pelo sujeito no processo de castração ou na queda do objeto.
Ainda sobre o significante ‘’falo’’ que contorna a problemática do ‘’eu ideal’’ ou ‘’ideal de eu’’, entra em jogo nessa lógica ⱷ+ falta a falta; ⱷ – falta mãe, veiculada ao desejo do Outro no ponto em que se faz um enigma. Esse ponto é justamente aquilo faz nó sintomático que ao mesmo tempo que encobre a sisão, revelando o que é ser um significante para outro significante, numa lógica em que a questão do falo para o sujeito, em um processo de análise, passa pelo predicado daquilo que é impossivel prever, pois quem sabe o insabido é o “sujeito suposto saber”, a saber, um equivoco possivel de vir a tona por meio da associação livre.
No seminário 20 “mais ainda”, Lacan (1972-1973 /2008) afirma que, frente ao impossível da relação sexual o sujeito só poderá contar com o falo pela via do imprevisto, ou seja, não se sabe o que vem do inconsciente e o que está na via de seu desejo, por isso a resistência; o que nos leva a pensar que no nível da incerteza do falo aborda-se o ponto chave, o ponto em que se anuncia o “objeto a” como sujeito causa do desejo e o que “não há como saber”, levando o sujeito lidar ou se haver com o imprevisto, um real que não se sabe, por exemplo o COVID 19. Não dá para prever também o modo singular de apreensão do real, o que também é gerador de angústia – o que no final de análise constitui-se como tratamento do “objeto a” e da angústia como algo que ficou paralizado, assim como a impossibilidade da relação sexual, ou seja, a completude, além das implicações enodadas com a privação tida como irreversível antes do sujeito iniciar um tratamento analítico – assim como um encontro amoroso, o que não implica ser vivido apenas pela via do pensamento. Nesse ponto, um processo de análise balizada pela transferência, bem como outros dispositivos para condução do tratamento, concordo com o que nos presenteia a Zeila em seu texto quando diz da acolhida e o cuidado que se impõe ao analista tratar um paciente em meio a uma crise de angústia. Não se trata de responder demandas, mas conduzir com uma delicadeza capaz de medir aquilo que o sujeito pode suportar durante o processo analítico. Achei pertinente os exemplos trazidos de Lacan, nos quais ele se colocou afetivamente, entre outros feitos com mestria. São medidas necessárias para trabalhar e lidar com a contigência que também suscita do lado do analista: “como lidar com a angústia diante do imprevisto da resistência de um processo analítico?”

“Contingência é aquilo que se resume o que submete a relação sexual a ser, para o ser falante, apenas o regime do encontro. Só como contingência é para a psicanálise, o falo, reservado nos tempos antigos aos mistérios, parou de não se inscrever. Nada mais”. (Lacan, 1977- 1978/1985 pág. 127).
Ao final de análise, enuncio que a contingência é o entendimento, a apreenção da incerteza daquilo que não há como saber vivenciando um real, na mais pura aceitação do que não se controla, de onde ressoa um sujeito que, ao mesmo tempo que tem ciência de sua impotência, se fortalece sustentado em si mesmo em meio a impossibilidade de tal controle, o que, paradoxalmente, se ampara diante da angústia provocada pela falta, ao mesmo tempo que faz laço de confiança em algo que não se sabe advindo do próprio sujeito.
Agradeço aos colegas esperando frutificar algumas discussões acerca do que eu não lembrei de mencionar.

FREUD, S. (1996). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
______ (1926) “Inibições, sintomas e angústia”, v.XX.
______ (1914) “Sobre o narcisismo: uma introdução”. v.XIV.
______ (1923) “Organização genital infantil”. v.XIX.
LACAN, J, (1962-1963/2005) O Seminário livro 10, A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______ (1953-1954/1996) O Seminário livro 1, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______ (1977-1978/1985) O Seminário livro 2, O Eu na teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______ (1972-1973/2008) O Seminário livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LIMA, Mônica Assunção Costa. O sujeito da experiência psicanalítica entre o contingente e o necessário. Ágora (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 295-310, dez. 2002.

Apontamentos a partir do texto: “A angústia e desejo de Freud a Lacan”
Zeila Torezan

Se a vida fosse a mesma de antes, estaríamos reunidos no auditório de costume, teríamos ouvido a apresentação da Fátima (e não lido seu texto) e a minha intervenção seria feita a partir da fala dela, na função de debatedora. Mesmo a vida não sendo mais a mesma, me propus a ler e tentar trabalhar em parceria com ela de alguma forma, sempre com o desejo de seguirmos com o trabalho da ALPL. Como por esta via dos textos escritos, que escolhemos por ora, fica inviável um verdadeiro debate, logo não exerço aqui a função de debatedora, opto por escrever a respeito de alguns pontos abordados ou indicados no trabalho da Fátima. Agradeço à ela pelo texto e enfatizo a minha escolha: não vou comentar diretamento o texto (pelo fato de que não podemos dialogar por aqui), mas produzir algo a partir do que o trabalho dela me suscitou. Em função da proposta da Fátima de abordar a angústia e o desejo num percurso histórico, vou desenvolver meus apontamentos, procurando acompanhar e, se possível, ampliar um pouco o que o texto dela nos traz em duas vias que se entrelaçam: a relevância e particularidade clínica da angústia nos dias de hoje e a delimitação do conceito de angústia na teoria freudiana, bem como a leitura de Lacan e suas formulações sobre tal conceito.
Paradoxalmente, vivemos um tempo difícil e promissor para a psicanálise. Sabemos que esta dicotomia não é nova, desde o seu início a clínica psicanalítica sabe ser eficaz no tratamento do sofrimento humano, mas enfrenta uma série de dificuldades, impasses e questionamentos. Entretanto, os percalços advindos de uma posição subjetiva onde a busca por um saber inconsciente é sobrepujada por uma demanda de gozo que a cultura propõe como necessário (Besset, 2002), produz impasses bem específicos e, arrisco dizer, maiores do que aqueles presentes desde o nascimento da Psicanálise e atrelados a uma ordem social regida pela presença de uma forte instância terceira, da repressão, do sofrimento e da culpabilidade neurótica. Um cenário árido e favorecedor, dentre outras coisas, da presença da angústia e das diferentes formas de atuações nas clínicas das toxicomanias, dos transtornos alimentares, da psicossomática, do pânico, das fobias e das melancolizações. Mas também, promissor, por, mais uma vez, a psicanálise trabalhar para buscar formas de lidar com a dor e o sofrimento humanos, e mostrar-se capaz de renovação teórica e técnica.
Não podemos esquecer também de toda a carga de anestesia psíquica e anulação subjetiva que a indústria farmacêutica pode, alegremente, nos proporcionar e ainda a presença da solidão e do enfraquecimento dos laços sociais, pretensamente substituídos pela comunicação virtual. Bem, mais do que nunca, com a pandemia e o isolamento dos corpos essas questões se intensificam. Chego a pensar se este mundo virtual em que agora fomos todos, em alguma medida, forçosamente mergulhados não tem potencial para se equiparar ou mesmo subrepujar as drogas farmacêuticas. Sem negar as inúmeras vantagens que essa via nos proporciona, ainda mais nos dias de hoje, não podemos fechar os olhos para os males que também comporta. E tais malefícios se aproximam daqueles das medicações: anestesia, entorpecimento, sedação intelectual, alegria virtual (e não química) de um mundo e de relações imaginários. Sim, recortes imaginários são necessários, hoje nos ajudam a quebrar o isolamento também, mas nos mantermos conectados não é estarmos próximos. Não podemos tomar uma coisa pela outra. Vocês poderiam dizer que estar geograficamente perto também não é, necessariamente, sinônimo de proximidade. Correto, mas não há nesse último caso a força, a amplitude, o poder e mesmo a sedução imaginários que o virtual comporta.
Avançar na discussão a respeito da clínica da angústia na contemporaneidade exige, como nos propôs a Fátima, a delimitação do conceito de angústia na teoria freudiana, bem como a leitura de Lacan e suas formulações sobre tal conceito. Faço, então, alguns comentários a esse respeito, reforçando alguns pontos já tratados no texto da colega e ampliando alguns outros.
A obra freudiana apresenta duas teses sobre a angústia: na primeira, o recalque é postulado como produtor de angústia; na segunda, a angústia é anterior ao recalque e produz o mesmo. A construção da primeira teoria sobre a angústia está associada à diferenciação entre as
neuroses atuais e as psiconeuroses. As neuroses atuais, em especial a neurose de angústia, se caracterizam por um quantum de excitação sexual sem mediação simbólica e vivenciada diretamente no corpo sob a forma de angústia e, portanto, fora do recalque. Dito de outra forma, a angústia nas neuroses atuais é vista por Freud como uma energia livre decorrente da tensão física e sua ausência de intermediação psíquica. Com essa leitura sobre as psiconeuroses, temos a libidinização da tensão sexual, extrapolando a condição física desta tensão para o psiquismo. Freud considera os sintomas como indicadores de um excesso de libido e coloca a ideia de transformação deste excesso também em angústia. Tal excesso é vivenciado pelo eu como um perigo pulsional e estaria na base das psiconeuroses, pois frente a tal perigo o recalque atua como defesa. Com o recalque ocorre a separação entre ideia (representante representação) e afeto, sendo a angústia um dos possíveis destinos para o afeto (na condição de afeto livre). Portanto, temos a primeira tese sobre a angústia, marcada por um caráter econômico em que a angústia é um resultado, uma manifestação subjetiva de uma quantidade de energia não dominada, um produto do recalque e já está associada a um caráter defensivo. Este caráter defensivo é, nesse momento, enfatizado por Freud através da articulação da angústia a uma espécie de disposição preparatória para o perigo, pois à medida que o eu retira a libido dos representantes psíquicos, ele produz um nível de angústia suportável afim de que o eu não seja dominado pela angústia paralisante.
Com os elementos da segunda tópica e, em especial da segunda teoria pulsional, Freud (1996/1926) agrega à compreensão da angústia como libido transformada pelo efeito do recalque a ideia de uma angústia originária, associada ao trauma do nascimento, à imaturidade e dependência do humano, e, portanto, anterior ao recalque. Assim temos a segunda tese freudiana sobre a angústia, de caráter dinâmico, onde o recalque não causa a angústia pois ela está presente desde o início e por temê-la o eu recalca o que se apresenta como ameaçador por, de alguma forma, remeter à angústia originária (Giles, 2007). Freud avalia que a imaturidade e dependência absolutas do bebê propiciam uma vivência de desamparo e de perigo de aniquilamento que é traumática por não ser representada psiquicamente, sendo, portanto, angustiante. Toda vez que algo remeter a isto que é da ordem do trauma o eu se prepara para uma vivência angustiante. Assim, a angústia como sinal põe em evidência a angústia como defesa do eu, reação a um perigo inespecífico para impedir que um pânico desordenado se apodere do sujeito (Kaufmann, 1996).
Para Lacan, a angústia resguarda as condições de afeto e de sinal, não de um perigo interno ou externo, mas sim de uma vacilação frente ao desejo do Outro (Chemama, 1995). Lacan (2005/1962-63) prioriza, em Freud, O Estranho (Freud, 1996/1919) por considerar que neste artigo Freud apresenta a angústia não apenas como resultante da perda, da falta, mas também como manifestação frente à falta da falta. A angústia vem com a estranheza advinda do não comparecimento da falta ali onde ela era esperada. Assim, a angústia não é mais atribuída à falta, à perda do objeto, ao contrário, se presentifica no momento em que o objeto falha em se manifestar como faltante, ou seja, na possibilidade da falta vir a faltar. Nesta direção, Lacan (2005/1962-63) afirma ser a angustia não sem objeto e, ainda, ser um afeto que não engana. É necessário especificar que o objeto em questão, objeto a, é aquele definido como causa do desejo, aquele que precisa faltar para que o sujeito possa desejar. Produzido como resto no circuito pulsional, o objeto a é o que escapa à libidinização e à simbolização. A angústia é produzida se esse objeto não faltar e alguma coisa se presentificar em seu lugar, anulando a possibilidade do desejo. Assim a angústia não é sinal da falta, mas sim do fracasso desta última que é para o sujeito condição indispensável para sua existência desejante (Chemama, 1995). Desta forma, o que está em questão na angústia não é a dúvida, mas sim a certeza, por isso ser o afeto que não engana, de uma posição perante o desejo do Outro em que se corra o risco de devoração, onde o gozo do Outro se sobreponha ao desejo. O objeto em questão no desejo e na angústia é o mesmo, a diferença está em sua posição nestes dois casos. No desejo, o objeto está na condição de perdido, garantindo e garantido pela falta; já na angústia, ele reaparece e se duplica como representação e oferenda ao Outro mítico de gozo (Goldberg, 2007). Nesta direção, sabemos que o desejo se sustenta na estrutura do fantasma e Lacan (2005/1962-63) afirma que nesta mesma estrutura se estabelece a angústia. Assim, perante o enigma do desejo do Outro, que na verdade nada quer de mim, a angústia surge se o Outro não se apresentar e permanecer como faltante para que eu possa ser a, causa do desejo, para ele.

Com estes fundamentos teóricos, não nos parece difícil interpretar as manifestações clínicas tão comuns em nossos dias pela via das patologias do ato (toxicomanias, pânico, bulimia e anorexia, melancolizações…), recursos frente à angústia e à inibição, como efeito da presença de um Outro pouco faltante ou marcado mais pela falta imaginária do que pela falta simbólica. Posicionamento bastante condizente com o discurso social reinante de um imperativo necessário de ascensão a um gozo sem limites. Dessa maneira, nos deparamos com sujeitos tão apáticos, pouco desejantes, e também muito suscetíveis à melancolização e à angústia por uma falha, vacilação, naquilo que diz respeito a estrutura da falta e à possibilidade de ser a, causa do desejo para o Outro e não objeto de desejo do Outro. No que concerne à condução clínica, Lacan afirma a angústia como necessária, fiando-se nos ensinamentos freudianos da angústia como sinal de alarme que possibilite ao eu o acionamento de defesas que impeçam o transbordamento da angústia de forma paralisante. Assim, ela também pode servir como sinal na análise dos limites entre desejo e o gozo, como indicador do quanto a estrutura do fantasma garante, para esse sujeito, o seu lugar no desejo. Em certa medida, parece-nos que a angústia neste nível de sinal tem fracassado em nossos dias, assim como o sintoma já não se apresenta mais tão clara e frequentemente: em geral se apresentam sob o signo da apatia alienante ou da angústia paralisante. Neste contexto, certamente devemos nos haver com especificidades na condução clínica que implicam, de começo, dificuldades e maior tempo no estabelecimento transferencial e na fundação da demanda de análise. Manobras que viabilizem a saída da angústia paralisante e/ou da inibição não pela via do ato, mas da palavra, certamente necessitam que o desejo do analista possa se sustentar de forma eficaz, inclusive naquilo que diz respeito à prática da vacilação calculada. Parece interessante que para lidarmos com aquilo que é exatamente da ordem de uma vacilação na estrutura, recorramos a um outro campo também de vacilação, e que tenhamos constatado que esta última pode comportar atos de criação e subjetivação e não de fracasso e destituição, na renovação necessária da psicanálise e sua clínica.
Referências
BESSET, V. L. A clínica da Angústia. São Paulo: Editora Escuta, 2002. 216p.
CHEMAMA, R. (org.) Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Larousse-Artes Médicas Sul, 1995. 241p.
FREUD, S. O Estranho [1917]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade [1926]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GILES, C. Sobre o conceito de angústia em Freud. In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, vol. 1, n. 1. Porto Alegre: APPOA, 1990, p.11-21.
GOLDBERG, S. A angústia em Lacan, uma terceira teoria? In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, vol. 1, n. 1. Porto Alegre: APPOA, 1990, p.11-21. p.58-66.
KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. 784p.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 366p.